Trabalho de iniciação científica no Insper constatou, a partir da análise de 25 processos judiciais, que a teoria da deferência está sendo aplicada pelos juízes em relação à ANS
Bruno Toranzo
O Poder Judiciário, conforme provocado em processos judiciais, é deferente aos atos da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o que significa que costuma respeitar suas decisões, e não as reverter ou alterar. Essa foi a conclusão do trabalho de iniciação científica de Daniela Matos dos Santos, aluna de Direito do Insper, que, na época, estava no segundo ano da graduação. O objetivo foi, a partir do estudo específico da ANS, verificar a aplicação da teoria jurídica da deferência do Judiciário em relação às agências reguladoras, que são autarquias de regime especial destinadas a regulamentar, controlar e fiscalizar a execução de serviços públicos transferidos para o setor privado por meio de concessões e permissões, entre outras formas. A ANS faz isso em relação às operadoras de planos de saúde.
“Como as agências reguladoras fazem parte da Administração Pública Indireta, sendo entes do Poder Executivo, estando sujeitas ao seu controle, apesar de gozarem de certo grau de autonomia, há uma discussão sobre a possibilidade de o Judiciário revisar as decisões proferidas por elas, já que, nesse caso, poderia significar uma afronta ao princípio constitucional da separação dos poderes”, explica Luciana Yeung, professora do Insper e orientadora do trabalho.
Outra questão relevante, segundo Luciana, é que as agências reguladoras são órgãos técnicos compostos por membros especialistas e conhecedores dos assuntos regulados por elas — diferentemente dos ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e eventualmente do próprio STF (Supremo Tribunal Federal), que não são especialistas em matérias versando sobre saúde, energia elétrica e petróleo, entre outras. “Idealmente, questões técnicas como essas não deveriam ser decididas pelo Judiciário, que não tem esse conhecimento para avaliar regras tão específicas que se aplicam a todo país”, completa.
A estudante Daniela analisou a deferência do TRF (Tribunal Regional Federal) da 2ª Região às decisões proferidas pela ANS. Para isso, selecionou 25 apelações que versavam em sua maioria sobre a obrigatoriedade do ressarcimento ao SUS (Sistema Único de Saúde) e sobre atos administrativos sancionatórios. Sobre os temas debatidos nas decisões, 15 dos processos eram sobre infrações aplicadas pela agência reguladora; seis discutiam a obrigatoriedade do ressarcimento ao SUS pelas despesas relativas aos atendimentos prestados aos beneficiários das operadoras de planos privados de saúde; dois tinham como tema questões tributárias, especificamente em relação à inexistência da obrigação de pagamento da taxa de saúde suplementar; um versava sobre o pagamento de dívida ativa por parte de operadora de plano de saúde; e outro contestava a legalidade de atos normativos da ANS.
“Na análise das decisões, como o trabalho foi mais qualitativo do que quantitativo, consegui assimilar o processo de filtrar as informações pertinentes que permitem chegar a uma conclusão embasada. Esse processo exige resiliência porque, muitas vezes, não é fácil encontrar aquilo que o pesquisador está buscando”, observa. Segundo a aluna, “foi muito rico e desafiador todo o processo de desenvolver a metodologia de pesquisa, entender como funciona, formular uma pergunta, uma hipótese clara e objetiva, escrever e se debruçar sobre o tema”.
O trabalho também analisou se, nas decisões, havia um discurso claro de deferência aos atos da ANS como agência reguladora e, portanto, especializada nos assuntos discutidos. O discurso de que não cabe a intromissão do Poder Judiciário nos atos administrativos apareceu em apenas sete dos 25 processos. Em relação aos resultados dos processos analisados, a ANS obteve decisão favorável em 72% deles, seja com a manutenção de uma decisão tomada por ela, seja pela reforma de uma decisão desfavorável.
“Estou continuando essa pesquisa por meio da extensão do objeto de estudo para verificar a teoria da deferência em relação a outras agências reguladoras. Uma hipótese para um Judiciário mais ativista em relação a elas, e, portanto, menos deferente, está relacionada ao grau de interferência política sofrido pela agência reguladora em questão”, explica Luciana. “Seu caráter técnico, o que dá a ela credibilidade, pode ser comprometido por questões partidárias e políticas, justificando nesse caso uma intervenção maior do Judiciário em suas decisões”.