Executivo, Judiciário e Legislativo. Em tese, esses são três Poderes, autônomos e harmônicos, que regem o Brasil. Na prática, no entanto, não é bem assim. Por muito tempo, o Poder Executivo no Brasil pareceu protagonizar a agenda política do país. Agora, as coisas parecem se inverter: o Executivo perde força, enquanto o Judiciário e o Legislativo se fortalecem, inclusive tornando o Executivo dependente.
Foi esse o tema do encontro “Café com Política: O desequilíbrio dos 3 poderes da República”, promovido pelo Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper, no dia 11 de julho. Com mediação de Carlos Melo, cientista político e professor no Insper, o evento contou com a participação de Maria Tereza Sadek, professora e diretora de pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, e de Sérgio Abranches, cientista político que, em trabalho de 1988, cunhou a expressão “presidencialismo de coalizão”. Confira a seguir alguns destaques do bate-papo.
“É a minha bibliografia que está aqui”, brincou Carlos Melo ao abrir o encontro, referindo-se aos convidados, ambos referências em Ciência Política no Brasil. Em sua fala inicial, o professor do Insper relembrou como o Poder Executivo, antes quase hegemônico, foi perdendo força na última década — mas não em direção a um equilíbrio. “Crescemos de certa forma imaginando o momento em que teríamos uma relação mais equilibrada entre os poderes”, disse. “Mas, na última década, parece que a balança pesou acentuadamente para o outro lado.”
Isso porque, na outra ponta, o Supremo Tribunal Federal, representando o Poder Judiciário, teria se fortalecido para além do que seria razoável, comentou Melo. “O Judiciário parece viver momento interessante, no qual hoje o Executivo se protege no STF”, disse. Por outro lado, o Legislativo, que antes aviltava-se diante do Executivo, assumiu atribuições que deveriam ser exclusivas do governo.
“Eu diria que um marco inicial disso seria o crescimento de Eduardo Cunha e a dificuldade da presidente Dilma em compreender aquele processo”, observou Melo. Mais tarde, esse processo foi agudizado, quando da prisão de Fabrício Queiroz, na decisão de Jair Bolsonaro de fazer acordo com o Legislativo. “É onde ele [Bolsonaro] cede, cedendo o orçamento, o Ministério da Saúde, a Casa Civil.”
Como consequência, o Poder Executivo se viu cada vez com menos capacidade de barganha e negociação. “O pêndulo tem que voltar para o equilíbrio”, afirmou Melo. “Mas agora parece que é muito mais difícil de voltar.”
“Queria começar dizendo o seguinte: vocês chamam de desequilíbrio dos poderes?”, questionou Maria Tereza. “Acho que equilíbrio dos poderes nunca houve, nem mesmo no contexto em que essa ideia foi lançada.” Para ela, esse conceito de equilíbrio veio de forma abstrata entre os brasileiros com a Constituição de 1988. “Mas é simplesmente um modelo institucional, que indica quais são as virtualidades e o que os atores e agentes podem fazer.”
O conflito entre os poderes teria se instalado, na verdade, desde o começo — nunca houve uma fase de “equilíbrio”. “Nós fazemos, como você [Carlos Melo] bem disse, um hiperpresidencialismo”, afirmou. “E o Sérgio [Abranches] analisou isso de forma magistral: as dificuldades de governar vinham da dificuldade de fazer coalizações; dificilmente você tinha um Executivo com maioria no Legislativo.” Já o Judiciário cumpria a função de controle da constitucionalidade. Seria a partir disso que ele tinha a atribuição de poder desfazer ou anular decisões tanto do Executivo quanto do Legislativo.
Mas, em um momento de crise dos poderes, o Judiciário acabou ganhando força. “O processo de institucionalização, sobretudo da Suprema Corte, é um processo de crescimento”, disse a professora. “E ao crescer, necessariamente, ele entra em conflito”, assumindo um papel que iria além do que seria sua área de atuação.
Assim como Melo, Maria Tereza destacou o governo de Jair Bolsonaro como um período em que essa tendência teria se fortalecido. “O Judiciário acabou sendo muito aclamado com aquela teoria da democracia militante que foi criada na época”, disse. “Era necessário combater qualquer ameaça à democracia, mas a partir daí temos aquilo que a literatura chama de ‘juristocracia’ ou ‘ministrocracia’”. Cada ministro, nesse sentido, tem muito poder. Algo que, paradoxalmente, acaba indo de encontro à Constituição.
Já Sérgio Abranches destacou em sua fala que, apesar da crise do enfraquecimento do Poder Executivo, o presidencialismo de coalizão não acabou, mas está em uma crise profunda — que deve demorar ainda muito tempo para se resolver eleitoralmente. Para ele, a crise foi desencadeada sobretudo a partir de 2014. “Na reeleição de 2014 houve dois fatos importantes”, disse. “O primeiro foi que, pela primeira vez, um partido que disputava a presidência da República deslegitimava a vitória do outro — Aécio Neves, do PSDB, contestou a vitória da Dilma. Isso foi um golpe institucional, um soco nas instituições.”
Para explicar por que essa atitude teria tanta relevância para enfraquecer as instituições, Abranches lembrou que o Brasil, na prática, funcionou durante muito tempo como um sistema, praticamente, bipartidário. A terceira “via” nunca chegou a mais de 15% dos votos — PSDB e PT sempre tiveram em torno de 70% dos votos no primeiro turno. Era essa força “bipartidária” que organizava, por sua vez, a disputa política no eixo multipartidário, os partidos que compunham as cadeiras no Legislativo, para fazer parte da coalizão de governo. “É o presidencialismo, é o presidente o guia, que dá a direção das coisas”, disse. Quando isso se fratura, vem a desorganização desse eixo de disputa política.
Além disso, segundo Abranches, havia as coligações eleitorais — hoje proibidas —, o que agravava ainda mais a fragmentação política. “Ela começou a ter um efeito predatório”, afirmou. Muitos pequenos partidos foram criados, focados em acessar o fundo partidário e aumentar a influência no Congresso.
O impeachment de Dilma Rousseff em 2016 se destacaria como um ponto de virada, no qual o governo não conseguiu manter uma coalizão sólida. Nos governos anteriores, como o de FHC e Lula, havia partidos que atuavam como mediadores, agregando correntes partidárias diversas e mantendo a coalizão coesa. Com a dispersão partidária, não havia mais partidos grandes o suficiente para desempenhar esse papel. Já Bolsonaro, ao perceber que não poderia governar sem coalizão, acabou transferindo o poder para o então presidente da Câmara, Arthur Lira, e o orçamento para o Congresso (sob o comando de Lira), no lugar das alianças tradicionais. Isso resultou na criação do orçamento secreto, consolidando o Poder Legislativo e desestabilizando ainda mais o presidencialismo.
Em 2022, o fim das coligações proporcionais e a cláusula de barreira contribuíram para reduzir a fragmentação, mas resultaram em diversas bancadas sem poder de veto. Na prática, não é mais possível fazer maiorias, já que as coalizões efetivas ficaram praticamente impossíveis. Isso, por sua vez, gerou instabilidade. Nesse contexto, o Judiciário acabou se destacando como espécie de refúgio daqueles que não conseguiam se fazer ouvir. “Em geral, os partidos que acionam o Supremo são os minoritários”, observou Abranches. “Houve uma declaração de um representante da Assembleia que dizia, ‘se eu não vou para o Supremo, ninguém vai ficar sabendo da nossa existência’”. De uma corte constitucional, o Supremo se tornou uma corte criminal e de costumes. “Eles têm regido muitas questões, inclusive ligadas aos costumes. Isso provoca um conflito enorme entre o Judiciário e o Legislativo”, disse Abranches.