Poucos temas são tão perturbadores quanto a loucura, e isso é facilmente constatado pelas formas implacáveis como a sociedade historicamente reagiu a ela: aprisionamento, espancamentos, eletrochoques, até extirpação de parte do cérebro. Desde meados do século passado, diversos países, em especial do Ocidente, passaram a enxergar esses métodos como inaceitáveis. Veio daí um movimento de reforma no tratamento psiquiátrico que abrangeu quase todo o mundo.
O Brasil, embora tivesse uma pioneira na defesa de tratamentos alternativos — a psiquiatra junguiana Nise da Silveira, com terapias baseadas na arte, a partir da década de 1940 —, aderiu tardiamente à nova tendência: apenas em 2001 foi aprovada a reforma psiquiátrica, implementada no ano seguinte no país.
Pela nova Lei Antimanicomial, a internação de pacientes passou a ser permitida apenas quando o tratamento fora do hospital se revelar ineficaz. Para substituir os manicômios, foi estabelecida a criação de Centros de Atenção Psicossocial, os CAPs, com a função de prestar assistência psicológica e médica e reintegrar os doentes à sociedade.
Duas décadas depois, a reforma continua a levantar polêmicas. Ninguém prega a volta dos métodos brutais de antigamente, mas há vários questionamentos sobre a eficácia dos CAPs. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), por exemplo, avalia que os resultados de sua implementação têm ficado aquém do esperado.
É neste cenário com bastante polarização e pouca pesquisa que entra o estudo feito por Luiz Felipe Campos Fontes, professor de Economia do Insper, e Mateus Dias, professor de Economia da Universidade Católica de Lisboa. Os dois estudavam o tema em suas respectivas teses de doutorado, entre 2017 e 2018 — Dias em Princeton, nos Estados Unidos, Fontes na FGV —, e um professor em comum os apresentou. As principais conclusões da pesquisa, a ser publicada em agosto (mas já disponível para acesso) pela revista científica especializada American Economic Journal: Economic Policy, são:
=a) A introdução dos CAPs levou a um significativo aumento de profissionais dedicados à saúde mental: não só psiquiatras como também psicólogos, terapeutas ocupacionais e trabalhadores sociais. O aumento médio de pessoal devido aos CAPs nas localidades que os implementaram é de 46%. Embora o número de psiquiatras tenha aumentado, o número de horas de trabalho de psiquiatras mudou muito pouco, o que sugere que grande parte deles trabalha nos centros apenas em horário parcial. Muitos contratos são de apenas dez horas semanais, e a falta de psiquiatras disponíveis o tempo todo é uma das principais críticas da ABP.
= b) O número de hospitalizações de doentes mentais caiu 8% no total de quadros, com ênfase para os casos mais graves: as internações de pacientes com esquizofrenia caíram 17%. Isso está de acordo com o principal objetivo da Lei Antimanicomial, de substituir os hospícios por cuidados domésticos. Para casos graves, porém, a maioria dos CAPs está mal equipada para oferecer os tratamentos necessários.
=c) Um objetivo secundário do projeto era de caráter econômico: reduzir os custos, dado que as hospitalizações são caras. Este não foi cumprido, segundo o estudo. “De modo geral, concluímos que o valor total de gastos com os CAPs é até maior que os evitados com hospitalizações”, diz Fontes. Considerando dados do Ministério da Saúde, os gastos federais com o programa foram de 950 milhões de reais entre 2002 e 2014, enquanto, com base nas estimativas oficiais de gastos por internação em instituições de saúde mental, a redução de gastos ficou em 720 milhões de reais: uma diferença negativa de 230 milhões de reais, portanto.
= d) O número de serviços ambulatoriais em saúde mental, nos municípios que implementaram o CAP, aumentou em média 60% em relação aos números prévios ao programa.
= e) Não foi encontrada nenhuma evidência de efeitos da nova política pública nas mortes por desespero — por overdose, abuso de álcool, suicídio. Isso é tanto um bom sinal (o número de fatalidades não aumentou mesmo com menos vigilância devida às internações) quanto um mau sinal (não se constata uma queda no número de mortes com o avanço do programa).
= f) Quanto aos homicídios, no entanto, os autores detectaram um aumento significativo, de 7,7% em média. “Não estamos falando que os doentes mentais são os perpetradores”, esclarece Fontes. “Eles podem ser as vítimas.” Os dois pesquisadores calculam uma possibilidade de 9,6% dos pacientes que deixaram de ser internados se envolverem em um caso de homicídio — algo condizente com a hipótese Penrose, formulada em 1939 pelo psiquiatra britânico Lionel Penrose, de que a disponibilidade de leitos em hospitais psiquiátricos é inversamente proporcional à população prisional, presumivelmente graças à internação de potenciais agressores ou vítimas com doenças mentais.
"Na Europa e nos Estados Unidos foram feitas reformas parecidas, e uma discussão prevalente entre os americanos é que muitas pessoas saíram do hospital, mas foram para a cadeia”, diz Fontes.
A mais crucial dessas conclusões é o item b, pelos fortes indícios de que os tratamentos para os casos mais graves de doença mental está, como defende a Associação Brasileira de Psiquiatria, aquém do desejável. “A ideia central dos CAPs é que eles fossem a principal fonte de tratamento de pacientes graves”, lembra Fontes. “O grande debate hoje é que muitos desses centros não têm estrutura suficiente para tratá-los.”
Na comparação com os centros comunitários de saúde mental criados nos Estados Unidos, o estudo afirma que os CAPs são muito menos bem equipados, não estão abertos 24 horas por dia, não têm leitos e podem ficar sem plantão psiquiátrico a maior parte do tempo — não sendo, portanto, adequados para tratar de pacientes que exigem maiores cuidados.
“Nas capitais, sim, normalmente há estrutura, mas Brasil afora não”, diz Fontes. “Os CAPs III são um tipo de centro mais semelhante aos que existem nos Estados Unidos, mas há apenas um punhado deles no país”, escrevem Fontes e Dias.
Quanto ao fato de os gastos com os CAPs serem maiores do que os gastos com hospitais psiquiátricos (item c), isso pode se dever à maior amplitude de tratamentos. “Pelo menos em parte, isso pode ser devido ao aumento de pessoas atendidas”, considera Fontes. É difícil, porém, estabelecer quanta gente efetivamente procura os centros. “Os dados oficiais falam em produção, número de terapias ou medicamentos, horas dedicadas de profissionais, não em número de pacientes.”
Ou seja, não há dados consistentes para concluir algo sobre o impacto dos CAPs para pacientes com diferentes problemas de saúde mental. Mas, dado que o número de tratamentos aumentou em média 60% (item d), faz sentido supor que casos mais leves de doença mental tenham melhor atendimento. Porém, talvez em detrimento da atenção aos doentes mais graves.
Finalmente, o potencial aumento de homicídios (item f) é um dado a se considerar na avaliação da política pública. É também uma contribuição relevante para a literatura mundial neste ponto. Como explica Fontes: “Lá fora há evidências anedóticas ou dados de correlação (uma queda constante no número de leitos psiquiátricos conjugada a um aumento de gente com problemas de saúde mental encarcerada)”. No caso do estudo brasileiro, houve a possibilidade de utilizar o método de Diferença nas Diferenças, ou seja, uma comparação capaz de isolar os efeitos de uma medida dos efeitos de outras mudanças ocorridas no mesmo tempo.
“O que nos ajuda bastante é o fato de o Brasil ter muitos municípios, tanto que implementaram como que não implementaram os CAPs. E que implementaram em períodos diferentes.” Isso torna possível “descontar" os efeitos provocados, por exemplo, por programas como o Bolsa Família e o Programa Saúde da Família. “A gente consegue comparar municípios com e sem CAPs, que tinham trajetórias de gastos públicos com saúde e outras políticas públicas muito parecidas”, nota o professor.
As conclusões do estudo são fundamentais para o debate ainda presente sobre os CAPs. Segundo dados de 2020 do Ministério da Saúde, o país tem 2.661 CAPs, além de 686 Serviços Residenciais Terapêuticos (casas destinadas a pessoas com transtornos mentais, incluindo dependentes de drogas ou álcool, que tiveram alta de internações mas não conseguem ainda se reintegrar à sociedade), 65 Unidades de Acolhimento (ambientes residenciais para quem tem problemas relacionados ao uso de álcool, crack e outras drogas) e 1.622 leitos em 305 hospitais gerais, para pacientes com quadros clínicos agudos, com suporte e atendimento 24 horas por dia.
Esta estrutura, como mostram Fontes e Dias, não está dando conta de toda a necessidade. “Nós não tomamos partido, apenas mostramos resultados sugerindo que pacientes com doenças mentais graves e persistentes não estão tendo suas demandas adequadamente atendidas no atual sistema”, afirma Fontes. “E o principal objetivo é que eles recebam tratamento adequado e humanizado.”