Para a professora Laura Mendes de Barros, o Brasil vive um momento de desmonte institucional que acaba estimulando o mau uso dos recursos públicos
O Brasil passa por um período de fragilidade institucional, que prejudica o combate à corrupção e a manutenção de sistemas de integridade (compliance) no setor público. O exemplo mais recente do retrocesso vivido pelo país nessa área é o escândalo de tráfico de influências na distribuição de verbas do Ministério da Educação às prefeituras.
“As mensagens, infelizmente, que o governo e muitas instituições estão enviando para a sociedade é que, de certa forma, compensa ser corrupto”, diz Laura Mendes de Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo e professora do Insper. “Temos, no meu modo de ver, um governo sem a compreensão do que seja um Estado democrático de direito, sem a noção do que seja uma República.”
Ex-controladora-geral do município de São Paulo, Laura é especialista em Autoridades Locais e o Estado pela École Nationale d’Administration de Paris. É autora das obras Participação democrática e fomento nos conselhos deliberativos (Saraiva, 2017) e Compliance e controle sócia do setor público: auditorias democráticas (Quartier Latin, 2019). É também uma das docentes do curso presencial Compliance e Governança no Setor Público e do curso online Governança e Compliance no Setor Público em Contexto de Crise, oferecidos pelo Insper.
Na entrevista a seguir, ela fala sobre a situação atual da corrupção no Brasil e alguns caminhos para o país voltar aos trilhos.
Nos últimos dias, os jornais noticiaram a existência de um gabinete paralelo no Ministério da Educação para negociar a liberação de verbas públicas em troca de favores. Por que ainda ocorrem casos de uso da máquina pública para atender interesses privados?
Essa é uma questão fundamental em nosso país. E considero, com muito pesar, que vivemos um momento de retrocesso nos movimentos de combate à corrupção e de promoção da integridade pública. As mensagens, infelizmente, que o governo e muitas instituições estão enviando para a sociedade é que, de certa forma, compensa ser corrupto, e que a chance de uma pessoa ser pega, condenada ou efetivamente cumprir pena é cada vez mais remota. Estamos assistindo a um desmonte institucional inclusive da legislação. Eu me refiro, por exemplo, à alteração da Lei de Improbidade Administrativa que acabou por inviabilizar a penalização de agentes mal-intencionados que se utilizam da máquina pública em benefício próprio. Não que a lei anterior não precisasse ser revista. Ela exigia revisão urgente, pois já estava desatualizada, mas as alterações feitas não contribuíram para o combate à corrupção. Muito pelo contrário. Elas acabaram sendo um estímulo à malversação da coisa pública.
Que mudanças na Lei de Improbidade Administrativa foram ruins para o combate à corrupção?
Se olharmos para as últimas decisões judiciais a partir da edição dessa lei, veremos como isso tem sido observado na prática. Há uma tendência muito pronunciada de retroatividade da lei. Vemos muitos processos sendo extintos, incluindo alguns que estavam em fase avançada de instrução, ou processos por vezes em que já havia condenação em primeira instância. Eles simplesmente foram extintos pela nova legislação, que traz requisitos muito mais complexos de demonstração de dolo. Além disso, o prazo de prescrição para ajuizar as ações ficou mais apertado e a legitimidade ativa exclusiva ao Ministério Público simplesmente ceifou a atuação das Procuradorias em nível federal, estadual e municipal. Dessa forma, tira-se do ente público lesado a possibilidade de responsabilizar seu próprio servidor que teve uma conduta ilícita.
O problema maior está nas brechas da Lei de Improbidade?
Eu invoquei as mudanças na Lei de Improbidade, mas esse não é o único problema. Há muitas questões institucionais sendo revistas, a participação democrática e o controle social têm sido restringidos, e há alterações de decretos que mudaram toda a sistemática. E, claro, quando se subtrai transparência, subtrai-se também a participação, minimiza-se a possibilidade de controle social, e as pessoas com más intenções se sentem muito mais à vontade para agir. Paralelamente a toda essa questão institucional, estamos vendo a nossa maturidade democrática sofrendo retrocesso. Temos, no meu modo de ver, um governo sem a compreensão do que seja um Estado democrático de direito, sem a noção do que seja uma República. Infelizmente, são vários os exemplos que observamos, como as afirmações levianas de que não vai se autorizar a renovação de concessões de TV porque falam mal do governo, ou de querer classificar jornalistas nas redes sociais conforme sejam favoráveis, contrários ou neutros ao governo. Normaliza-se uma situação que é absolutamente incompatível com a Constituição Federal. É preciso ter respeito às diversas ideologias. Estamos falando de pluralismo, de legalidade, de democracia. Acima de tudo, é preciso ter como premissa básica o respeito à nossa Carta Maior.
De que maneira a Constituição está sendo desrespeitada?
Esse tipo de postura que estamos vendo é absolutamente incompatível com o respeito aos princípios das cláusulas pétreas da Constituição. E aí, fazendo um link com o escândalo envolvendo o Ministério da Educação, que governo é esse que privilegia os amigos? Onde foi parar o princípio da impessoalidade e da isonomia na administração pública? São as coisas mais gritantes e mais evidentes, mas, nesse episódio em especial, além de pessoas se assenhoreando de funções públicas, observamos uma subversão total dos pilares básicos do Estado democrático de direito, diariamente. Os órgãos de controle estão num movimento de retração. Estamos saindo de um momento de supercontrole, no qual se falava muito de um “apagão das canetas”, o medo do gestor público de tomar decisões. É um medo real, não há como negar. Mas não se trata simplesmente de reprimir a prática delituosa. É necessário prevenir, em vez de esperar que o dano aconteça. E para isso a transparência é absolutamente fundamental. Estamos vendo atualmente o princípio da transparência sendo relegado a um faz de conta. As pessoas muitas vezes invocam outras leis, como a LGPD, para não dar transparência à ação pública. É um desmonte do começo ao fim. Há muita coisa acontecendo e, claro, precisamos sempre ter um olhar de esperança de que é possível superar esses entraves. E eu sempre bato na mesma tecla: para mim, vejo como uma luz no fim do túnel o envolvimento da sociedade civil. Quando temos questões jurisdicionais tão sérias, precisamos envolver mais atores, trazê-los para o debate. Porque se ficarmos nessa postura de “Ah, não é comigo, vou deixar que eles resolvam”, a tendência é que as coisas piorem ainda mais.
E como se poderia incentivar essa participação da sociedade civil? Existem mecanismos para isso?
Esse é um grande desafio, talvez o maior desafio em nosso país porque, pragmaticamente falando, a pessoa que está desesperada para colocar comida na mesa, que acorda às 4h da manhã e vai dormir à meia-noite para dar conta de tudo o que precisa fazer, muito dificilmente vai ter disponibilidade para se envolver, para acompanhar, para participar de uma audiência pública, para se inteirar do que está acontecendo no país. Mas temos que tentar. Existem iniciativas interessantes e maravilhosas que estão trazendo resultados muito bons. Um exemplo é uma iniciativa na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, em que, a partir de dados e da busca de transparência, está se promovendo o engajamento dos moradores. As questões são levadas inclusive até os bailes funks, para promover o esclarecimento de jovens. Com isso, as pessoas começam a perceber que, se elas cobram o poder público, a coleta de lixo começa a chegar às suas casas. Se há o problema do risco de enchentes, elas têm como se mobilizar e exigir que alguma coisa seja feita. Então, é possível quebrar essa barreira da inação, da nossa inércia, que é histórica e está relacionada com a nossa falta de educação. Mas tem que ser um movimento da própria sociedade, não dá para esperar um apadrinhamento da administração pública. Para mobilizar as comunidades, temos hoje uma ferramenta poderosa, que é a internet. As redes sociais facilitam muito. Claro, há um lado nefasto, que é a disseminação das fake news, mas há também essa possibilidade de dar voz às pessoas, de permitir-lhes cobrar o poder público.
Implantar um programa de compliance e integridade no setor público é muito diferente de implantá-lo no setor privado?
Na esfera pública, tudo é maior, tudo é mais impactante. Afinal, estamos falando de temas como a saúde e a educação das pessoas. Quando se pensa em administração pública, não podemos ignorar a cultura do serviço público no Brasil. De um lado, há um grande preconceito dos que acham que funcionário público não gosta de trabalhar, que não tem comprometimento, que não é apaixonado pelo que faz. De outro, temos servidores habituados a fazer a mesma coisa há muito tempo e que estão desestimulados porque veem seus esforços desprezados a cada troca de governo. Isso acaba desestimulando o envolvimento efetivo dos servidores. A questão dos recursos humanos talvez seja a mais desafiadora, porque, na iniciativa privada, se as coisas não estão dando certo, o empregado é mandado embora e pronto. No serviço público não é bem assim. E os agentes políticos dependem da burocracia. Não é simplesmente impor uma vontade, tem que haver uma negociação. Se houver ausência absoluta de diálogo entre as instâncias política e burocrática, torna-se absolutamente inviável qualquer tipo de gestão. O turning point é a questão cultural, vamos ter que mudar a cultura. E como se faz isso? Por meio da capacitação constante, da renovação do pessoal, da valorização das carreiras públicas. A transparência também é muito importante. Ainda existe muita cultura de segredo na administração pública. Apesar de termos uma boa legislação em termos de acesso à informação, os servidores, muitas vezes, não por má-fé, têm medo de disponibilizar informações e ser responsabilizados por isso. Quando eu estava na Controladoria-Geral de São Paulo e abrimos o cadastro de IPTU do município, foi um absurdo. Os servidores achavam que os dados ali eram sigilosos e, se fornecessem aqueles dados até mesmo para o Ministério Público, sofreriam um processo administrativo. É preciso quebrar essa cultura de sigilo e falta de transparência. Os cidadãos têm o direito de saber tudo o que está acontecendo ali dentro, com raríssimas exceções, legalmente previstas.
A Lava Jato era tida como a maior operação de combate à corrupção no Brasil, mas, nos últimos tempos, ela tem sido bastante criticada. Em sua avaliação, a operação deixou um legado?
Hoje em dia, infelizmente, eu vejo um legado muito negativo. Pela forma como os acontecimentos se encaminharam, essa operação deixou para a sociedade uma mensagem oposta daquela que propunha. Um de seus grandes erros foi personificar a operação, o que, por si só, já ia contra o princípio da impessoalidade. A operação tinha figuras muito marcantes, de tal modo que não se falava do Judiciário, da Polícia Federal ou do Ministério Público. Na época, essas figuras dominantes trouxeram, sem dúvida, um sopro de esperança para a população. Basta ver como o juiz Sergio Moro foi disputado a tapa nas eleições de 2018. Todo mundo o queria no palanque, porque, de certa forma, ele personificava as esperanças de superação da corrupção endêmica no país. A partir do momento em que essas figuras foram expostas e vieram à tona muitas questões de legalidade duvidosa, colocou-se em xeque todos os valores que eram defendidos pela operação. Paralelamente, houve um desmonte institucional levado a efeito, em grande parte, sob a batuta dos integrantes dos maiores poderes da nação. O Legislativo teve um papel muito marcante nisso, e o Executivo federal nem se fala. Tudo isso deixou para a população uma sensação aprofundada de impunidade. O castelo de areia ruiu e essa frustração é muito ruim para a sociedade.
No ranking da Transparência Internacional que mede o índice de percepção de corrupção no mundo, o Brasil praticamente ficou estagnado nos últimos anos, mantendo-se abaixo da média global. Por que o país não consegue melhorar sua posição?
Na verdade, o Brasil está até caindo nesse ranking, embora dentro da margem de erro da metodologia. Acho esse índice superútil, eu gosto muito dele, mas não podemos nos esquecer de que ele é baseado na percepção das pessoas, que são influenciáveis pela mídia, pelas redes sociais, pelas fake news e tudo mais. Estamos, portanto, falando de critérios subjetivos. É difícil mensurar a corrupção objetivamente, mas o sentimento do brasileiro em geral é que o país é muito corrupto. Mas eu sempre digo nas aulas que não podemos engolir qualquer premissa como verdadeira sem antes checar as fontes e os dados. E os números mostram que, quando se fala da pequena corrupção — como pagar propina para ter acesso a um serviço de saúde ou para conseguir matrícula em uma unidade escolar —, a nossa percepção de corrupção é surpreendentemente baixa. Nesse aspecto, o Brasil está muito bem posicionado na América Latina. Ou seja, na corrupção do dia a dia, o país não tem grandes problemas, pelo menos de acordo com os índices. A questão mais impactante, segundo as pesquisas, é mesmo a grande corrupção.
Em termos de elaboração de políticas públicas, existe alguma boa prática lá fora que poderia servir de inspiração para o Brasil?
Há muitas coisas. Como sou muito ligada a questões de participação democrática e de controle social, posso citar a Islândia, cuja Constituição foi votada via internet por toda a população, e não apenas por seus representantes. Eu acho isso maravilhoso, porque, quando a população participa do processo, o resultado final fica muito mais legítimo. Os cidadãos que se envolvem no processo de elaboração de normas ou de políticas públicas têm muito mais tendência de cumprir essas normas, ainda que eles tenham discordado delas no momento de votação. A legitimidade pela participação do processo é poderosa. Eu acredito bastante nisso.
O Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper oferece uma trilha de cursos executivos de Compliance e Governança no setor público. O foco é munir o gestor público e suas interfaces de elementos que auxiliem na tomada de decisão considerando, de um lado, a necessidade de transparência e abertura de dados, e de outro a mitigação de riscos e o incentivo à inovação.
No curso presencial, uma experiência imersiva de quatro dias passa pela evolução histórica dos conceitos e mecanismos de controle e dá o passo a passo para o aluno que deseja implementar um programa de integridade em seu órgão ou organização. No curso online, o foco se direciona à importância e desafios de abertura de dados e tomada rápida decisão, em especial em contextos de crise como a trazida pela pandemia. Em ambos, no fechamento é feita uma mesa de debate envolvendo um gestor, um órgão de controle e um representante da sociedade civil organizada, para dar luz às oportunidades de colaboração nesse cenário, com participação ativa dos alunos.