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“Em sala de aula, o aluno é o protagonista”

O professor Fernando Schüler fala sobre sua trajetória como docente e intelectual envolvido no debate público de grandes questões políticas e sociais

O professor Fernando Schüler fala sobre sua trajetória como docente e intelectual envolvido no debate público de grandes questões políticas e sociais

 

 

Na adolescência, o gaúcho Fernando Schüler passava horas mergulhado nos livros da biblioteca deixada por seu pai, um professor de História que faleceu quando ele tinha apenas 8 anos. Um deles foi O Tempo e o Vento, de Erico Veríssimo, que ajudou a definir seu gosto pela história, que resolveu estudar, quando chegou o tempo do vestibular, ainda que ouvisse de muita gente que seria difícil sustentar-se com essa carreira. Na época, ele também andava mergulhado no atletismo, mais especificamente no salto em altura, esporte em que foi campeão gaúcho por diversas vezes e campeão brasileiro juvenil em duas ocasiões.

De cara encantado pelo curso, Fernando graduou-se em História em 1985. Posteriormente, concluiu o mestrado em Ciências Políticas (1995) e o doutorado em Filosofia (2007), ambos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o pós-doutorado na Universidade Columbia, nos Estados Unidos (2014). Ao longo de sua carreira, atuou boa parte como professor, mas ocupou cargos também no setor público e no terceiro setor.

Desde 2015, integra o corpo docente do Insper, onde leciona em cursos de graduação e pós-graduação. Para ele, o Insper representa um projeto único no Brasil. “Em contraste com o modelo tradicional, no qual o professor é a figura central e a aula não se diferencia muito de uma palestra, o Insper soube inovar com a abordagem centrada no aluno”, diz Schüler. “O centro da sala de aula não deve ser o professor, mas o aluno. Se o aluno não se expressa e não sai da zona de conforto, dificilmente vai aprender. Daí o que gosto de chamar de aula ‘socrática’, feita do contraditório, da argumentação, o que obviamente requer um exercício de corresponsabilidade: o professor abre o espaço mas o aluno precisa ler, estar atento, assumir igualmente seu lugar de protagonismo.”

Conheça a trajetória do professor Fernando Schüler, que também é colunista da revista Veja e curador do Fronteiras do Pensamento.

 

A herança do pai

Sou gaúcho de Porto Alegre, nascido em uma família de colonização alemã, cujos primeiros membros vieram para o Brasil na primeira metade do século 19. Meu pai, Oswaldo Schüler, era professor em escola luterana e historiador especialista na Reforma Protestante. Ele fez pós-graduação em História na USP e era um intelectual sofisticado. Publicou um livro sobre John Wycliffe, um dos precursores da Reforma na Inglaterra. Infelizmente, faleceu cedo, quando eu tinha 8 anos. Deixou-me como herança uma biblioteca com livros de história, clássicos, muita literatura e algumas enciclopédias. Foi meu maior presente. E de certo modo o meu lugar, em um apartamento pequeno, de classe média trabalhadora, na adolescência. Até hoje conservo boa dessa biblioteca.

 

O exemplo da mãe

Quando meu pai faleceu, não deixou bens materiais. Minha mãe, Dona Ivone, só tinha o ensino fundamental. Viúva, com dois filhos para criar, era uma mulher que tinha sido preparada para ser dona de casa, uma “hausfrau” alemã. Mas a partir daquele momento, em 1973, ela se tornou a chefe da família. Decidiu estudar, completou o antigo supletivo e ingressou na faculdade de Letras. Tornou-se professora de inglês para sustentar os filhos. Trabalhava o dia todo, deixava a comida pronta, um guri de oito e uma guria de onze naquele apartamento, numa época sem telefone, sem muita coisa. Mas a vida foi ensinando. Se devo a meu pai o gosto intelectual, a minha mãe devo quase todo o resto. Vejo ela como uma heroína, que nos criou pelo exemplo, sem nunca levantar a voz. Ela faleceu há um ano, aos 90 anos.

 

A escolha da carreira

Estudei em escola pública, no fundamental, e terminei o ensino médio cedo, aos 16 anos. Na época, eu era atleta de salto em altura — fui campeão gaúcho várias vezes e campeão brasileiro juvenil em duas ocasiões. Quando decidi estudar história, meu treinador, que também era professor, me deu um conselho: “Não faça isso. Professor é mal remunerado, escolhe outra profissão”. Não escolhi. Na verdade, segui uma intuição. Talvez uma a imagem do meu pai. Depois fui me envolvendo com o curso, descobri o mundo da política, os debates de uma época de transição para a democracia. Tudo que um estudante faz. Fui de ônibus a um Congresso da UNE nos anos 1980, no Maracanã. Dormi nas arquibancadas, mas por alguma razão não deixei que aquela agitação toda prejudicasse os estudos. Depois da graduação, entrei em um curso de Direito. Não gostei. Fiz o mestrado em Ciências Políticas e, posteriormente, o doutorado em Filosofia. Sou grato a alguns grandes professores, como José Antônio Giusti Tavares e Nelson Boeira, que foram meus orientadores. Minha tese foi sobre a obra de John Rawls, na verdade uma tentativa de oferecer uma alternativa a sua visão sobre a justiça. Rawls foi um autor que definiu muito da minha maneira de pensar, durante todos estes anos, o que não significa, por óbvio, endossar todas as suas ideias.

 

As primeiras aulas

Minha primeira experiência como professor foi em um colégio em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. Na época, eu ainda era estudante de História, com 18 para 19 anos. O curso era noturno, os alunos um pouco mais velhos, e alguns acharam que era trote quando viram entrar aquele sujeito alto e ainda com espinhas na cara, na sala de aula. Meu problema na época era muita timidez. Preparava as aulas nos mínimos detalhes, com medo de não saber bem o que fazer. Com o tempo, acho que fui aprendendo. Aos 21 comecei a dar aulas em uma faculdade em Osório, no litoral do Rio Grande do Sul. Pegava uma van, percorria os 110 quilômetros da Freeway, mesmo trajeto na volta. Os alunos também achavam esquisito aquele sujeito muito novo. Os alunos eram trabalhadores, chegavam cansados na faculdade, e com o tempo fui me dando conta de que aulas muito tradicionais não tinham como funcionar, com aquele público. Por óbvio eu nunca havia ouvido fala em “aprendizagem centrada no aluno”, mas, pensando para trás, era exatamente isso que faltava entender, durante muito tempo, na nossa vivência de sala de aula. Nessa época dava também aulas em cursinhos e em alguma escola de segundo grau. Foi a época de aprender a ser professor, coisa que definitivamente não se estudava na faculdade.

 

Política e gestão pública

Nos anos 1980, acompanhei de perto o processo de redemocratização do país e me envolvi no mundo da política. Em 1989, assumi um cargo na prefeitura de Porto Alegre, iniciando uma trajetória de mais de 10 anos no setor público. Ocupei postos na prefeitura de Porto Alegre, no governo do estado do Rio Grande do Sul e no Ministério da Cultura, em Brasília. Fui diretor de um grande centro cultural, em Porto Alegre, a Usina do Gasômetro, do qual tenho saudades, e depois fui chefe de gabinete do ministro Francisco Weffort, da Cultura, no governo de Fernando Henrique. Era a época da reforma do Estado, convivi com o então ministro Bresser Pereira e seu esforço para modernizar a máquina do Estado, e também uma época de implantação dos mecanismos de apoio à cultura.

Muito tempo depois, no governo gaúcho, fui secretário de Justiça e Desenvolvimento Social. Meu foco ali foram as políticas de combate à pobreza, direitos humanos e justiça penal juvenil.

Apesar dos diversos convites para ingressar na vida política, eu tinha a clareza de que esse não era o meu lugar. Sempre tive um perfil mais técnico em relação às políticas públicas. À época, criamos uma das maiores redes de parceria entre o setor público e sociedade civil, no Estado, no que aliás fui ajudado pela saudosa Ruth Cardoso. Criamos a primeira lei de incentivos a endowments do país, as políticas de reforma do Estado, a Orquestra Jovem do Estado e muitas iniciativas que até hoje estão aí. Uma época de intenso aprendizado, também.

 

Outras experiências em gestão

Para um professor, acredito que seja muito positivo ter tido a oportunidade de vivência prática na gestão pública, nos diferentes níveis — municipal, estadual e federal — e poder refletir sobre essa experiência, aliando o conhecimento teórico à prática. Para mim, isso foi muito importante, porque posso transmitir para os alunos as sutilezas da experiência prática da gestão.

Também ocupei posições no terceiro setor. Durante oito anos, fui diretor da Fundação Iberê Camargo, época em que construímos o Museu Iberê Camargo, obra do arquiteto Álvaro Siza Vieira, premiada na Bienal de Arquitetura de Veneza. Depois fui diretor geral do Ibmec no Rio de Janeiro, o que me proporcionou um contato direto com a gestão acadêmica e empresarial.

 

Debate público na mídia

Minha experiência no Ibmec me aproximou da mídia. Fui convidado para fazer análises políticas e participar de debates sobre temas nacionais e sociais na televisão, a escrever para revistas, e tomei certo gosto pelo que em geral chamamos de “debate público”.

Ao me mudar para São Paulo, continuei recebendo convites para programas na TV e no rádio, além de realizar colaborações para veículos como Época, Estadão e Folha de S. Paulo. Atualmente, sou colunista da revista Veja.

Essa atividade complementa meu trabalho como docente, permitindo a participação nos debates do país de uma forma mais ampla. Sempre gostei da ideia de que o conhecimento que se faz na universidade pode ser irradiado para toda a sociedade, gerando algum tipo de impacto.

 

Fronteiras do Pensamento

Sempre tive forte envolvimento com a área cultural e intelectual. Já no final dos anos 1980, organizei eventos em Porto Alegre com nomes como Cornelius Castoriadis, Eric Hobsbawm, Jean Baudrillard e Francis Fukuyama. O Fronteiras do Pensamento surgiu como uma decorrência natural desse processo. Sua primeira grande conferência foi com o historiador Paul Kennedy. Recebemos em Porto Alegre nomes como Tom Wolfe, Amartya Sen, Mario Vargas Llosa, Christopher Hittchens e muitos outros. A ideia era lançar uma pergunta ou um tema contemporâneo e convidar especialistas de diversas áreas para oferecer respostas, soluções e reflexões, sem necessidade de chegar a um consenso.

Com 17 anos de existência, o Fronteiras do Pensamento teve altos e baixos, mas sempre contou com a participação de nomes de grande relevância. Já recebemos cerca de 300 intelectuais de diversas áreas. Neste ano, vamos trazer nomes como Stuart Russell, especialista em inteligência artificial, Yascha Mounk, cientista político e teórico da democracia, a psiquiatra Anna Lembke, autora do livro Nação Dopamina, e o economista Nouriel Roubini.

 

A chegada ao Insper

Faço parte do corpo docente do Insper desde 2015, mas meu interesse pela escola vem desde sua criação. A proposta de uma instituição sem fins lucrativos, com foco em ensino e pesquisa de excelência, além do compromisso com o desenvolvimento do país por meio de políticas e soluções inovadoras, me fascinou desde o início.

Pouco antes de começar no Insper, concluí meu pós-doutorado na Universidade Columbia, em Nova York. Foi uma experiência muito importante, pois boa parte do que faço hoje na minha disciplina de graduação no Insper são ideias que, de alguma forma, trouxe da minha vivência em Columbia. Um exemplo é o Advocacy Project, que promove debates entre os alunos sobre diferentes perspectivas éticas.

Outras iniciativas, como o Desafio da Leitura, também foram inspiradas na minha passagem por Columbia. O objetivo é oferecer aos alunos de todos os cursos uma formação humanística sólida no primeiro ano, por meio da leitura de obras clássicas e contemporâneas de autores como Dostoievski, Somerset Maugham e Albert Camus, além de escritores brasileiros. Acredito que esse momento — antes da busca por estágios e da pressão do mercado de trabalho — é

crucial para o desenvolvimento intelectual e crítico dos alunos. Também desenvolvemos uma parceria muito interessante com o Abigail Adams Institute, de Harvard, para um curso anual com alunos de Harvard e do Insper, com temas de filosofia e economia. Penso que o Insper é o ambiente ideal para essas iniciativas e para se pensar grande, com sólida formação conceitual, mas com um olhar para o mercado e para o que se passa na sociedade.

 

O diferencial da escola

O Insper, na minha visão, representa um projeto único no Brasil. Em contraste com o modelo tradicional, no qual o professor é a figura central e a aula se assemelha muito a uma palestra, o Insper propõe uma abordagem centrada no aluno. Acredito que essa é a “revolução copernicana” na educação, e é preciso aperfeiçoá-la constantemente.

Se o aluno não fala, não se expressa e não sai da zona de conforto, dificilmente vai aprender. Por isso, tento fazer de minhas aulas, no Insper, uma espécie de arena de discussões, sempre com base em textos e casos bem escolhidos, focando no incremento da capacidade de reflexão crítica e argumentação, dos alunos. De alguma forma, há aí uma inspiração socrática, induzindo os alunos a saírem da zona de conforto, enfrentando as questões de frente, com objetividade e espírito crítico.

Outro aspecto fundamental do Insper é a promoção da equidade de oportunidades. Quem passa no vestibular pode estudar na escola, independentemente de sua condição econômica. É claro que isso exige um enorme esforço empresarial para captação de doações, mas me parece uma realização incrível num país desigual como o Brasil. Como muitos outros professores, eu me sinto orgulhoso de contribuir de alguma maneira para uma instituição que reúne tantos predicados.

 

Atividades como docente

Atualmente, leciono em cursos de graduação e pós-graduação no Insper. Na graduação, ministro a disciplina Pensamento Crítico e Ético no primeiro semestre. Essa disciplina obrigatória oferece aos alunos uma visão geral da ética, confrontando-os com dilemas éticos e ensinando-lhes pensamento crítico, incluindo raciocínio lógico, modelos de argumentação, oratória e redação de textos.

Na pós-graduação, ministro cursos em duas áreas: ética corporativa, na qual discutimos temas práticos de ética de mercado, e políticas públicas, com foco na reforma do Estado e nos modelos de contratualização. A reforma do Estado se refere à implementação de novos modelos de gestão pública, como a contratualização, no qual o Estado estabelece parcerias com o setor privado para desenvolver políticas e prestar serviços. O Brasil é referência nessa área, com modelos como PPPs, organizações sociais e concessões.

 

Liberdade de pensamento e de expressão

Acredito que todos que atuam na vida intelectual e acadêmica desenvolvem áreas em que imaginam poder contribuir. Dificilmente alguém poderá contribuir em todas as áreas, então é preciso escolher alguns focos. No meu caso, um tema com o qual me identifico bastante é o da liberdade de pensamento, da liberdade de expressão e da tolerância. São valores cruciais para a formação de uma sociedade aberta e para a preservação das instituições de nossa democracia liberal.

Curiosamente, são temas hoje bastante controversos. Há muitos anos falo sobre liberdade de pensamento. Já em 2017 ganhei um prêmio, nesta área, mas agora tudo parece ter se tornado objeto de polêmica. Acredito que isso se deve em parte à tecnologia, principalmente às redes sociais, que criaram um ambiente nervoso, um mal-estar coletivo e um desejo difuso de controle sobre a cultura, a linguagem e a opinião. Não se trata de um fenômeno apenas do Brasil, mas global.

Creio que vivemos em uma fase de pêndulo, como diz Zygmunt Bauman [sociólogo e filósofo polonês]. Lembro-me que, em uma visita que fiz a Bauman em Leeds, na Inglaterra, há mais de dez anos, ele me sugeriu, mencionando o Mal-Estar da Cultura, de Freud, que via a sociedade, em certos momentos, demandando mais ordem, e em outros momentos mais liberdade. Bauman viveu esses dois momentos, em sua longa existência: um na época da guerra, quando havia uma demanda por ordem, e outro depois da guerra, com uma demanda por liberdade. Quando me lembro disso, penso que talvez tenhamos vivido nos anos 1990, na era pós-queda do Muro de Berlim e início da revolução digital, uma demanda muito forte por liberdade. E hoje, talvez, o pêndulo tenha se movido e haja uma nova demanda por ordem.

Considero uma responsabilidade dos intelectuais defenderem o valor da liberdade, da liberdade de pensamento, da tolerância e da capacidade da compreensão humana.

 

Modernização do Estado e educação

Outro tema de extrema importância é a modernização do Estado, com ênfase na educação. É evidente que a educação brasileira não se encontra em um bom momento, principalmente a oferecida pelas redes municipais e estaduais de ensino. A grande questão é como mudar essa realidade, que talvez seja o maior desafio do Brasil.

É interessante observar que, de certa forma, o Brasil já descobriu como modernizar parques, hospitais e até mesmo a infraestrutura de transportes e o saneamento básico. No entanto, parece que todo esse aprendizado ainda não chegou à educação. Esquecemos ou ainda não damos a devida importância ao mais básico: a educação de 85% das crianças brasileiras que estudam em escolas públicas. É algo que me incomoda bastante. Coordeno um amplo projeto de pesquisa nessa área, o “Mapa da Contratualização”, acompanho inúmeros projetos de educação, país afora, e procuro de alguma forma contribuir no debate sobre esses temas. Acho que melhorar a educação é um dos maiores, se não o maior, desafio de nossa geração.

 

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