A democracia brasileira está em risco? Quais são as forças — internas e externas — em ação no processo democrático hoje? O que a crise política na Venezuela nos ensina sobre o jogo político e a força das instituições democráticas na América Latina? Essas foram algumas das questões abordadas durante a terceira mesa do 3° Encontro Anual do Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP), realizado em 9 de agosto no auditório do Insper. Com o tema central “Governança e democracia na América Latina”, o evento reuniu especialistas e acadêmicos para discutir temas fundamentais em torno da democracia, políticas públicas e preservação de direitos na América Latina e no Brasil.
Na terceira mesa, intitulada “Democracia na era dos extremos”, Denilde Holzhacker, diretora acadêmica de pesquisa e pós-graduação stricto sensu e professora da ESPM, Diego Werneck, professor do Insper especializado em direito público, Glenda Mezarobba, coordenadora acadêmica dos Centros de Conhecimento do Insper, e Silvério Zebral Filho, chefe da unidade de governança pública da Organização dos Estados Americanos (OEA), abordaram os desafios enfrentados pelas democracias latino-americanas. A íntegra do debate está disponível neste link.
Com a mediação de Vivian Satiro, coordenadora de gestão de projetos no CGPP, os participantes apresentaram suas visões, explorando as diferentes facetas da governança e da democracia na América Latina. Na fala de abertura, Silvério Filho destacou a importância de repensar as instituições e a própria concepção de democracia, apresentando um exercício de cenário feito pela OEA em 2020, que buscava entender o futuro da democracia pós-covid-19. “Boa parte da crise da democracia liberal está relacionada a um sistema político que se afastou da vida do cidadão comum”, afirmou Silvério.
O estudo identificou tendências sociais e políticas que afetam a governança e a democracia, categorizando-as em sociedades comprimida, aberta, fragmentada, conectada e líquida. Segundo Silvério, o Brasil incorpora todas essas tendências simultaneamente, o que ilustra a complexidade dos desafios enfrentados pelas democracias na região.
A sociedade aberta, por exemplo, imporia um desafio de escala e de jurisdição. Como exemplo, Silvério apontou situações em que um site de um governo no Brasil poderia ser derrubado por alguém em outro país. Já a sociedade fragmentada pode ser vista em sistemas de partidos pulverizados, que acabam por produzir um desinteresse da população no âmbito da política.
“Eu não consigo achar o partido que me representa, há uma sobrecarga cognitiva informacional”, disse Silvério. “Existe uma dificuldade enorme do cidadão comum e corrente de se identificar com o partido político.” Segundo ele, isso só torna mais difícil a participação em desenhos de políticas públicas, que exigem cada vez mais educação por parte do cidadão, que, ao contrário, está cada vez mais desinteressado da política.
Denilde Holzhacker chamou a atenção para como a dinâmica internacional afeta processos políticos domésticos e determinam o quanto governos mais ou menos democráticos ganharão força. Para ela, desde a primeira década do século há uma mudança na aceitação de sistemas políticos mais centralizadores. “Saímos de uma ordem internacional muito baseada nos princípios liberais, em que os valores democráticos estavam no centro, para a aceitação de regimes cada vez mais repressivos, limitadores das liberdades civis, com centralização do Estado”, afirmou.
Denilde destacou a importância dos incentivos internacionais e internos para a transição de governos autocráticos para democráticos, usando a Venezuela como exemplo. As sanções internacionais e a pressão interna pela mudança criaram um cenário em que o governo de Maduro foi pressionado a antecipar eleições, mas dificultou a atuação da oposição, mostrando a complexidade da transição democrática.
A resistência de Maduro ao processo democrático, apesar da pressão internacional, é explicada pela aceitação de potências como China e Rússia, que fornecem suporte ao regime venezuelano. Segundo Denilde, a crise democrática na América Latina precisa ser compreendida dentro dessa dinâmica internacional e dos desafios internos, como a desigualdade e a polarização social.
“A democracia brasileira está em risco?” Embora a questão tenha respostas variadas, o fato de ela ser central no debate público já indica uma mudança significativa no cenário político, afirmou Diego Werneck. “Essa era uma pergunta que não fazia sentido há 10 anos, ela estava fora da conversa”, disse o professor do Insper. “Hoje, a conversa é sobre isso.” E a questão seria crucial não só aqui, mas também em outros países da América Latina, onde indicadores de democracia eleitoral, como participação eleitoral e diretos políticos, têm caído nos últimos 20 anos.
Werneck destacou o papel dos tribunais na América Latina, que têm mostrado resistência à erosão democrática, mesmo sem uma tradição de independência. No Brasil, por exemplo, o Judiciário enfrentou desafios significativos durante o governo de Jair Bolsonaro, resistindo a medidas que ameaçavam o sistema democrático. “Os juízes são independentes de atores políticos, e isso os coloca em uma posição de resistir, inclusive a autores que tenham bastante apoio político”, disse. “Por outro lado, atores que atacam essas instituições tipicamente usam como um recurso retórico para mobilizar apoio à apresentação de certas instituições independentes como sendo inimigos do povo, inimigos da verdadeira vontade popular.”
Apesar do papel importante do Judiciário, Werneck enfatizou que ele não tem uma “bala de prata”. O Judiciário depende de apoio político e da opinião pública para agir, e o contexto político é crucial para determinar se os juízes agirão com independência ou se submeterão a pressões. O docente do Insper também questionou a eficácia do Judiciário em lidar com problemas como desinformação e polarização, que são fundamentais para a saúde da democracia, mas que vão além do alcance judicial. Para Werneck, questões estruturais, como educação e desigualdade, precisam ser abordadas para garantir a confiança nas instituições e a representatividade do regime político.
Glenda Mezarobba, por sua vez, trouxe à discussão o legado da ditadura militar no Brasil, focando no relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em dezembro de 2014 e de cujas negociações ela mesma participou. Segundo Glenda, o relatório, que recomendou medidas para consolidar a democracia e evitar a repetição de crimes do passado, foi amplamente esquecido após o impeachment de Dilma Roussef. Ao mesmo tempo, as recomendações do relatório, que já eram cruciais para a consolidação da democracia brasileira, tornaram-se ainda mais relevantes depois dos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro.
Entre as recomendações do relatório, Glenda destacou aquelas que buscam acabar com a impunidade e redefinir o papel das Forças Armadas no Brasil. Ela ressaltou a importância de transformar as forças de segurança pública em instituições democráticas e responsáveis, “especialmente em tempos de apologia a golpes de Estado”. Apesar das recomendações, apenas duas das 29 medidas foram implementadas até agora — a introdução de audiências de custódia para a prevenção de tortura e a revogação da Lei de Segurança Nacional.
Para Glenda, o Estado brasileiro ainda não conseguiu lidar de forma adequada com o legado deixado pela ditadura militar — algo que permanece vivo na política nacional. “Precisamos lembrar que, só em 2021, mais de 6.000 integrantes das Forças Armadas ocupavam cargos na administração pública federal”, observou. Por outro lado, segundo ela, o Estado brasileiro tem agora a oportunidade de retomar essa tarefa. “É necessário transformar as forças de segurança pública em instituições democráticas e accountable [termo em inglês que se refere à responsabilização e à prestação de contas por parte de pessoas ou instituições].”