Ao longo de sua trajetória, o gaúcho Milton Seligman conseguiu transitar com desenvoltura em empresas privadas, governo e organizações sem fins lucrativos
A divisão entre setor público, setor privado e terceiro setor é uma maneira didática de categorizar as diferentes esferas da sociedade e da economia moderna de acordo com o tipo de organização que as compõe. Mas a fronteira entre os setores não é rígida e, com frequência, há uma sobreposição entre eles, que se complementam e são interdependentes. “Não acredito numa sociedade sem iniciativa privada, não acho que o governo tenha que ser mínimo e reconheço o papel relevante do terceiro setor”, diz o gaúcho Milton Seligman, 72 anos, professor do Insper. “Tenho a convicção de que os três setores são fundamentais para uma sociedade equilibrada e democrática.”
Seligman fala com propriedade. Ao longo de sua trajetória, ele soube transitar com igual desenvoltura em empresas privadas, governo e organizações sem fins lucrativos. Não por acaso, os cursos que ministra atualmente no Insper (Relações Governamentais no Brasil e Estratégias de Negociação Empresa-Governo) abordam o desafio de harmonizar esses três setores e promover relacionamentos positivos entre eles. “A ideia desses cursos é discutir como os três setores podem conviver de forma respeitosa para criar modelos ganha-ganha-ganha”, afirma.
Seligman é graduado em Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Santa Maria, sua cidade natal. Depois de se formar, em 1974, trabalhou durante cinco anos como engenheiro eletricista, sucessivamente, na Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul, nas Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc) e na Eletronorte. “Eu era engenheiro na área de TI, que na época ainda se chamava informática. Eram tempos de enormes computadores, que usávamos para fazer simulações de sistemas elétricos”, lembra.
Mesmo trabalhando em uma área essencialmente técnica, Seligman não deixou de cultivar outros interesses que o acompanharam desde a adolescência. “Eu sempre tive um grande fascínio por política. Gostava de participar de discussões sobre liderança, processos envolvendo a criação de maiorias, avanços em questões sociais e coisas do gênero”, conta. Na escola secundária, Seligman participou ativamente do grêmio estudantil e, na universidade, foi presidente do diretório acadêmico. “Durante a ditadura, meu compromisso com a resistência ao regime autoritário e com a construção da democracia foram aspectos importantes de minha vida.”
O envolvimento com a política o aproximou do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). “Em certo momento, pedi demissão na Eletronorte e abri uma empresa de informática. Eu era muito amigo de Pedro Simon, que era dirigente do MDB, e comecei a ajudá-lo fazendo mailing list.” Seligman foi se envolvendo cada vez mais com o partido, até ser convidado para participar da direção da Fundação Pedroso Horta, a instituição do MDB voltada para educação política que depois seria rebatizada de Fundação Ulysses Guimarães.
Ao longo dos anos, Seligman desempenhou papéis-chave na política brasileira. Contribuiu para a campanha que elegeu Tancredo Neves, em 1985. Posteriormente, foi convidado a assumir funções no governo. Na gestão de José Sarney, foi Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Agricultura (1985) e Chefe de Gabinete do Ministro da Ciência e Tecnologia (1988). Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, foi secretário executivo e ministro da Justiça (1995 a 1997), presidente do Incra (1997 a 1998), secretário executivo do Programa Comunidade Solidária (1999) e secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (1999 a 2000).
Nesse período, Seligman se envolveu também com o terceiro setor, atuando como dirigente de ONGs em duas ocasiões. Entre 1991 e 1993, foi diretor de projetos da Inter Press Service (IPS), uma agência internacional de notícias com sede em Roma, na Itália. Posteriormente, em 1994, foi secretário geral da ONG Ágora – Associação de Combate à Fome.
Depois de deixar o governo, Seligman recebeu um convite de amigos para se juntar a eles na estruturação de uma startup de tecnologia nos Estados Unidos. “Passamos um ano tentando fazer esse empreendimento decolar. Embora tenha terminado em fracasso, foi uma oportunidade valiosa de aprendizado.” Durante seu envolvimento nesse projeto, foi convidado a ingressar na recém-criada Ambev, empresa fabricante de bebidas que resultou da união entre a Cervejaria Brahma e a Companhia Antarctica, em 1999. Na Ambev, desempenhou várias funções, incluindo a de vice-presidente de relações institucionais para a América Latina. Após um período afastado, retornou ao conselho de administração da empresa, onde permanece até hoje.
Paralelamente a essas atividades, Seligman começou a participar de diversas entidades sem fins lucrativos, entre elas a Fundação Lemann, o Instituto Sonho Grande e a Fundação Brava, lidando basicamente com assuntos de educação. Nesse período, aconteceram duas coisas que o aproximaram do Insper. A primeira foi um convite que recebeu para dar um curso de educação executiva sobre relações empresa-governo, área em que ele tinha atuado durante esse tempo todo. A segunda foi que a Fundação Brava, na qual Seligman atuava como um conselheiro informal, tinha a ideia de fazer uma escola de governo no Brasil nos moldes de benchmarks internacionais como a Kennedy School da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, a Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a Universidade de Singapura.
“O Insper adorou a ideia. Foi criado então um grupo de trabalho, do qual fiz parte, e foram contratados dois professores, David Kallás e Carlos Caldeira, que fizeram uma pesquisa de campo no mundo inteiro e elaboraram um plano de negócios. O resultado desse processo, que foi conduzido pelo economista André Luiz Marques, é o atual Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper”, diz Seligman.
Além de se dedicar à docência, Seligman encontra tempo para a produção acadêmica. Em 2018, publicou o livro Lobby Desvendado: Democracia, políticas públicas e corrupção no Brasil contemporâneo, em coautoria com o cientista político Fernando Mello. “Esse livro é importante porque serviu de base para os cursos que ministro no Insper”, observa Seligman. Em 2020, ele lançou outro livro, dessa vez em parceria com o cientista político Carlos Melo, também professor do Insper, e com a jornalista Malu Delgado: Decadência e Reconstrução – Espírito Santo. Lições da sociedade civil para um caso político no Brasil. A obra foi uma das finalistas do Prêmio Jabuti de 2021.
Sobre seus projetos para o futuro, Seligman diz que ainda tem muitos objetivos a realizar, todos eles voltados para causas coletivas. “Não tenho ambições individuais que considero prioritárias”, afirma. “Sinto-me privilegiado em minha jornada, por ter nascido em uma família de classe média e recebido grande parte da minha educação em escolas públicas, com exceção de três anos. Agradeço à sociedade brasileira por essa oportunidade e sinto a responsabilidade de retribuir da maneira que puder.”
O foco de Seligman está na área da educação. “O Brasil possui um potencial incrível ainda não realizado. Temos um grande hiato em relação aos países mais desenvolvidos e devemos trabalhar para fechar essa lacuna, principalmente buscando a melhoria significativa de nosso sistema educacional, em todos os níveis. Queremos garantir que as novas gerações não fiquem para trás, que avancem e estejam preparadas para os desafios do futuro.”
Seligman quer continuar contribuindo de várias maneiras, como fez na criação do CGPP. “Participar da construção da escola de governo do Insper é uma realização que me enche de satisfação. Fazer parte de um grupo excepcional dentro da instituição é uma honra”, afirma. “Sempre que sou convidado para colaborar em melhorias ou discussões, e sinto que tenho algo a oferecer, estou pronto para participar.”
Conheça um pouco mais sobre as atividades de Milton Seligman fora da sala de aula
Milton Seligman sempre conviveu com jornalistas. Ele é casado com a jornalista Graça Seligman, que trabalhou em diversos veículos importantes, como Gazeta Mercantil, DCI, Folha de S. Paulo e Estadão, antes de se dedicar mais à fotografia (ela é a autora da foto de Seligman que abre esta reportagem). Além disso, Seligman tem um casal de filhos, ambos jornalistas: Felipe Seligman, fundador do JOTA, site especializado em temas jurídicos e institucionais, e Catarina Seligman, que atua na área de relações-públicas. “Eu sou muito família, adoro minha família”, diz o professor do Insper. “Gosto de estar sempre perto dos meus filhos e das minhas netas. Tenho duas netas e estou na torcida para ter mais.”
Alguma figura pública pela qual tenha especial admiração?
Seligman destaca Ulysses Guimarães (1916-1992), um dos principais líderes de oposição à ditadura militar. Ulysses foi presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, que inaugurou a nova ordem democrática, após 21 anos sob o regime militar.
“Eu tenho na parede uma foto de Ulysses. Ele é minha grande referência, um ídolo na sociedade brasileira. Navegou por momentos desafiadores com uma notável sobriedade, uma virtude fundamental na construção da democracia no país”, diz. Ulysses morreu em um acidente de helicóptero em Angra dos Reis, poucos anos depois da promulgação da Constituição de 1988. “É como Moisés, que construiu algo importante, mas não viveu para ver a terra prometida”, lamenta Seligman. “O Brasil poderia ter mais referências como ele. Infelizmente, temos poucas, mas suas palavras e ações continuam a nos inspirar até hoje.”
Seligman joga tênis desde os 7 anos e ainda hoje participa de torneios. “Não gosto quando me chamam de ‘ex-tenista’ só porque não jogo profissionalmente. Para mim, tenista é quem pega uma raquete e entra em uma quadra, independentemente de fazer isso por profissão ou paixão”, diz Seligman, enquanto mostra algumas medalhas e troféus que conquistou ao longo dos anos nas competições. “Eu sou filiado à ITF, a International Tennis Federation. Mas você nunca vai ouvir falar de mim nos jornais, porque meus resultados não chegarão lá” (risos).
O professor do Insper participa ativamente do Rede Tênis Brasil (RTB), um projeto social que busca fomentar essa modalidade esportiva e criar uma geração de tenistas brasileiros que frequentem o topo dos torneios mundiais. “Já temos mais de 30 mil crianças expostas ao tênis por meio desse programa”, diz Seligman. “O tênis é um dos esportes mais espetaculares que existem. Com exceção de alguns poucos nomes no masculino e no feminino, a grande maioria dos jogadores tem mais derrotas do que vitórias. Então, é um esporte que ensina a perder, que dá resiliência, que mostra que você precisa ir até o fim.” (Além de tênis, Seligman é fã de futebol. “Uma coisa que você não pode deixar de registrar é que sou gremista roxo.”)
Seligman diz que não chega a ser um leitor voraz, mas está sempre lendo algum livro. Atualmente, está fascinado com o romance Os Dias, primeira obra de ficção do filósofo baiano Waldomiro J. Silva Filho, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. “É um livro escrito magnificamente, um punhal conduzido com mãos de uma delicadeza rara de ver. É literatura de alta qualidade, um daqueles livros que você gosta de ler devagar.”
Seligman está quase terminando de ler outro livro, Liderança: Seis estudos sobre estratégia, de Henry Kissinger. Na obra, o ex-secretário de Estado norte-americano fala sobre seis personalidades que influenciaram não somente seus países, mas a geopolítica mundial: Konrad Adenauer (Alemanha), Charles de Gaulle (França), Richard Nixon (Estados Unidos), Anwar Sadat (Egito), Lee Kuan Yew (Singapura) e Margaret Thatcher (Reino Unido). “É um livro estupendo, que Kissinger escreveu aos 99 anos [hoje já está com 100 anos]. Só com isso ele já me conquista”, comenta Seligman.
Outro livro recente que chamou sua atenção foi A Única Mulher na Sala: Golda Meir e seu caminho para o poder, de Pnina Lahav, que conta a história da primeira e única mulher a chefiar Israel. “Em sua trajetória política, Golda frequentemente era a única mulher em um ambiente predominantemente masculino. O interessante é que Golda se irritava quando alguém sugeria que ela deveria reivindicar seu papel como mulher. Sua postura era de que sua presença e sua contribuição eram baseadas em quem ela era de fato, independentemente de gênero. Isso adiciona uma dimensão valiosa ao debate contemporâneo sobre diversidade e o papel das mulheres na política e na sociedade.”
O professor do Insper gosta também de ver filmes e séries na TV. Por causa da pandemia, ficou um bom tempo sem ir ao cinema, mas voltou recentemente a uma sala de exibição para assistir ao filme Oppenheimer, sobre o físico americano que ajudou na invenção da bomba atômica. “Eu não conhecia a história, mas adorei o filme, com um elenco muito bom.”
Na TV, entre as várias séries que viu recentemente, Seligman destaca Império da Dor, que aborda as consequências do uso de opioides nos Estados Unidos. “A série traz uma boa discussão sobre a relação empresa-governo e sobre os limites que precisam ser estabelecidos para a atuação empresarial.”
Outra série que recomenda é The Offer (A Oferta), disponível no serviço de streaming Paramount+, narrando os bastidores da produção de um dos filmes mais conhecidos de todos os tempos, O Poderoso Chefão(1972), de Francis Ford Coppola. “É incrível ver os desafios financeiros e de criação que os produtores enfrentaram para concretizar o filme. É uma história fascinante sobre como esses projetos cinematográficos ganham vida.”