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Segurança pública no Brasil: desafios para uma política pública sustentável

Debate promovido pelo CGPP apontou a necessidade de ações contra a raiz do crime, com foco na inclusão social e na redução das desigualdades

Debate promovido pelo CGPP apontou a necessidade de ações contra a raiz do crime, com foco na inclusão social e na redução das desigualdades

 

Bárbara Nór

 

Se o tema da segurança pública no Brasil é um dos mais populares na mídia e um dos que mais chamam a atenção por sua gravidade, ele também é um dos mais negligenciados pelas políticas públicas. Esse foi um dos insights do debate “Segurança Pública e Crime Organizado”, promovido pelo Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper no dia 24 de abril.

O encontro foi o primeiro de um ciclo de debates políticos, coordenado pelo cientista político Carlos Melo, professor, pesquisador e integrante do Centro de Políticas Públicas do Insper. Ele foi o mediador dessa primeira conversa, que contou com a participação da advogada e socióloga Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz e consultora de prevenção da violência e segurança para o Banco Mundial (BID), e de Ricardo Balestreri, coordenador do Núcleo de Segurança Pública, Urbanismo Social e Territórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, e que já foi secretário nacional de Segurança Pública, além de ter ocupado cargos em secretarias de segurança nos estados de Goiás e Pará.

“O desafio que nos propusemos é ‘conversar sempre’, trazendo mais fatos ao conhecimento geral e aumentando a capacidade de a sociedade intervir nesse processo”, explicou o professor Carlos Melo. A ideia, comentou, era mais promover uma atmosfera de um café, de um encontro informal, do que de um evento estritamente acadêmico. “Não nos reunimos para apresentar novas revelações ou pontos de pesquisa, mas para compartilhar o conhecimento prático dos dois convidados”, disse.

Ao longo do bate-papo, os convidados evidenciaram a complexidade da questão da segurança pública no Brasil, que envolve problemas de ordem estrutural do país. “A segurança pública e o crime organizado não são fenômenos distintos — o segundo nasce das deficiências do primeiro, que permitem um processo no qual criminosos comuns se formam — e se deformam — nas prisões”, afirmou Melo.

Em sua fala, Carolina Ricardo chamou a atenção para o fato de que, embora o tema da segurança pública seja muito popular em debates eleitorais e no noticiário, ele acaba sendo deixado de lado nas políticas públicas — uma contradição que ela caracteriza como histórica no Brasil. “Ao mesmo tempo que a segurança pública preocupa o brasileiro e é sempre a primeira ou a segunda preocupação dos eleitores, quando muitos desses governantes assumem, a gestão da política pública não prioriza a segurança.” E, mesmo quando essas políticas são implementadas, há muitos problemas na forma como a questão é vista, apontou Carolina.

“Ela [a agenda de segurança pública] é capturada por uma lógica de controle do crime, de enfrentamento ao crime — no geral, são os governantes e políticos dessa linha que assumem essa agenda com prioridade”, observou. “E no campo progressista, que poderia pensar em segurança pública como uma política de garantia dos direitos sociais, há muito pouco debate.”

Além disso, faltariam políticas com um viés preventivo. “É a mesma lógica da saúde — a gente trabalha com prevenção, como o trabalho de vacinação, e também em tratar o doente que chega ao hospital”, disse Carolina. Da mesma forma, ela comentou, a questão de segurança pública requer esse trabalho: combater as causas, além de lidar com o crime quando ele acontece.

Na prática, segundo Carolina, o que se verifica é um foco na aplicação penal, o que acaba gerando uma grande quantidade de prisões de “baixa qualidade”, que não são precedidas de investigação, além do uso excessivo de força por parte dos policiais. Como consequência, há um recrudescimento da violência e de mortes nas comunidades onde ocorrem os confrontos com policiais. Outro problema, segundo a especialista, é a não investigação de homicídios que ocorrem nesse enfrentamento ao crime organizado, uma questão que também é ignorada pelas políticas públicas.

“Além de não garantir justiça às famílias das vítimas e gerar uma desconfiança brutal no sistema de justiça, isso dá um combustível enorme para o crime organizado”, disse. Foi por isso que ela participou de um esforço para produzir um indicador nacional para se ter uma dimensão do problema. Segundo ela, a média brasileira hoje é de 35% dos homicídios esclarecidos, mas a taxa varia conforme a região. Na Bahia, por exemplo, o índice é de15%, enquanto no Rio é de 23%.

Já São Paulo, que até pouco tempo atrás era um exemplo mais positivo de política de segurança pública, está agora avançando em uma direção cada vez mais preocupante, de acordo com Carolina. “A gente profissionalizou a polícia militar, por exemplo, nos últimos quatro anos, com uma boa política de ajuda à força”, disse. “Com a mudança de gestão, essa estrutura de profissionalização da PM está sendo abandonada e sucateada.”

Para ela, operações como a realizada recentemente na Baixada Santista evidenciam um foco intenso no confronto direto da polícia militar e um envolvimento cada vez menor da polícia civil. Isso gera também uma crise entre essas duas polícias, o que, no limite, agrava ainda mais a questão da segurança pública. “Se não construirmos mecanismos de coordenação eficiente entre as duas polícias, e depois com a polícia federal, não vamos dar conta do problema.”

 

Segurança pública sustentável

Refletindo sobre sua experiência no setor público como secretário nacional de Segurança Pública entre 2008 e 2010 e, depois, como secretário de Segurança em Goiás, Ricardo Balestreri ecoou as críticas de Carolina. “Não se derruba índice criminal com populismo penal”, disse. “Se essa visão de ‘vamos simplesmente prender e se possível até matar os bandidos’ estivesse certa, o Brasil seria um paraíso”, afirmou.

Balestreri criticou também a espetacularização do problema na mídia e no discurso de políticos. “Isso agrada à plateia e levanta votos para gente inescrupulosa, mas não resolve absolutamente nada em termos de segurança pública.” Em um primeiro momento, afirmou, aumentar a presença policial em um território até pode reduzir o índice de criminalidade, mas esse é um efeito de curta duração. “Ao longo do tempo, a polícia cansa, ela não consegue fazer isso sozinha”, disse. “E se ela não for muito bem-preparada, cria mais desastre do que solução — e aí o crime volta pior do que antes.”

Um exemplo disso, contou Balestreri, foi a história das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), no Rio de Janeiro. “As primeiras UPPs foram um sucesso, e eu tive a honra de participar da formação de parte dos policiais que as ocuparam”, disse. “Mas todos sabíamos que aquele processo tinha prazo de validade.” Para que ações como essas sejam sustentáveis, é preciso “cortar a raiz do crime”. Isso envolveria uma visão de segurança pública sustentável, que promove inclusão social e oportunidades. Para Balestreri, as extremas desigualdades e injustiças sociais no Brasil geram o que é chamado de “exército de reserva do crime” — pessoas que, por falta de opções e por viverem os efeitos da ausência ou da violência do Estado, acabam vendo no crime organizado uma saída para ter uma vida econômica melhor.

“Estamos em um dos países mais tragicamente injustos do planeta”, lembrou. “Não estou aqui criminalizando a pobreza. Percentualmente, a quase totalidade dos pobres é heroicamente honesta”, disse. “Só que não estou abordando a questão em termos percentuais, mas em termos absolutos —– a quantidade de gente excluída, especialmente de jovens pobres, às vezes sem pai nem mãe, sem instituições que lhes deem guarida, é imensa.” Como resultado, há um exército de reserva de crime que, em números absolutos, é praticamente inesgotável.

E, em vez de contribuir para mitigar a situação, a política brasileira de segurança pública acaba agravando essas desigualdades, disse Balestreri. “São 40 anos de políticas públicas com uma visão herdada da Casa-Grande e da Senzala”, disse. “A segurança pública atua na proteção da Casa-Grande e para a contenção da Senzala.”

“Nós administramos este país a partir de uma herança cultural maldita, que é a mentalidade escravocrata entranhada no inconsciente coletivo”, disse. “Temos políticas públicas de segurança, reconhecidamente esforçadas, voltadas à classe média e à classe alta, mas para os pobres só temos políticas de contenção e repressão.”

Nessa comparação, prosseguiu Balestreri, as favelas e comunidades onde mora um grande número de pessoas pobres seriam reflexo das antigas senzalas, marcadas pela ausência de políticas públicas, além de pôr um desrespeito aos direitos básicos dessas populações. “Ninguém vai entrar no meu apartamento sem autorização judicial. Agora, para entrar em barraco de pobre não precisa, é só ‘pedalar’ a porta e entrar livremente.”

Essas são marcas, aliás, conforme Balestreri, do predomínio de uma visão exacerbada de polícia ostensivo-repressiva, gerando aberrações como o uso banalizado de armas de guerra em meio a entornos civis, em um país que produz mais homicídios do que as guerras em curso no planeta, mas que de fato não está em guerra e que moralmente não pode considerar as vidas ceifadas como meros “danos colaterais”.

Outro problema nas dinâmicas do confronto direto nas favelas, comentou Balestreri, é o fato de que não é nelas que residem e atuam as grandes lideranças do crime organizado. “As verdadeiras lideranças do crime não estão nos pontos varejistas de venda, mas protegidas no luxo e na infiltração transversal das instituições formais de poder”, disse. “É por isso que o tal ‘combate de guerra’ gera grandes traumas, há mais de quatro décadas, mas com resultados pífios e inúteis. No Brasil, essa retórica de guerra, acompanhada por suas práticas desastrosas, não passa de um grande jogo de cena populista, transcorrendo no palco do espetáculo histórico da segurança pública. ‘Som e fúria, mas que nada significa’.”

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