Os desafios do setor público na América Latina, e principalmente no Brasil, passam pela valorização das pessoas, pela promoção da diversidade, pela segurança jurídica e pelo incentivo à inovação na gestão. Essas são as ideias que orientaram o debate de abertura do 3º Encontro Anual do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, realizado no dia 9 de agosto em comemoração aos sete anos do CGPP. O tema deste ano foi “Governança e Democracia na América Latina”. O vídeo completo está disponível neste link.
Participaram da primeira mesa, intitulada “Desafios do setor público na América Latina”, Betânia Lemos, presidente da Escola Nacional de Administração Pública (Enap); Camila Guimarães Rodrigues, diretora técnica administrativa no governo do estado de São Paulo; e Ana Diniz, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero do CGPP. A mediação foi de Jessika Moreira, diretora executiva do Movimento Pessoas à Frente.
Na abertura do evento, Rodrigo Soares, vice-presidente acadêmico do Insper, destacou a missão da escola em transformar o Brasil por meio da geração de conhecimento e formação de líderes para os setores público e privado. “A governança é um tema super-relevante, que ultrapassa as fronteiras da América Latina e impõe desafios parecidos ao redor do mundo”, afirmou Soares.
O debate começou com a apresentação de um audiovisual de Betânia Lemos, que comparou os desafios da gestão pública às mudanças promovidas por movimentos artísticos de diferentes séculos. Uma versão de “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci (1452-1519), sem pessoas atrás da mesa representava, por exemplo, o desafio de aprender a viver e funcionar sem as pessoas no escritório, consequência da expansão do trabalho remoto depois da pandemia da covid-19.
No telão, a pintura impressionista de Claude Monet (1840-1926) ilustrou a necessidade de os gestores cuidarem do sentimento que as ações da instituição geram no ânimo dos seus colaboradores. “Sem pessoas, não temos administração pública”, disse Betânia. “Instituições que são mais abertas e mais criativas despertam nas pessoas a criatividade e a inovação. Essa corrente mostra que temos que estar atentos a como organizamos a nossa cultura e o clima da nossa organização.”
Dos expressionistas, representados pelo quadro “O Grito”, de Edvard Munch (1863-1944), veio o alerta para as angústias do mundo contemporâneo, reforçadas pelas mudanças provocadas pela inteligência artificial generativa e pela crise da democracia ocidental. “Chamo a atenção para a importância de a gestão pública olhar também para a saúde mental de cada indivíduo, pois vivemos hoje uma sociedade da ansiedade e dos problemas”, afirmou Betânia. Das figuras fragmentadas do cubismo de Pablo Picasso (1881-1973), ficou a sugestão de juntar os pedaços da contribuição de cada indivíduo para permitir à instituição alcançar a sua estratégia e o seu propósito.
O último desafio está no descompromisso com a realidade racional pelos surrealistas, representados por obra de Salvador Dalí (1904-1989). “Estamos vivendo um momento em que não sabemos como será o futuro”, disse Betânia. “A gestão e a administração pública e as organizações privadas têm que ajudar os seus colaboradores a imaginar como vai ser esse novo mundo e a se preparar para ele.”
Para Betânia, a mudança no Brasil precisa ser feita não só pelo setor público, mas em conjunto com a academia, o setor privado e as organizações sociais. “O que falei aqui vale para qualquer instituição, mas as coisas são um pouco mais complexas no setor público”, afirmou ela. “Se pegarmos textos de 50 ou 60 anos atrás, estamos sempre pensando em construir o futuro do Brasil, um futuro que não chega, e agora não queremos construir o futuro apenas para as novas gerações, mas construir o futuro para a nossa geração.”
Encerrada a apresentação de Betânia, a mediadora Jessika Moreira questionou as convidadas sobre a importância da segurança jurídica e o papel da União para o fomento da inovação nos órgãos públicos. Entre outros dados, ela citou a queda do Brasil no ranking de efetividade governamental do Banco Mundial de 2020 para 2022, passando de 119º para 130º lugar entre 192 países.
Camila Rodrigues considera a segurança jurídica primordial porque se reverte em confiança para implementação, capacidade de regulação e baixo risco de judicialização. “Se tivermos um ordenamento jurídico sólido, eficiente e estável, o gestor vai ter mais capacidade de ampliação de aplicação das iniciativas de inovação”, disse Camila. “A União faz muito bem em atuar de forma estratégica, fornecendo a criação de marcos reguladores para a implantação de inovação dentro das instituições e também fornecendo capacitação para os servidores quanto a aplicação de ideias inovadoras.”
A Enap, por exemplo, adota o modelo de desenvolvimento de inovação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo Betânia. “Inovar é quase sinônimo de errar”, afirmou ela. “E as instituições públicas trabalham com a lógica da punição do erro, como se todo erro fosse intencional. Então, para conseguirmos que os servidores públicos acertem, a instituição tem que fornecer um ambiente seguro e propício para deixar que as pessoas errem e para que as equipes aprendam com os erros. Precisamos de um marco regulatório que permita que o servidor público faça algo que nunca foi pensado no passado.”
O questionamento seguinte de Jessika foi sobre os desafios e as oportunidades para a construção de políticas públicas com base em dados e evidências, em benefício do aumento da capacidade estatal e da transparência ativa. “Estudo do Movimento Pessoas à Frente, de 2023, atestou que apenas sete estados brasileiros identificavam as atribuições para ocupantes dos cargos de liderança”, relatou Jessika. “Quem são as lideranças que hoje estão à frente dos órgãos públicos? Além disso, nenhum estado fornece informações sobre cor, raça ou origem étnica dessas pessoas, então como se afere a representatividade da população e do território nessa administração?”
Ana Diniz ressaltou a importância dos dados para caracterizar e dimensionar os problemas públicos e o perfil dos servidores e das administrações. “Temos indícios de que o nosso setor público não é representativo da nossa sociedade, mas não temos o dado para saber o tamanho do problema”, disse ela. “Além do perfil, há pouca visibilidade de como esses cargos são pensados e quais os processos de gestão que são implementados para gerir o corpo funcional no sentido do propósito dessas organizações. Essa é uma natureza diferente de dados. Precisamos treinar as pessoas, mas também criar os incentivos para que elas caminhem no sentido certo. Sem saber por que as pessoas estão lá, infelizmente, não temos como fazer isso.”
Na opinião de Camila, o maior desafio da gestão pública é transformar as informações dos dados em políticas efetivas. “As mulheres negras em posições de liderança e cargos de natureza especial no governo federal são apenas 8%”, afirmou ela. “Qual política vamos fazer para que as mulheres negras entrem nesses cargos, permaneçam e abram caminho para que outras venham? Como fazer uma política proativa de longo prazo e que vai ser avaliada no decorrer do tempo?”
A falta de representatividade de gênero, raça e orientação sexual no setor público brasileiro transparece em estudos internacionais. Jessika mostrou que, em comparação com os demais países da América Latina, o Brasil tem a pior média de participação de mulheres em cargos de liderança. Os dados pioram quando se acrescentam os recortes de gênero e raça, a possibilidade de permanência e ascensão profissional das mulheres e o combate ao assédio moral e sexual. Jessika questionou, então, como se pode construir um ambiente de trabalho inclusivo e promotor de lideranças femininas, principalmente negras.
Betânia acredita que é preciso trabalhar no letramento das pessoas sobre a relação entre representatividade na gestão e desenho de políticas públicas. “O setor público é um grande propulsor de mudança social, porque começa algo que vira exemplo, vira lei e daí a pouco está em toda a sociedade”, disse ela. “Nós temos também as diferenças regionais do Brasil, que fazem toda a diferença na hora da formulação de política pública. Deve-se ensinar as pessoas que toda a sociedade ganha quando se está num grupo diverso, que representa a população.”
Camila complementou: “Se cumprirmos a lei que fala em 30% de mulheres negras e nos cargos de liderança no serviço público federal, um ponto a pensar é qual o caminho que essa mulher vai percorrer para permanecer e como isso vai ser tratado. Esse é um dos desafios, porque você chega e tem que lidar com desafios diários. A construção de redes entre mulheres e mulheres negras dá um suporte para que você permaneça e pense a carreira de forma estratégica. E acho que isso é uma coisa que os servidores não têm”.
Finalizando o debate com dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Panorama Mulher — realizado pela empresa de recrutamento Talenses e pelo Insper —, Ana Diniz afirmou que é similar o baixo percentual de mulheres na liderança tanto do setor público como do privado. “No setor público, um dos desafios é desmistificar a ideia de que, com o concurso público, está tudo resolvido”, disse ela. “Existem obstáculos até o dia da prova que garantem melhores condições para alguns grupos em detrimento de outros. Mesmo que exista um grande contingente de mulheres no setor público, elas estão nas áreas historicamente associadas ao feminino, que muitas vezes são também as carreiras menos valorizadas dentro do setor público.”