A disparidade social, racial e de gênero no processo político não permite que todos tenham as mesmas chances, diz o economista Michael França
Leandro Steiw
O Dia Internacional da Democracia, instituído pela Organização das Nações Unidas em 2007, é comemorado em 15 de setembro. Nestes 15 anos de solenidades, o sistema no qual, por definição, o poder emana do povo fragilizou-se em várias partes do mundo. Em outras, nem se estabeleceu plenamente. No Brasil, às vésperas da eleição presidencial, em 2 de outubro, ainda se debate a consolidação da democracia.
“Há várias formas de você pensar democracia”, diz o economista Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais, ligado ao Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper. “Idealmente, todos os grupos sociais que participam do processo político deveriam ter uma chance equivalente de serem eleitos. E, com isso, se formaria um Congresso que seja um retrato da sociedade. Mas, quando se olha para o Congresso, nem de perto encontramos um espelho do Brasil.”
Estudos do núcleo, como Desigualdade racial nas eleições brasileiras, mostram que, em se tratando de patrimônio, a maioria dos parlamentares pertence à elite. “Além desse deslocamento entre o perfil socioeconômico dos congressistas e o da população brasileira, também há uma discrepância relacionada a gênero e raça, que são predominantemente masculino e branco”, afirma. “O que acontece é o seguinte: você participa de um processo político-democrático, mas essa democracia acaba lembrando uma aristocracia.”
França recorre à expressão “a democracia brasileira é inacabada”, frequentemente referenciada aos percalços históricos do país. “Houve um avanço muito grande e bastante interessante no sentido da oferta de candidatos”, diz. “O desequilíbrio racial e de gênero em vários estados brasileiros para deputados federais e estaduais não é tão acentuado quanto era no passado. Mas não se gera viabilidade competitiva para todos os candidatos, porque grande parte dos recursos vai para os homens brancos.”
A consequência mais imediata é que o eleitor toma contato, basicamente, com homens brancos. Abertas as urnas, são eles que se elegem. Logo, o processo eleitoral não resulta em representatividade significativa no Congresso. “Temos bons políticos no Congresso, mesmo homens brancos e de alta renda, que são bem-intencionados com as questões social, de gênero e racial”, afirma França. “Mas há também uma agenda política. Na hora de estabelecerem ordem de prioridades, muitas vezes esses homens brancos de alta renda bem-intencionados colocarão outras demandas na frente.”
Uma agenda escrita por iguais pode relegar outras vozes da sociedade a um segundo plano. Os investimentos em serviços públicos, por exemplo, fazem parte do processo político de decisão. “Se os representantes são apenas homens brancos de elite, uma obra pública, curiosamente, é levada para um bairro mais central, que já costuma concentrar os serviços de qualidade”, diz. “Uma estação de metrô, uma escola pública de qualidade, um hospital: os bens públicos que teriam grande impacto na periferia, às vezes, não chegam até lá.”
Para França, o candidato pode ser progressista e ter boas intenções, mas não significa que tenha a melhor percepção sobre as questões sociais. “Então, você vê várias pessoas que nasceram em berço de ouro achando que sabem falar de tudo sobre a periferia”, afirma. “E não sabem. Um líder da periferia, muitas vezes, vai ter uma compreensão mais assertiva das principais necessidades da comunidade do que um progressista da Vila Madalena, um bairro nobre de São Paulo.”
Melhorar a representatividade do Congresso, aproximando-o de um espelho da sociedade, ajudaria a mudar prioridades na agenda política, dirigindo a alocação de recursos públicos para aqueles que mais precisam. “Temos um círculo vicioso ao longo do tempo no qual a desigualdade socioeconômica se reflete em uma desigualdade política muito acentuada, e essa desigualdade política contribui para gerar mais desigualdade socioeconômica”, diz França.
Resumidamente, é o que indica a pesquisa Desigualdade racial nas eleições brasileiras. A disparidade vai se perpetuando na distribuição dos recursos eleitorais, porque um dos objetivos dos partidos é eleger o maior número possível de candidatos. E homens brancos com maior visibilidade, espaço na mídia, rede de influência, rede de contatos e capital político têm chances superiores de vencerem as eleições. A constatação vale para políticos estreantes ou experientes, capacitados ou não, de partidos de esquerda ou de direita.
Lidar com a máquina pública não é tarefa simples. Quem tem ascendência política sempre leva vantagem. E tradição não pressupõe apenas um sobrenome, mas renda e patrimônio para bancar a participação no custoso processo político e eleitoral. França observa que, como a tributação de herança é baixíssima no Brasil, caiu no senso comum que as pessoas merecem receber pelo trabalho de gerações anteriores. “Isso é nocivo para o herdeiro, porque essa ideia de não precisar trabalhar pode se reverter em uma pessoa com baixa capacidade de geração de valor social”, afirma.
Na opinião de França, é difícil aceitar uma ideia de democracia que se assemelha à aristocracia. Diversidade e democracia seriam dois conceitos inerentes? “A partir do momento em que se conseguisse garantir chances reais de todas as pessoas participarem do processo político, independentemente do lugar onde nasceram, do gênero e da cor da pele, poderíamos ter mais segurança em dizer que vivemos em uma democracia”, diz. “Mas ainda não temos essas condições. As chances não são equânimes entre todos os grupos. Existe um grupo que conta com grandes vantagens sistêmicas e determina os rumos da nação.”
Nesta democracia inacabada, nem tudo é motivo para pessimismo. “Há políticos que estão querendo transformar o Brasil, impactar positivamente”, afirma França. “E mesmo esse bom político pode aprender com a diversidade. Várias evidências mostram que as pessoas mudam de comportamento e transformam a sua forma de ver o mundo a partir da diversidade. O rico aprende com o pobre, o branco aprende com o negro, o homem aprende com a mulher, e vice-versa.” Uma democracia estará encaminhada quando agregar novas vozes e novas percepções da realidade.