“O diálogo sobre a pobreza vai além da falta de renda e considera dimensões como acesso a saúde, educação, moradia, condições laborais, senso de segurança, empoderamento e participação cidadã. Os desafios transcendem a renda básica e exigem um olhar mais abrangente.” A afirmação é de Adriana Conconi, especialista em desenvolvimento e políticas públicas para erradicar pobreza e especialista em Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Escritório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para a América Latina e o Caribe, além de diretora de dados e mensuração de impacto social na VR Benefícios.
A executiva participou do 3º Encontro Anual do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, na mesa intitulada “Desigualdades e democracia na América Latina”. A íntegra do evento, realizado em 9 de agosto no auditório do Insper, está disponível neste link.
Em sua fala, Adriana destacou o contexto da pobreza na região e associou os índices aos governos locais. “A democracia, ou a ausência dela, está diretamente ligada aos índices de pobreza”, afirmou. Para ela, os ciclos de dificuldade financeira da população são mais intensos onde não há regimes democráticos. “Observamos que países com governos mais estáveis, em geral, apresentam maior crescimento, pois atraem investimento e inovação. Com isso, a pobreza tende a diminuir.”
Apesar da evolução pontual em países como Brasil e México, Adriana afirmou que a pobreza na América Latina tem se mantido em patamares semelhantes nos últimos 15 anos. “A pobreza é um desafio persistente e crônico. Para se ter uma ideia, na Europa, onde a taxa já era menor, eles conseguiram evoluir mais do que por aqui”, observou.
Adriana ressaltou que os desafios atuais da América Latina têm mudado ao longo dos anos. Apesar de programas de transferência de renda com relativo sucesso, os países da região enfrentam outras questões, como os choques climáticos. “Por exemplo, o Rio Grande do Sul ainda sofre as consequências das enchentes, assim como o Caribe enfrenta destruições constantes por fenômenos naturais. Quem mais sofre com esses episódios, cada vez mais recorrentes, é a população em situação de pobreza. Afinal, eles perdem mais e têm menos acesso a crédito e ferramentas financeiras para responder às catástrofes”, afirmou.
Adriana também apontou a piora do cenário de pobreza devido aos impactos da pandemia. “A verdade é que o mercado e os salários ainda não se recuperaram, e os grupos desfavorecidos enfrentaram a falta do básico durante o período. Além disso, ainda veremos os impactos do gap digital dessas populações, considerando que boa parte da sociedade evoluiu para se adaptar aos efeitos do confinamento, enquanto a parcela mais pobre não teve acesso a isso.”
Os participantes do painel, mediado por Alessandra Benedito, vice-presidente de equidade na Fundação Lemann, concordaram que a América Latina precisa de políticas integradas, em vez de um olhar segmentado. “As pessoas devem ser o foco da política social, com um olhar de inclusão constante”, disse Adriana.
Em sua fala, a professora Laura Müller Machado, coordenadora dos programas de pós-graduação em gestão pública no Insper, destacou que, apesar de avanços pontuais entre 2004 e 2012, o Brasil enfrenta desafios complexos no que diz respeito à pobreza. Ela começou lembrando que a desigualdade e a pobreza, embora interligadas, são conceitos distintos. Enquanto a pobreza se refere a um nível de renda abaixo de um determinado patamar, a desigualdade é uma medida comparativa entre grupos. “Ou seja, mesmo que um indivíduo saia da pobreza, ele ainda pode permanecer em situação de desigualdade”, observou.
De acordo com a professora, as principais formas de superar a pobreza podem ser resumidas em duas abordagens complementares. A primeira é o acesso à renda, por meio da transferências de recursos para indivíduos e famílias, o que contribui para tirá-los da condição de pobreza. Esse tipo de apoio, previsto pela Constituição brasileira, assegura o direito a uma renda mínima. A segunda abordagem é a inclusão no trabalho. O acesso à renda fortalece a capacidade das pessoas de se integrarem ao mercado de trabalho, permitindo que acessem bens e serviços essenciais.
Laura expôs os fatores que estão impedindo o Brasil de superar a pobreza. Entre 2012 e 2014, a renda per capita média dos 10% mais pobres era de R$ 177, mas caiu para R$ 163 nos anos recentes. Curiosamente, isso aconteceu enquanto o orçamento do Bolsa Família subiu de R$ 30 bilhões para R$ 168 bilhões, cinco vezes mais. Como isso foi possível?
Segundo a professora, a queda na renda do trabalho se deve à redução do acesso ao emprego. Em 2012, metade dessa parcela da população estava empregada, mas agora menos de 25% têm emprego. “O que está acontecendo é que estamos aumentando as transferências de renda e, ao mesmo tempo, excluindo essas pessoas do trabalho”, disse Laura.
“É importante mencionar, e aqui faço referência à dissertação de mestrado de Laura Abreu, defendida recentemente, mostrando que essas duas questões —transferências de renda e inclusão no trabalho — não conflitam. Não existe, nem deveria existir, o entendimento de que as pessoas em situação de vulnerabilidade precisam escolher entre transferência de renda ou trabalho”, ponderou. “Na verdade, elas precisam de ambos: do apoio das transferências e de um serviço de inclusão produtiva para se inserirem no mercado de trabalho.”
Para a professora Laura Machado, o Brasil já implementou iniciativas eficazes para erradicar a pobreza, como o programa Brasil sem Miséria, no governo Dilma. Esse programa se baseava em três pilares: renda mínima para alívio imediato, acesso a serviços de educação, saúde e cidadania, e inclusão no mercado de trabalho.
“Precisamos parar de tratar a educação, a saúde e a assistência social como coisas separadas. Não podemos oferecer apenas posto de saúde, ou apenas escola, ou apenas transferência de renda. É necessário centralizar todos esses serviços ao mesmo tempo para a população em extrema vulnerabilidade e ter programas eficazes e adequados que atendam a essas necessidades”, disse.
O pesquisador Michael França, que coordena o Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI), apresentou um recorte da pobreza sob a ótica da população negra. “Primeiramente, vou começar com uma boa notícia: quando olhamos para a educação, mais especificamente para a quantidade de anos de escolaridade, temos um avanço significativo nas últimas décadas. Quando observamos o ensino fundamental e o médio, brancos e negros estão convergindo em termos de taxa de matrícula líquida”, disse França. “No entanto, quando olhamos para o ensino superior, a desigualdade ainda é grande e a lacuna é persistente. Se analisarmos a questão racial no Brasil, essa é uma das poucas boas notícias que temos.”
França apresentou um gráfico no período de 1980 a 2020 mostrando uma lacuna racial significativa em termos salarial, com os negros ganhando em média 14,25% menos do que os brancos. “Um exercício de analogia que costumo fazer é o seguinte: imaginem que vocês sejam pessoas negras e eu seja um indivíduo branco. Temos a mesma ocupação, mas eu ganho 14,25% a mais do que vocês. Vou pegar esse dinheiro e investir todos os meses. A cada seis ou sete anos, poderei tirar um ano sabático, ficar um ano inteiro sem trabalhar, enquanto vocês continuarão trabalhando e não conseguirão alcançar o meu patrimônio. Isso reflete a desvantagem que os negros enfrentam no mercado de trabalho.”
Além da questão salarial, a desigualdade racial se reflete em outras áreas, como a representação política e as condições de saúde. França ressaltou que, embora tenha havido avanços na participação política de mulheres e negros, “o desequilíbrio racial e de gênero na política brasileira permanece significativo e persistente”. Essa realidade, segundo o pesquisador, perpetua a desigualdade estrutural, uma vez que as políticas públicas são frequentemente moldadas por homens brancos de alta renda, que trazem consigo vieses de classe, gênero e raça.
Outro fator crucial apontado por Franca para a manutenção das desigualdades raciais no Brasil é a discriminação social, que ocorre de forma sistemática e se manifesta desde a infância até a vida adulta. “Mesmo no ambiente familiar, os pais tendem a investir mais na educação da criança de pele mais clara”, disse o pesquisador, ilustrando como essa discriminação se perpetua ao longo da vida, desde a escola até o mercado de trabalho.
A alta segregação social no Brasil também contribui para a persistência dessas desigualdades, uma vez que diferentes grupos sociais vivem realidades distintas que influenciam suas escolhas e oportunidades. “Se sou um indivíduo da periferia, os modelos sociais que encontro lá serão aqueles que influenciarão minhas escolhas”, observou França. Essa segregação cria barreiras adicionais para a ascensão social de negros e pobres, dificultando a redução da desigualdade.
Por fim, França destacou a importância de mudanças estruturais nas políticas públicas e na sociedade para enfrentar essa realidade. Ele defendeu que, para fechar as lacunas de gênero e raça, é necessário “gerar mais modelos sociais e diminuir a segregação histórica”, além de promover maior diversidade na política, o que pode levar a políticas públicas mais inclusivas e equitativas.
Eliana Sousa Silva, professora do curso de pós-graduação em Urbanismo Social e pesquisadora do Núcleo Mulheres e Territórios do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper, compartilhou sua trajetória pessoal e profissional, destacando a experiência de crescer na Nova Holanda, uma das favelas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.
Ela relatou que, na década de 1990, ao fazer mestrado em Educação, buscou entender como a desigualdade se manifestava concretamente na realidade da Maré. Um dado significativo foi o baixo acesso da população local às universidades, com menos de 5% dos moradores frequentando o ensino superior. A partir dessa constatação, ela e outros membros da comunidade criaram um projeto de pré-vestibular comunitário, que, no primeiro ano, aprovou 33 de 90 alunos em universidades públicas. Esse foi um ponto de virada para a comunidade.
A partir dessa experiência, Eliana criou a Redes da Maré, uma ONG que atua em cinco áreas fundamentais: educação, arte e cultura, direitos urbanos e socioambientais, saúde, e segurança pública e acesso à justiça. “Escolhemos essas áreas porque acreditamos que elas são essenciais para transformar a vida na Maré e em outras favelas e periferias”, disse. A organização busca enfrentar a desigualdade e a pobreza com uma abordagem territorial e focada na realidade local.
Eliana ressaltou a importância da segurança pública para o acesso a outros direitos básicos, como educação e saúde, e lembrou que, em 2017, houve 33 dias sem aulas nas escolas da Maré devido a confrontos armados. “Não tem como pensar no acesso às políticas públicas sem considerar a questão da segurança. É preciso construir uma política de segurança que respeite e veja os moradores de favelas com a mesma dignidade que os de outras partes da cidade”, afirmou.
Por fim, Eliana reforçou que, para enfrentar a pobreza e as desigualdades no Brasil, é necessário considerar a complexidade dos diferentes contextos regionais e territoriais. “Nossa democracia é frágil e incompleta, incapaz de lidar com a complexidade brasileira e os problemas estruturais que enfrentamos. Precisamos avançar muito para compreender e enfrentar esses desafios, e reconhecer que a cara da pobreza no Brasil tem cor, gênero e CEP”, disse. “É necessário problematizar e focalizar políticas públicas que realmente tenham impacto e escala para transformar essa realidade.”