O conceito de “Ladeira escorregadia nos ajuda a entender como as pequenas mentiras de Elizabeth Holmes resultaram em um crime corporativo de grandes proporções
Pedro Hajjar Roschmann
James Murdoch, Mark Zuckerberg, Elon Musk e… Elizabeth Holmes? Em 2016, a fundadora e CEO da startup Theranos posava ao lado de grandes inventores do século como a mais nova prodígio no mundo da tecnologia. A jovem — de apenas 32 anos na época da foto — prometia revolucionar o sistema de saúde americano com a criação de um dispositivo que permitiria a realização de centenas de exames com apenas uma gota de sangue. De acordo com Holmes, isso possibilitaria a redução no valor dos exames sem reduzir a qualidade das análises. A história de Holmes era cativante: uma dropout de Stanford com uma ideia disruptiva e milhões de dólares levantados em investimentos. Mas será que ela realmente merecia posar naquela publicação da revista Vanity Fair?
No ano de 2015, foi divulgado pelo jornalista John Carreyrou, do Wall Street Journal, o primeiro artigo denunciando a falta de evidências sobre o funcionamento das máquinas da companhia chefiada por Holmes, que mantinha suas operações sob grande sigilo. Carreyrou revelou informações de que os testes não eram realizados pelas máquinas da Theranos e, quando eram, os resultados eram imprecisos e muitas vezes foram adulterados. Isso foi suficiente para que se iniciasse uma leva de processos judiciais e investigações que, em 2018, culminaram na acusação de fraude massiva pela Securities and Exchange Comission (SEC), a agência reguladora do mercado financeiro americano.
Como Elizabeth conseguiu enganar tanta gente por tanto tempo? Para responder a essa questão, é preciso ressaltar o talento de Holmes em criar uma narrativa cativante: uma jovem fora da curva que perdera um ente querido para o câncer desenvolve uma tecnologia capaz de facilitar o diagnóstico precoce da doença e assim reduzir os riscos de perdas como a dela. Seu pitch, além de justificar uma causa nobre, gerava nos investidores um imenso Fear of Missing Out: com medo de perder a chance de investir na nova face do Vale do Silício, eles se apressaram em colocar dinheiro em um negócio inacabado.
O conceito de “Ladeira escorregadia”, que explica o processo incrementalista de agravamento dos delitos éticos — a perda do “compasso moral” —, nos ajuda a entender como as pequenas mentiras de Holmes resultaram em um crime corporativo de grandes proporções. No início da empresa em 2003 Holmes provavelmente não planejava cometer uma fraude de U$10 bilhões. Todavia, a CEO da Theranos, ao deparar-se com as primeiras dificuldades na produção de sua máquina, resolveu esconder os problemas e fingir normalidade. À medida que a pressão por resultados aumentou, as mentiras ganharam novas proporções, inspeções foram burladas e contratos forjadas, tudo para manter a narrativa. A parceria com a rede farmacêutica Walgreens reforçou a disposição Holmes em vender a Theranos como uma empresa em plena operação. Podemos avaliar essa decisão a partir do conceito de “Moral Hazard”, que explica a mudança comportamental dos tomadores de decisões quando as consequências de suas ações não incidem diretamente sobre eles. A oferta de testes em farmácias colocava a saúde da população em risco, enquanto a de Holmes permanecia a salvo.
Tendo sob perspectiva sua jornada e suas decisões, podemos relacionar o comportamento de Holmes com utilitarismo. Para ela, eventuais danos aos usuários causados pela imprecisão dos diagnósticos gerados por seu dispositivo seriam compensados quando este estivesse plenamente funcionando. Ao final de tudo, a democratização do acesso a exames de sangue elevaria o bem-estar da população. Ou seja, a “proposta heroica” da Theranos justificaria os desvios morais cometidos por sua CEO e reduziria o custo psicológico a eles atrelados.
O que podemos aprender com o caso? Por trás de toda ação há uma escolha, e é neste intervalo que os valores éticos operam. No caso de Holmes, o excesso de confiança fez com ela que sacrificasse tudo para conquistar aquilo que desejava, mesmo com evidências da inviabilidade do projeto. Os novos empreendedores, a despeito da pressão pelo sucesso, devem seguir uma linha ética capaz de norteá-los nos momentos decisivos do negócio. É importante evitar, a qualquer custo, os “pequenos delitos éticos”, pois estes podem abrir caminho para grandes infrações. A conduta deve ser sempre íntegra, ainda que não sejamos diretamente afetados pelas consequências de nossas decisões.
Bibliografia:
Doc: “A Inventora: À procura de Sangue no Vale do Silício”
Artigo: “Theranos’ Bad Blood” – Ethics Unwrapped – McCombs School of Business