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“Ilusões Perdidas”, de Xavier Giannoli, faz jus ao livro de Balzac

O filme, como o romance, é impiedoso com o jornalismo, mas induz à necessidade de refletir sobre o que se faz na atualidade, quando as informações, os debates e as ideias viraram mercadorias

O filme, como o romance, é impiedoso com o jornalismo, mas induz à necessidade de refletir sobre o que se faz na atualidade, quando as informações, os debates e as ideias viraram mercadorias

 

Carlos Eduardo Lins da Silva*

 

“Ilusões Perdidas”, a primeira parte do sétimo volume da “Comédia Humana” de Honoré de Balzac, deveria ser leitura obrigatória para qualquer pessoa com o desejo de se tornar jornalista.

Alguns professores o incluíam com destaque na bibliografia de seus alunos no último quarto do século 20. Talvez isso ainda ocorra atualmente, mas com os hábitos de consumo de comunicação dos jovens contemporâneos, talvez seja mais fácil colocá-los em contato com Balzac por meio do cinema.

Filme francês mais premiado do ano passado, “Ilusões Perdidas”, do cineasta Xavier Giannoli, faz jus ao romance em que se baseou, embora o diretor se tenha permitido diversas liberdades em relação à obra balzaquiana.

Isso não desmerece o resultado final do trabalho de Giannoli. Há indisfarçadas tentativas de provocar o espectador a relacionar o que ocorria na imprensa da França do início do século 19 com problemas atuais da profissão, por exemplo, o fenômeno da desinformação, mais comumente conhecido como “fake news”.

O personagem principal, cujas ilusões de jovem são perdidas com o tempo, é o poeta Lucien de Rubempré, para quem “tudo começou com tinta, papel e o amor à beleza”. Era poeta de província, com ambições de grandeza em Paris, aonde chegou pelas mãos de uma aristocrata de quem se tornara amante.

Na capital, para ganhar a vida, abandona os versos e vai trabalhar em jornais da “insolente imprensa parisiense com seu culto a frases de efeito e provocações”. Ele achava que a missão do jornalista era informar as pessoas sobre ideias, arte, o mundo. Mas logo se deu conta que não era bem assim.

Seu protetor, Étienne Lousteau, lhe explicou que artigos a favor ou contra alguma peça ou livro eram pagos por seus autores ou concorrentes, e que o principal objetivo de todos era causar polêmica para aumentar o consumo de produtos culturais e do jornal: “A única verdade que importa é o número das vendas”.

Giannoli, filho de jornalista, diz que não quis fazer um libelo contra a imprensa (“meu filme é contra um mundo que leva a imprensa a trair a si mesma”). Ele faz um bom trabalho de mostrar, às margens do enredo de amor que se desenrola no filme, como a imprensa de opinião se transformou em imprensa comercial.

O avanço tecnológico (imprensas rotativas, por exemplo) e melhores condições de vida dos trabalhadores da Europa e nos Estados Unidos (alfabetização universal, mais tempo para lazer, meios de transporte mais rápidos) permitiram que muito mais cópias fossem produzidas a custo mais baixo.

E a publicidade de produtos de consumo comprava anúncios para fazer crescer suas vendas, o que tornou o negócio do jornalismo muito mais lucrativo. Foram criadas agências de publicidade para ajudarem comerciantes e industriais a acharem slogans e imagens para turbinar seus bens e serviços.

Caio Túlio Costa, um dos professores de jornalismo que usaram “Ilusões” como instrumento pedagógico em suas aulas, diz que o livro oferece um “retrato fiel” do jornalismo cultural da época e, em alguma medida até do atual, embora a emergência do jornalismo profissional no fim do século 19 e início do 20, com seus cânones e códigos de ética, tenham melhorado as práticas.

O filme, como o romance, é impiedoso com o jornalismo, mas induz à necessidade de refletir sobre o que se faz na atualidade, quando, quase tanto quanto na época, as informações, os debates e as ideias viraram mercadorias.

Já quase ao final da fita, quando uma onda de repressão do governo contra os veículos de opinião que lhe faziam oposição desencadeia empastelamentos de jornais, alguém pergunta: “Que futuro tem um jornal sem papel nem gráfica”?

É um dos momentos que remetem ao século 21, quando ninguém precisa de papel ou gráfica para disseminar opiniões, ofensas, falsidades, difamações para públicos muito maiores do que os jornais já tiveram. Basta agora acesso às redes sociais e suas plataformas para tanto.

 

Carlos Eduardo Lins da Silva

*Carlos Eduardo Lins da Silva é professor do Programa Avançado em Comunicação e Jornalismo e coordenador do Centro Celso Pinto no Insper. Graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, é mestre em Comunicação pela Michigan State University, doutor em Comunicações pela Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo (ECA-USP) e livre-docente pela mesma universidade. É autor de diversos livros sobre jornalismo, comunicação e relações internacionais.


O filme “Ilusões Perdidas” está disponível na Apple TV. Veja o trailer aqui.

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