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Como o passado de escravização perpetua as desigualdades raciais no Brasil

Os países que mais utilizaram o trabalho escravo têm níveis de disparidade elevados no presente, diz o economista Alysson Portella, do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

Os países que mais utilizaram o trabalho escravo têm níveis de disparidade elevados no presente, diz o economista Alysson Portella, do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

Escravos em fazenda de café no Vale do Paraíba_Marc Ferrez_Coleção Gilberto Ferrez:Acervo do Instituto Moreira Salles
Escravos em fazenda de café no Vale do Paraíba, por volta de 1882 (Foto: Marc Ferrez / Coleção Gilberto Ferrez / Acervo do Instituto Moreira Salles)

 

Leandro Steiw

 

Para marcar a reflexão sobre as consequências do tráfico de escravizados africanos na história mundial, a Organização das Nações Unidas estabeleceu 23 de agosto como o Dia Internacional para a Lembrança do Tráfico de Escravos e sua Abolição. A data coincide com a do levante popular em São Domingos, no Haiti, em 1791, que deu início à guerra de independência e à libertação dos escravizados na hoje república caribenha, com repercussão por todo o continente americano.

Assim como em diversos países marcados pelo tráfico transatlântico entre os séculos 16 e 19, a persistência da desigualdade racial no Brasil está relacionada aos anos de escravidão, diz o economista Alysson Portella, pesquisador e gestor do Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI). Enlaçada à discriminação racial, a perpetuação das diferenças manifesta-se nas oportunidades de educação, remuneração no trabalho, acesso à saúde primária e participação política.

Em parceria com o economista Rodrigo Soares, vice-presidente acadêmico do Insper, Portella compila evidências empíricas de que os países que mais utilizaram o trabalho escravo no passado colonial têm níveis de desigualdade elevados no presente. Ambos assinam o capítulo do livro com a síntese das pesquisas em questões raciais e de gênero produzidas pelo NERI, que será lançado em outubro.

Os estudos demonstram que os efeitos do passado escravagista se revelam principalmente na disparidade na educação e na representação política. “Nos Estados Unidos, onde há diversos bons trabalhos a respeito, a participação de pessoas negras nas eleições é menor nos condados que usaram trabalho escravo intensivo no passado”, afirma Portella. “Nesses lugares, há mais animosidade entre pessoas brancas e negras no presente, o que fortalece a discriminação, com vieses na educação e na política.”

O tráfico de escravos era um negócio muito lucrativo, por isso deixou uma contabilidade detalhada, observa Portella. Os registros históricos sobre o comércio de escravos documentaram os números da escravidão transatlântica, rota do comércio humano da África para o Brasil. Esses dados estão disponíveis no site SlaveVoyages, mantido por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da Europa, África, América do Sul e América do Norte. Dos 12,5 milhões de pessoas escravizadas na África de 1501 a 1866, 5,5 milhões foram desembarcadas em território brasileiro entre 1560 e 1850.

Parte da explicação vem da proximidade geográfica e do chamado comércio triangular. Commodities como açúcar, algodão e tabaco eram levados para a Europa, transformados em produtos manufaturados e trocados por escravos na África. “O Brasil é um caso tão extremo desse tráfico que se instituiu um comércio bilateral”, diz Portella. “Os navios saíam do Brasil com produtos, levavam diretamente para a África e voltavam de lá com escravizados. Havia um comércio intenso entre os dois continentes. E, de acordo com o Censo de 1872, os escravizados representavam 15% dos habitantes no Brasil, onde quase 60% da população era preta e parda.”

 

Alysson Portella
O economista e pesquisador Alysson Portella

 

Expressões da discriminação

É possível citar várias expressões da desigualdade nos dias de hoje. O salário médio do trabalhador negro no Brasil é metade do pago ao homem branco — a discrepância cresce se a comparação for entre uma mulher negra e um homem branco. As diferenças devem-se à escolaridade e a outros fatores de capital humano e também ao local de moradia da população negra, majoritariamente representada na região mais pobre do Nordeste. Segundo Portella, mesmo controlando a influência desses fatores na amostra, a diferença de salários entre negros e brancos chega a 15%.

Os avanços nas políticas públicas desde a redemocratização do país, nos anos 1980, ainda não conseguiram equilibrar as oportunidades como se esperava. Até a década de 1990, os jovens negros de 18 anos tinham, em média, dois anos a menos de estudo na comparação os brancos. A partir dos anos 2000, com a universalização do ensino básico, a diferença caiu para meio ano de estudo. Ou seja, embora reduzido, o degrau não foi eliminado.

O acesso igualitário ao ensino superior segue uma meta, mesmo com uma década de política de ingresso à universidade por cotas raciais. As notas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também divergem conforme a raça e a classe socioeconômica — o que reduz a possibilidade de jovens negros disputarem vagas nos cursos que formam profissionais com remunerações potencialmente mais altas, como a Medicina. Depois de entrar na faculdade, o aluno mais pobre precisa chegar até a formatura diante de condições financeiras desfavoráveis.

Para Portella, há outros indicativos de que a questão da desigualdade racial não é apenas econômica. “O Brasil apresenta taxas muito baixas de mobilidade social, então qualquer pessoa que nasça entre os mais pobres terá muita dificuldade de chegar aos mais ricos”, afirma. “Os brasileiros que nascem no topo da distribuição de renda têm 50% de chance de permanecerem no topo. Porém, brasileiros que nascem entre os mais pobres têm apenas 2,5% de chance de chegar ao topo. Isso é resultado de um processo secular de desprezo pela educação pública. Durante boa parte do século 20, o Brasil sempre esteve atrás dos vizinhos latino-americanos na questão educacional, por exemplo.”

O racismo impregnado na sociedade brasileira pelo passado de escravização afeta a representatividade. “O chamado role model, aquelas pessoas que se tornam um modelo que inspira, é muito importante na identificação racial e na escolha da carreira”, diz Portella. Ele cita a tese de doutorado do economista Michael França, coordenador do NERI, que explica como os papéis de artistas negros nas telenovelas — basicamente intérpretes de empregados domésticos — geravam a propensão de os telespectadores negros classificarem os seus filhos como brancos, num tipo de defesa ao estereótipo espalhado pela TV.

As cicatrizes da escravidão na história do país são tão profundas que os seus efeitos acabam permeando justificativas de variados espectros ideológicos, mesmo de quem discorda do argumento. “Se alguém pensar que a desigualdade racial é só fruto das diferenças socioeconômicas das pessoas e que não existe uma questão discriminatória em si, ainda assim a desigualdade será por causa da escravidão”, afirma o pesquisador.

Portella prossegue: “O negro era escravo, tinha uma condição socioeconômica inferior no momento da abolição e essa condição foi se perpetuando ao longo do tempo. Da mesma forma, quem olha para a escravidão como a origem da desigualdade, mas salientando a questão da discriminação, apontará como a escravidão criou uma ideologia racista que inferioriza a população negra e perpetua a desigualdade entre brancos e negros. É disto que se trata a persistência histórica da desigualdade racial. A permanência de uma condição que já existia há mais de um século e que continua enraizada na vida do país”.

 

 

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