Desinfectórios, como este instalado em Campinas, no interior paulista, tinham como tarefa tentar conter o avanço da febre amarela
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Doenças infecciosas mal conhecidas se espalham e matam. Por causa das suas repercussões, instâncias do governo entram em conflito. A reação à epidemia prejudica os negócios. Eclodem pressões para que autoridades ampliem serviços sanitários e aliviem a tributação de empresas em dificuldade. Políticos são acusados de gastos desnecessários em meio à emergência.
Todos esses elementos, presentes na crise do novo coronavírus, também ocorreram na última década do século XIX, a primeira da vigência do regime republicano no Brasil. Estavam associados, como hoje, a uma aceleração na circulação de pessoas, o que levava patógenos, antes confinados em uma região, para outras em que eles ainda não eram prevalentes.
Em São Paulo, a interiorização da exploração do café e das ferrovias e a entrada de milhares de imigrantes europeus para trabalhar nessas lavouras vinham ocorrendo aceleradamente quando ascendeu a República no Brasil. Esses fatores também foram responsáveis pela disseminação de epidemias pelo país.
O vírus da febre amarela se implantou nas Américas, vindo da África ocidental com o tráfego de escravos, há cerca de 300 a 400 anos. Mas seus surtos urbanos, que ficaram durante muitos anos contidos nas faixas litorâneas, só ultrapassaram a Serra do Mar em 1889, levados pelos imigrantes que, do porto de Santos, tomavam os caminhos de ferro para trabalhar nas plantações, especialmente de café, do interior paulista.
Trajetos de estradas de férreo e de navegação fluvial no estado de São Paulo em 1896
Os ramais do transporte ferroviário, que se expandiam para alcançar as terras novas de cultivo agrícola, também foram espalhando focos da doença pelo trajeto. Ao mesmo tempo, uma nova conformação do Estado estava em processo após a proclamação da República e a Constituição de 1891. O modelo federalista, com a criação dos estados, no lugar das províncias existentes no Império, e a transferência de impostos de exportação que dariam mais recursos e autonomia a governos regionais, animava uma parte desse movimento de transformação.
Embora o conhecimento científico sobre os micróbios e os mecanismos de transmissão de doenças contagiosas já estivesse avançando, na década de 1890 ainda não se sabia que o mosquito Aedes aegypti era o vetor da febre amarela. Tampouco se considerava, como aconteceria décadas depois, a proteção da saúde individual como uma responsabilidade do Estado. O sanitarismo aos poucos se consolidava na intersecção entre institutos de pesquisa e administração pública.
Depois de uma primeira onda de infecções, em cidades como Campinas e Sorocaba em 1889, eclodiram surtos mortíferos de febre amarela em 1895 e 1896 em municípios paulistas ao longo dos eixos ferroviários que iam se interiorizando. Eles puseram à prova, de uma vez, a imigração, a formação de um modelo político-administrativo novo, a expansão das ferrovias e o conhecimento científico, como mostram os trabalhos do médico e historiador Rodolpho Telarolli Junior.
O boletim da seção estadual de Demografia referente ao ano de 1896 registra 788 mortes por febre amarela no município de Campinas, um dos primeiros do interior a ser atingido. A cifra equivale a 29% do total de óbitos, mas provavelmente está subestimada, pois naquele ano a cidade contabilizou um total de mortes por todas as causas 45% superior ao do ano anterior.
Estaduais também eram as comissões de combate às epidemias que, em nome do sanitarismo que se consolidava na primeira fase da República, começavam a intervir nos municípios afetados. Assim ocorreu em Araraquara, um dos focos dos estudos de Telarolli Junior.
No auge da pior onda epidêmica, entre o final de 1895 e meados de 1896, comissários enviados pelo governo do estado à cidade na rota da ferrovia Paulista tiveram dificuldade de fazer as autoridades municipais cumprirem medidas de coação como multas a quem descumprisse as determinações sanitárias. A oposição local aproveitou o ensejo para criticar o intervencionismo da administração estadual associado à situação.
Isolamento forçado de doentes, suspensão de aulas, construção de um novo cemitério, obras de drenagem e o estabelecimento de redes de água encanada e esgoto foram algumas medidas levadas a termo durante a epidemia em Araraquara com o concurso do poder estadual.
O rápido espalhamento da infecção desestruturou a vida da cidade. Moradores abandonaram suas casas, houve onda de saques, o comércio teve parada súbita, trâmites eleitorais foram prejudicados e a sede do município teve de ser transferida para uma localidade vizinha.
Tentativas do governo local de recuperar suas finanças com mais taxação foram rechaçadas pelos comerciantes, que, ao contrário, reivindicavam redução de carga alegando já terem sido penalizados com a queda dos negócios. Representantes destes últimos acusaram a Câmara Municipal de aumentar gastos desnecessários com funcionalismo em plena crise sanitária.