O encontro Café com Política, conduzido pelo professor Carlos Melo, recebeu os economistas Cristovam Buarque e Edmar Bacha
Leandro Steiw
Como um repeteco da experiência registrada no livro Conversa com Edmar Bacha, os economistas e professores Cristovam Buarque e Edmar Bacha foram os convidados do encontro Café com Política, conduzido pelo cientista político Carlos Melo, professor do Insper, no dia 25 de junho. “Eles são dois personagens absolutamente fundamentais da história do Brasil nos últimos 50 anos”, apresentou Melo. A conversa inclui as conquistas da estabilidade econômica pós Plano Real — do qual Bacha foi um dos idealizadores —, os riscos que a economia ainda corre 30 anos depois da criação da nova moeda e o desafio persistente da desigualdade social.
Depois de lembrar que retornou ao Brasil, em 1970, a convite de Bacha, então chefe do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Buarque reforçou que sua vocação é a de professor. “Entrei na política por acaso, mas mudou minha vida, e acho que, do ponto de vista da realização, para melhor”, disse ele. Na opinião de Buarque, o livro tem três qualidades: a descrição da formação dos cursos de pós-graduação em Economia no Brasil, a discussão sobre o conceito de Belíndia — proposto em plena ditadura militar pós-1964 — e a rememoração do Plano Real como o fato que encerrou a trágica história da moeda brasileira.
Buarque disse que, até 1994, o Brasil era um país que não tinha moeda. Citou o comentário do economista Gustavo Franco, que fazia parte da equipe do Plano Real, de que o Brasil tinha inflação média mensal de 16% nos 15 anos anteriores à criação da atual moeda. “Nós nos acostumamos a não ter moeda por conta da tal da indexação, que não passa de um sonifero para quem está com dor, que faz dormir, mas não cura”, afirmou ele. Buarque quis saber de Bacha quais são os riscos que o real ainda corre e como é possível transformar a Belíndia em Brasil.
A Belíndia apareceu num artigo em forma de fábula que Bacha publicou em 1974, no semanário “Opinião”, caracterizando a estrutura social brasileira. Em resumo, segundo o texto, o Brasil seriam dois países simultaneamente: uma Bélgica rica cercada por uma Índia pobre, refletida na má distribuição de renda. Desde então, outros economistas cunharam expressões para descrever a desigualdade social brasileira, mas uma característica parece pôr a economia em risco permanente. “Nós temos um governo balofo, que leva para casa um terço do PIB e não devolve em serviços públicos”, afirmou Bacha.
Ele comparou o crescimento da produtividade do agronegócio de 1995 ao de 2023. “O agro tinha 20% da produtividade da economia como um todo e hoje já está praticamente em 90%, enquanto a indústria tinha uma produtividade de 180% e voltou para 100%”, disse. “O agro progrediu porque tratou de produzir — por meio de explorações tecnológicas com a participação do estado, via Embrapa — bens com capacidade, em termos de custo, de concorrer com Estados Unidos e Canadá nos mercados mundiais. E a indústria continua olhando para o próprio umbigo, explorando monopolisticamente o mercado interno com preços surreais e incapaz de concorrer internamente.”
Buarque tratou de responder à própria pergunta: “Creio que o risco do real é que a cultura brasileira continua sendo a voracidade por consumo e a anorexia por poupança. Temos um fascínio pelo consumo. Os indivíduos consumidores por consumir cada vez mais, e os políticos populistas querendo gastar cada vez mais. Esses dois fatos, juntos, fazem com que o real, com toda a sua genialidade, seja como toda moeda frágil que depende da realidade”.
Para Buarque, a voracidade por consumo e a baixa taxa de poupança ajudam a explicar a aversão pela ideia do teto de gastos do governo. “E o fechamento e a estatização também exagerada, mas não a estatização de empresas, e sim a estatização de controles, que transformam grupos de funcionários em verdadeiros ditadores”, disse ele. “Está na quantidade de projetos que estão barrados e esperando avaliação dos órgãos de controle de proteção do meio ambiente. É um negócio que não tem justificativa do ponto de vista moral. É a volúpia pelo poder de alguns grupos que confundem o equilíbrio ecológico com conservacionismo. E, pior, conservacionismo com o poder de impedir que algumas coisas sejam feitas.”
Em relação à Belíndia, Buarque acredita que a desigualdade social vem, sobretudo, da desigualdade na educação: “Precisamos aumentar a produtividade, sem dúvida alguma, mas tem que distribuir melhor essa riqueza. E ela não será distribuída de helicóptero, jogando dinheiro para todo mundo. Só se tivermos empregabilidade e produtividade. E empregabilidade vem, sobretudo, da educação. Por isso, é preciso colocar os meninos e as meninas da Índia e na mesma escola que os meninos e as meninas da Bélgica. Calculo que levaria de 20 a 30 anos, mas a gente precisaria para fazer isso no país inteiro”.
Instigando o debate, Melo questionou se a política pode contribuir no processo de viabilizar a economia do país, diante de um Congresso Nacional que não discute mais a grande política e o Brasil e que se tornou um “colonialismo de emenda e voto”. “A gente sabe que a economia é muito da política”, disse Melo. “O quanto foi difícil aprovar o Plano Real no Congresso, mas foi possível fazer isso com o tempo, com uma boa política. Era um sistema político que ainda tinha um número menor de partidos do que tem hoje, muito menos fragmentado e no qual ainda conseguia se discutir as grandes questões do sistema político.”
O público quis saber se o avanço de forças extremistas em todo o mundo e a polarização podem atrapalhar o debate político. “Hoje há um divórcio entre humanismo e democracia”, afirmou Buarque. “A democracia que era para ampliar direitos agora é para proteger privilégios. Veja a Europa, onde a política é contra estrangeiros. Para o humanismo não existe estrangeiro. Dentro do Brasil, nós temos os ‘intrangeiros’. Os pobres são ‘intrangeiros’ iludidos na hora de votar e que votam para manter os privilégios que eles acham que um dia vão ter. O real foi um cansaço com a inflação. Vamos chegar ao momento em que haja um cansaço com a desigualdade, a ineficiência, a baixa produtividade e a má distribuição de renda.”
Sobre educação, Bacha acredita que o cuidado fundamental é a primeira infância, começando pela gestante e prosseguindo com a creche. “São essas intervenções que estão a ter a maior rentabilidade no sentido de capacitar os mais pobres, os mais desvalidos, para poder concorrer já no ensino primário”, disse Bacha. “Eu não compro essa ideia de que o grande problema do Brasil são os políticos. O grande problema do Brasil são os grupos de interesse, as corporações, os empresários, as corporações públicas. Na defesa de seus interesses, impedem que se façam as reformas. Porque, se tiver liderança política e boas ideias, você chega ao parlamento e negocia.”
Pensando em políticas públicas de combate às desigualdes, Buarque sugeriu ao público aprender com o passado, mas não segui-lo irrestritamente. “A gente tem que acabar com a nostalgia pelas ideias antigas”, afirmou ele. “A gente tem que adorá-las e admirá-las como quando se vai a um museu. Mas para hoje tem que se criar novas ideias. E nunca perder o compromisso com a realidade.”