A linha de defesa adotada por Elizabeth Holmes — fundadora da finada empresa que prometia revolucionar a medicina e se mostrou um embuste — pode reforçar os estereótipos de gênero
David Cohen
Um dos maiores obstáculos para pessoas de grupos minoritários é a falta de exemplos inspiradores. Isso é particularmente danoso por dois motivos complementares. De um lado, há um reforço dos estereótipos que fazem com que as pessoas em posição de lhes oferecer oportunidades não o façam, ou o façam com menos ímpeto. De outro lado, a falta de modelos estreita, inconscientemente, o espectro de possibilidades que as pessoas entretêm para si, desde tenra idade.
Assim, o pequeno número de indígenas, ou negros, ou mulheres em cargos mais altos ou em profissões de maior prestígio tende a criar uma espécie de círculo vicioso: crianças e jovens pertencentes a esses grupos optam em números bem menores pelos caminhos que mudariam a situação; e aqueles que efetivamente tentam em geral encontram menos oportunidades de sucesso. Além disso, contam com menos exemplos de gente que driblou dificuldades parecidas com as deles.
Como afirma em sua mais recente biografia, Uma Terra Prometida, Barack Obama, quando quis convencer sua mulher, Michelle, de que valia a pena embarcar na aventura de uma candidatura à presidência dos Estados Unidos, usou como argumento o estímulo que daria a milhões de crianças negras para terem sonhos mais ousados.
Com as mulheres acontece algo equivalente. Normalmente associamos o universo feminino ao cuidado, à suavidade, à paciência, à emoção; e o masculino à agressividade, à decisão, à razão. “Em setores como o de tecnologia, ter mulheres em posições de destaque contribuiu para a gente reconfigurar os nossos ideais de gênero”, afirma a doutora em administração Ana Diniz, professora e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero e Diversidade do Insper. “Faz as pessoas entenderem que mulheres também podem estar lá.”
Mas… e quando o modelo de sucesso fracassa?
Este é o caso de Elizabeth Holmes, fundadora e executiva-chefe da falecida Theranos, empresa que prometia revolucionar as análises laboratoriais com uma tecnologia capaz de realizar com apenas uma ou duas gotas de sangue os testes que hoje necessitam de várias ampolas. Em vez de coleta com agulha na veia, seria preciso apenas uma picadinha no dedo. Em vez de dias para saber os resultados, horas ou minutos. Em vez de um custo na casa das dezenas ou centenas de dólares, centavos.
A promessa jamais se cumpriu e, desde o final de agosto, Holmes enfrenta um julgamento por fraude, com potencial condenação a até 20 anos de cadeia. Os prejuízos que a Theranos infligiu a investidores são da ordem de 700 milhões de dólares, sem contar os danos a pacientes que confiaram no sistema. Em novembro, ela finalmente deu seu testemunho sobre as acusações. A linha de defesa que seguiu pode ajudar a inocentá-la ou pelo menos mitigar a pena — o veredicto deve sair apenas em 2022 —, mas ameaça reforçar preconceitos contra as mulheres, especialmente no campo dos negócios e da tecnologia.
Assim que começou a ficar conhecida, em 2003, Elizabeth Holmes era incensada como um modelo a seguir. Era como se ela fosse a prova de que não era preciso ser homem para encarnar o mito preferido do Vale do Silício: o empreendedor que se faz sozinho, a partir de uma garagem, em geral abandonando a faculdade para se dedicar a uma ideia simples capaz de destronar indústrias inteiras.
Pouco importa que ela tenha adotado características tipicamente identificadas como masculinas: apresentava-se com um vestuário simples, imitando o estilo do cofundador da Apple Steve Jobs (calça jeans e malha preta de algodão que ia até o pescoço); forçava, ao que tudo indica, uma voz mais grave, de barítono, que supostamente a faria ser levada mais a sério; adotava o discurso da ousadia e cultivava uma imagem de conquistadora (inclusive, segundo detratores, exagerando sua responsabilidade pelas patentes que exibia).
Isso tem pouca importância porque a questão não é que mulheres tenham que adotar características masculinas para fazer sucesso — é que essas características sejam consideradas coisa de homem. Em havendo mais e mais mulheres em cargos de destaque, qualidades como visão estratégica, ousadia e capacidade de comando tenderão a ser menos identificadas com o gênero masculino.
No reino das percepções, Holmes parecia colher o melhor dos dois mundos, trafegando entre os estereótipos dos dois gêneros. Prometia, segundo os mais entusiasmados, ser uma espécie de Steve Jobs… com coração. Sua trajetória leva a crer que jogava perfeitamente o jogo das startups. Largou a faculdade para montar sua empresa aos 19 anos, emulando alguns dos mais valorizados fundadores de companhias de tecnologia. Conseguiu as primeiras entrevistas com investidores por meio dos contatos dos pais — ele, um ex-vice-presidente da Enron que depois trabalhou em diversas agências do governo; ela, uma assessora do Congresso.
Jovem, atraente, com um discurso talhado de acordo com os padrões de ousadia do setor, em pouco tempo conseguiu apoio de investidores influentes, como Henry Kissinger e George Shultz, dois ex-secretários de Estado, James Mattis e William Perry, dois ex-secretários da Defesa, David Boies, um dos mais prestigiados advogados do país, Larry Ellison, cofundador da Oracle, e Channing Robertson, reitor da faculdade de Engenharia de Stanford, a própria universidade que Holmes largou. A partir daí, abocanhou contratos com os laboratórios GlaxoSmithKline e Pfizer.
De acordo com um estudo feito entre 2010 e 2016 por pesquisadores de Harvard e da London Business School, nas rodadas de investimentos as mulheres costumam ouvir perguntas “preventivas”, ou seja, focadas em como conter riscos, enquanto os homens tendem a ouvir perguntas de “promoção”, centradas em possibilidades e expectativas. No estudo, realizado com 140 investidores em competições para levantar fundos promovidas pelo site de notícias Tech Crunch, os empreendedores que responderam a perguntas de “promoção” receberam seis vezes mais recursos do que aqueles que responderam a perguntas “preventivas”. Isso ajuda a explicar por que em 2019 apenas 2,8% dos investimentos em startups nos Estados Unidos foram para empresas fundadas por mulheres. E esse foi o recorde. Em 2020, a taxa caiu para 2,3%.
Há um jeito relativamente simples de driblar esse obstáculo: responder a perguntas negativas, focadas em risco, de modo positivo, enfatizando expectativas otimistas. Holmes fazia isso, e mais. De acordo com o psiquiatra Richard Fuisz, que a conhece desde criança e teve uma briga na Justiça com a Theranos por causa de uma patente, sempre que alguém levantava dúvidas sobre seus conhecimentos tecnológicos ou visão de negócios Holmes mudava de assunto, falando sobre um trisavô que foi pioneiro de um hospital de Cincinnati e outro que fundou a companhia de fermentos Fleischmann. Dava a entender que negócios e medicina “estavam em seu DNA”.
Para que Holmes seja condenada, a promotoria precisa provar não apenas que a Theranos era uma proposta fantasiosa (isso está mais ou menos estabelecido para além de dúvidas razoáveis), mas que ela praticou o engodo de forma deliberada. Isso não é tão simples.
Em termos de imagem, porém, o estrago já está feito. Não só para ela. “Exemplos de sucesso femininos são cruciais para a ocupação de espaços de poder”, afirma Ana Diniz. “Como diz um slogan do movimento feminista: representatividade importa. O problema é o outro lado da moeda. Como representatividade importa, casos como o dela acabam reforçando os estereótipos negativos.”
Pode-se até considerar que ela tenha feito por merecer a imagem negativa que agora colhe. Estudos apontam, no entanto, que as mulheres tendem a ser julgadas socialmente de forma mais dura que os homens. Pior: seu fracasso costuma afetar o conjunto das mulheres.
Um estudo da psicóloga Victoria Brescoll, da Universidade Yale, por exemplo, aponta que os erros cometidos por mulheres em ocupações consideradas masculinas são mais malvistos do que os mesmos erros cometidos por homens. De acordo com artigo de Amy Bernstein na revista Harvard Business Review, em 2016, uma equipe liderada por Brescoll forneceu a voluntários um artigo inventado sobre um chefe de polícia que falhou na avaliação de um protesto e, graças a essa falha, 25 pessoas ficaram gravemente feridas. Quando o imaginário chefe de polícia era um homem, sua avaliação como profissional eficiente caía em média 10%. Quando era mulher, quase 30%.
As conclusões se mantiveram com outras ocupações, como executivo-chefe de uma firma de engenharia ou juiz de uma suprema corte estadual. Uma exceção que confirma a conclusão foi quando o posto era de presidente de uma faculdade feminina. Neste último caso, o homem era julgado com mais severidade que a mulher. Ao que parece, as pessoas tendem a ser mais rígidas com alguém que percebam como deslocado de seu “papel natural”.
Outro estudo, do professor de finanças Mark Egan, da Escola de Negócios de Harvard, aponta que conselheiras financeiras mulheres têm uma probabilidade 20% maior do que homens de serem demitidas. E têm uma chance 30% maior de não encontrar emprego na mesma indústria.
Segundo a economista Heather Sarsons, da Universidade de Chicago, em estudo de 2017, quando um paciente morre na mesa de operação de uma cirurgiã, há uma queda de 34% no número de referências que a profissional recebe de colegas. Se o cirurgião que perdeu um paciente for homem, praticamente não há perda de referências no longo prazo. Pior: quando uma cirurgiã comete um erro, há um declínio de indicações para mulheres em geral; quando o erro é de um cirurgião do sexo masculino, outros homens não sofrem nenhuma consequência.
No caso da Theranos, as mulheres já estão sofrendo algumas consequências desagradáveis. Heather Bowerman, por exemplo, fundou a startup DotLab em 2016, pouco tempo depois de a Theranos entrar em crise. Sua empresa desenvolveu um teste para ajudar a identificar endometriose, uma doença inflamatória crônica. A cada encontro com investidores ela tinha de explicar como a DotLab seria diferente da Theranos — a tal ponto que ela decidiu segurar o processo de buscar recursos de venture capital, garantindo-se com bolsas do governo. A DotLab já publicou resultados de estudos que validam sua tecnologia e seu conselho é composto de cientistas e médicos, algo bem diferente da Theranos. “Até hoje eu sinto a hesitação de investidores tradicionais em apoiar uma empresa de diagnósticos”, declarou Bowerman a Erin Griffith, em artigo publicado em agosto no jornal The New York Times.
Outra empreendedora, Julia Cheek, da Everly Health, disse em uma conferência em 2019 que as comparações com Holmes eram tão frequentes que lhe aconselharam a pintar o cabelo (as duas são louras) para se diferenciar dela.
“O momento mais frágil de uma companhia é no começo, quando você tem que convencer investidores e cooperadores com base na sua visão e em suas ideias”, disse na mesma reportagem Alice Zhang, fundadora da startup Verge Genomics, que usa inteligência artificial para ajudar a descobrir novos remédios. “É aí que esse tipo de comparação pode ser realmente destrutivo.”
Como escreveu em um artigo no site de tecnologia Tech Crunch, outra empreendedora, Beth Esponnette, dona de uma companhia de jeans, “sentada em frente a um investidor eu imagino se ele estaria mais interessado nas minhas palavras se eu cortasse o cabelo bem curtinho, ou deixasse crescer uma barba, ou escondesse a minha barriga de grávida; será que eles ficariam mais curiosos pela minha empresa se eu batesse com a mão na mesa?”.
Com o julgamento de Holmes, é provável que os estereótipos de gênero sejam ainda mais reforçados. Porque a estratégia da defesa, compreensivelmente, é apresentá-la como vítima da situação.
Para compor a imagem que interessa à defesa há o fato de que ela se tornou mãe há poucos meses. Mas o teor de suas declarações é a mudança mais significativa. Se antes ela fazia questão de reivindicar responsabilidade total pelos destinos da Theranos — em uma entrevista na TV em que discutia os problemas da empresa, ela disse: “Sou a fundadora e executiva-chefe da companhia, no final das contas o que quer que aconteça aqui é minha responsabilidade” — e fazia questão de microgerenciar os empregados (conforme testemunhos de alguns deles), agora ela afirma que Adam Rosendorff, o diretor de pesquisas, era o responsável pelo laboratório clínico; e Daniel Young, um vice-presidente, era o responsável pela parceria com a cadeia de farmácias Walgreens (que ofereceu testes rápidos, e falsos, da Theranos).
Holmes também frisou que seu conselho de administração era composto por homens de negócios muito experientes, que deveriam tê-la orientado melhor. Quanto à fraude, a posição que Holmes sustentou no depoimento foi que, pelo que entendia, a tecnologia da Theranos “funcionava bem”. Ela teria escondido o fato de a companhia utilizar aparelhos de outras firmas pelo “temor de que outros descobrissem as modificações feitas nos aparelhos, que seriam segredos comerciais a proteger da concorrência”.
O ponto mais dramático, sem dúvida, foi quando ela se referiu a seu ex-braço-direito e ex-namorado Ramesh “Sunny” Balwani (cujo julgamento será em separado, no começo do ano que vem). Os advogados de Holmes já haviam afirmado, há meses, que “confiar e depender do senhor Balwani como seu principal conselheiro foi um de seus erros”.
O depoimento foi muito além disso. Ela afirmou que Balwani abusou dela, tanto emocional quanto fisicamente.
Disse que ele era controlador, que prescrevia a comida que ela devia ingerir e ditava cada minuto de sua agenda. Que a afastava de sua família. E que a forçava a fazer sexo com ele. “Ele ficava muito nervoso comigo e às vezes subia ao nosso quarto e me forçava a fazer sexo com ele quando eu não queria porque queria que eu soubesse que ele ainda me amava”, declarou.
Para sustentar a acusação, mostrou notas escritas em seu celular na época: “Não gosto de literalmente nada disso ou de quem eu sou se fiz isso. Dói tanto, tanto.”
Ela se apresentava como confiante e determinada, mas nos bastidores, afirmou, Balwani a criticava e a controlava. Chamava-a de “menininha”, dizia que ela era “medíocre” como empreendedora. Induzia-a tomar sucos verdes, adotar princípios de negócios, influenciava até suas rezas.
Balwani, de uma família paquistanesa que emigrou para os Estados Unidos, é 19 anos mais velho que Holmes. Quando se conheceram, ela tinha 18 anos e ele, 38. Havia trabalhado na Microsoft e, durante a bolha da internet da virada do milênio, foi presidente de uma empresa que chegou a valer bilhões e depois desapareceu — um fracasso que o deixou com US$ 40 milhões na conta.
Os dois trocavam mensagens e, segundo ela, a relação ficou mais séria quando ela decidiu largar a faculdade. Ao contrário do que se supunha, sair da faculdade não foi uma decisão tomada pela ambição de montar a empresa — foi, segundo ela, resultado do trauma de ter sido estuprada. Balwani teria então lhe dito que ela “estava a salvo agora que o havia encontrado”.
É difícil avaliar até que ponto são verdadeiras as diversas versões da história da Theranos (que ainda deverão sofrer reviravoltas no ano que vem, quando Balwani for ouvido). No campo das percepções, entretanto, uma constatação parece óbvia: a imagem de uma mulher ousada, visionária, capaz e audaz, está sendo trocada pela imagem de uma mulher manipulada, frágil, que precisa de proteção. E isso é sempre ruim para as mulheres, para os membros de grupos menos favorecidos — para todas as pessoas — que anseiam por sucesso em projetos profissionais desafiadores.