O evento anual realizado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper reuniu pesquisadores e especialistas nas temáticas de educação, violência e políticas públicas voltadas às questões raciais
Leandro Steiw
O Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI) reuniu pesquisadores e especialistas da academia, do governo e de organizações da sociedade civil no seu evento anual, realizado em 15 de setembro. Com o tema “A Cor da Desigualdade”, foram debatidas ideias e identificados desafios em políticas públicas, desigualdade educacional, violência e desdobramentos da desigualdade racial. Foi a oportunidade também de a equipe do NERI apresentar alguns dos resultados dos estudos desenvolvidos no último ano. O evento está disponível na íntegra neste link.
Ressaltando a importância de levantar melhores evidências para o desenvolvimento de políticas públicas na questão racial, o economista Michael França, coordenador do núcleo, lembrou que muitos desses pontos estão retratados no livro Números da Discriminação Racial, que o núcleo lançará no dia 27 de outubro, às 18h. “Pensamos no NERI como um centro de pesquisa que contribua para que os resultados na vida das pessoas não sejam reflexos do lugar onde nasceram ou da renda, classe social, gênero ou raça”, disse França. “Fazemos um trabalho coletivo com governos e outros institutos para gerar melhores oportunidades a milhares de brasileiros que têm as suas vidas limitadas pela exclusão social.”
Ainda neste ano, os resultados das pesquisas nas temáticas de educação, mercado de trabalho e segurança pública vão gerar workshops e minicursos do NERI. Segundo a administradora do NERI, Aline Durans, dois workshops serão ministrados no Nordeste, com o objetivo de introduzir alunos e professores no que há de mais moderno na pesquisa empírica relacionada às questões raciais. Parcerias na área de comunicação, com o Nexo Políticas Públicas e a Folha de S.Paulo, também estão ajudando a consolidar os esforços do NERI. “Queremos amplificar as vozes sobre desigualdade e dar espaço para pessoas de diferentes áreas de atuação – seja da cultura, seja da arte, da ciência, da inovação ou da tecnologia – falarem do seu lugar dentro de uma agência de transformação, provocando reflexões sobre a desigualdade no Brasil”, reforçou a jornalista Giulia Ebohon, também da equipe gestora do NERI.
Rodrigo Soares, vice-presidente acadêmico do Insper, afirmou que o Brasil tem poucos desafios maiores do que os apresentados no evento do NERI. “Para resolver problemas complexos, seja de política pública, seja de iniciativa privada, precisa-se de uma abordagem interdisciplinar”, disse. “O Insper está bem-posicionado para ajudar nesse desafio, de tentar pautar o debate com evidências sobre políticas públicas, para que a sociedade faça as suas escolhas a partir da informação.” Segundo Soares, evidências robustas limitam o escopo das narrativas que são aceitáveis.
A primeira mesa-redonda tratou de políticas públicas. Mirela de Carvalho, secretária- adjunta de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e Orçamento, apresentou o trabalho da secretaria. A questão racial faz parte do primeiro eixo de desenvolvimento social e garantia de direitos. O combate ao racismo e às desigualdades raciais será acompanhado por três indicadores no período de 2023 a 2026: taxa de homicídios de negros, razão entre o rendimento médio do trabalho de brancos e negros e razão entre as taxas de frequência líquida de brancos e negros ao ensino superior.
Em participação remota, Janiele de Paula, coordenadora-sênior em Lideranças no Setor Público da Fundação Lemann, explicou que a instituição atua para que haja percentagens mais equitativas de mulheres e negros nas posições de poder e nos principais cargos de autoridade. “O serviço público hoje é branco”, disse. “No alto escalão do executivo federal, temos 9% de mulheres negras em posições de liderança. Política pública não é só assunto de governo, é de todos nós. Precisamos que pessoas negras, mulheres e indígenas também sejam formuladores de políticas públicas, não só beneficiários.”
Também por videoconferência, Zelma Madeira, secretária da Igualdade Racial do Ceará, contou que uma das primeiras preocupações ao assumir o cargo, em 2023, foi buscar evidências estatísticas que demonstrassem como se estabelece e manifesta o racismo. Desde então, um dos parceiros é o NERI. “Os desafios são imensos, mas o que nos dá tranquilidade para seguir nessa trajetória são as parcerias”, afirmou. “Enquanto não tivermos o desenvolvimento e a preocupação como centralidade da igualdade racial, não teremos paz, democracia e desenvolvimento sustentável.”
Na abertura da segunda mesa-redonda, sobre desigualdade educacional, o economista Alysson Portella, da equipe gestora do núcleo do Insper, mostrou como os dados em educação são importantes para explicar as desigualdades no mundo contemporâneo. A disparidade no número de anos de escolaridade entre pessoas brancas e negras explica 50% das desigualdades raciais em salários no Brasil — favoravelmente aos brancos. “Sem acabar com as desigualdades na educação, não vamos conseguir eliminá-las no mercado de trabalho”, disse Portella. Os benefícios da educação estão espalhados em toda a formação da criança, desde a pré-escola, e perpassam as diferenças fases da vida das pessoas.
João Marcelo Borges, gerente de pesquisa e inovação do Instituto Unibanco e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas, citou um dado frequentemente debatido: 1% da população brasileira detém 48,4% da renda nacional do país, proporção superior à de países ricos como os Estados Unidos e a França. “Esse 1% é majoritariamente branco e não repete a distribuição étnico-racial do país”, afirmou. “Qualquer discussão sobre racismo estrutural ou tentativa de igualar a defesa das populações negras, pretas e pardas a uma agenda somente identitária é desconhecer que essa população é a maioria constitutiva da população brasileira marginalizada e excluída socioeconomicamente desde a fundação do Brasil, com aspectos de crueldade.”
Para Zara Figueiredo, secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação, há efetivamente uma segregação velada na educação. “A forma universalista como a educação básica foi construída, mesmo que historicamente se soubesse que havia um índice de desigualdade muito grande, levou a outras formas de segregação, explicitadas na aprendizagem, na infraestrutura e no financiamento das escolas que os negros frequentam”, disse. Além da qualificação de professores, Zara apontou perspectivas na formação de “atores estratégicos educacionais”, sobretudo os tomadores de decisão, não só nas secretarias, mas no âmbito intraescolar.
Com uma apresentação incisiva, Frei Davi, fundador da organização não governamental Educafro, recomendou a leitura do livro A Tirania do Mérito, do filósofo norte-americano Michael J. Sandel. Ele relacionou as ideias do autor, sobre os riscos da meritocracia para a sobrevivência das democracias liberais, às dificuldades de acesso e permanência das pessoas negras no sistema educacional brasileiro. “Considerem a obrigatoriedade de ler até dezembro esse livro, que demonstra que as provas universitárias são uma tirania com os negros e os pobres”, afirmou. Frei Davi também criticou o silêncio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante da PEC 9, proposta de emenda à Constituição que perdoa as multas dos partidos que descumpriram a cota mínima de repasses de recursos dos fundos partidário e eleitoral para candidaturas de mulheres, negros e indígenas até as eleições de 2022. “Estimamos que a PEC vai atrasar o ingresso da mulher negra e do homem negro na política em mais de 60 anos”, disse.
Fechando o debate sobre educação, Ellen da Silva, cofundadora e diretora de formação da Mahin Consultoria Antirracista, listou os desafios para o país criar uma democracia racial de fato, e não um mito persistente. Ela expôs trechos de legislação restritiva em 1837 que proibia escravos, mesmo os libertos, e pretos africanos a frequentarem escolas públicas. Também mostrou como as ideias de eugenia e racismo eram comuns no início do século 20, inclusas nas Constituições de 1934 e 1945. “O Estado brasileiro foi omisso na inclusão de pessoas negras e indígenas e também ativo na inferiorização delas”, afirmou. Se fosse possível ilustrar a história do Brasil em uma sequência de cinco dias, o período de escravidão africana ocuparia quase três dias e meio e as primeiras experiências de ações afirmativas para pessoas negras só apareceriam nas últimas quatro horas dessa agenda.
Os convidados da terceira mesa-redonda trataram do tema violência. Pesquisador do NERI, o economista Alisson Santos falou sobre a taxa de homicídios no Brasil de 2010 a 2021, que vitima mais pessoas negras do que brancas. Mais: negros são 80,6% das vítimas de 15 a 19 anos e 78,3% das de 20 a 29 anos. “Somados, eles representam 50% dos homicídios no Brasil no período”, disse. Conforme Santos, quatro componentes explicam a violência: ausência de atuação do estado, desigualdade no acesso à educação e aos empregos, desigualdade de renda e social e acesso desigual à Justiça (incluindo o encarceramento em massa). Um dos caminhos para mitigar a violência é a necessidade de afastar o pensamento baseado em crenças na política de segurança pública.
Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, complementou com dados sobre a relação entre homicídios e disponibilidade de armas de fogo. Entre os homens, 78% das vítimas foram mortas a tiros; entre as mulheres, 50%. “Chamo a atenção para o peso da violência policial contra os jovens negros, principalmente homens”, comentou. Em São Paulo, por exemplo, o uso de câmeras corporais por policiais ajudou a reduzir a morte de adolescentes em 2022, mas a taxa cresceu novamente em 2023, o que indicaria que uma boa prática não está sendo promovida e estimulada pelo estado.
Juliana Ribeiro Brandão, pesquisadora-sênior no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apresentou uma perspectiva da violência contra as meninas e mulheres negras. Os motivos não são escassos: as políticas para mulheres foram esvaziadas, cresceu o ódio às mulheres e o isolamento causado pela pandemia da covid-19 impediu as mulheres de acessarem os canais de denúncia. “As crianças estão sendo as maiores vítimas da violência sexual, e os agressores são pessoas próximas das crianças e de dentro da família”, afirmou. “Estou falando também de um crime que acontece em casa. E o agressor na maioria das vezes é o parceiro.” Ela disse que as estatísticas sobre feminicídios acabam prejudicadas porque dependem de um agente público que constate a violência e enquadre o crime como um homicídio gerado pelo fato de a vítima ser mulher.
Para reduzir a violência, a Justiça pode tentar reduzir o crime principalmente pelo aumento da severidade da pena ou pelo aumento da probabilidade de punição, explicou Laura de Carvalho Schiavon, professora do Departamento de Economia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Estudos mostram que a severidade reduz o crime momentaneamente, mas pode causar o encarceramento em massa. “Há evidências de que a prisão pode ser uma escola do crime”, afirmou. Já o aumento da probabilidade de punição funciona bem na direção de se dissuadir dos crimes, fazendo as pessoas optarem por não os cometer. O incremento da probabilidade de punição pode ser obtido por estratégias de policiamento, inovações tecnológicas para atender a demanda da justiça criminal, legislações específicas para os tipos de crimes e estratégias para ganho de celeridade na Justiça. Mas os pesquisadores ainda precisam demais dados para entender essas estratégias.
Na quarta e última mesa-redonda, sobre desdobramentos da desigualdade racial, Alessandra Benedito, professora e pesquisadora do curso de Direito da Fundação Getulio Vargas, disse que os impactos do racismo se acumulam em um emaranhado de injustiças que são naturalizadas como justas. Essas injustiças aparecem, por exemplo, no acesso à educação e ao mercado de trabalho — mesmo aos que estudaram. Como consequência, uma sobrecarga de culpa cai sobre os ombros dessas pessoas, pois elas nunca se percebem preparadas o suficiente para corresponder às necessidades desse mesmo mercado de trabalho. “E o acesso ao trabalho é um elemento essencial para nós, um espaço de pertencimento para o qual somos preparados desde cedo para estar, não só por motivos econômicos”, afirmou.
Iara Rolnik, diretora de programas do Instituto Ibirapitanga, contou como os programas em equidade racial e em sistemas alimentares foram se mesclando desde a fundação da entidade, em 2017. “O programa de equidade racial pretende ampliar a representatividade simbólica e política da população negra, consolidar inciativas de ação afirmativa e fortalecer movimentos antirracistas”, explicou. Ela observou que o racismo é um elemento estrutural das desigualdades no Brasil, perpetuado no mito da democracia racial e na abolição inconclusa, entre outros fatores. “A renovação constante desse fosso estrutural impede qualquer sonho democrático para o Brasil”, disse.
Dados e evidências que dialoguem sobre a existência do racismo e das medidas para superá-lo são objetivos do Instituto DACOR, segundo seu cofundador Helton Souto. “Principalmente trazendo as pessoas negras para a centralidade das ações e as brancas e em posição em liderança para a mesma causa”, afirmou. “Ao longo da nossa história, esse país fez uma série de legislações para excluir e incluir, mas mesmo nas melhores iniciativas não trouxe as pessoas negras, indígenas e quilombolas para a centralidade. Não podemos mais nos furtar a isso. A população do Brasil é 56% negra, e muita gente esquece isso.”
Marcio Black, coordenador executivo de projetos do Instituto de Referência Negra Peregum, comentou que os dados apresentados no evento “A Cor da Desigualdade” deixam nítido onde o corpo negro é dobrado no racismo. Mas o país sofre o que Black chama de “desdobramento de personalidade”. Uma pesquisa do instituto Peregum retratou: 81% dos brasileiros reconhecem o Brasil como país racista, 47% percebem o racismo como principal fator de desigualdade no país e só 11% se identificam racistas ou frequentam espaços de lazer, profissionais e familiares nos quais o racismo acontece. “É o racismo sem racista, o tal desdobramento de personalidade”, afirmou. “Hoje, a gente acessa recursos, se qualifica, sabe que tem que se preparar, acessa os espaços públicos e as universidades. Mas, não importa o que a gente faça, o racismo sempre vai criar novas barreiras. É a isso que a gente tem que ficar atento.”