Evento detalhou as conclusões do levantamento do Insper, que aponta que o instrumento de porta de entrada para políticas sociais tem 6,6 milhões de famílias fora da linha de pobreza
Tiago Cordeiro
O Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Tarifa Social de Energia Elétrica, a Carteira da Pessoa Idosa, o Água Para Todos, o Minha Casa Minha Vida e a isenção de taxa em concursos públicos. Esses são alguns dos principais programas sociais do governo que selecionam os beneficiados com base no Cadastro Único.
Podem — e devem — se registrar no cadastro as famílias que vivem com renda mensal de até meio salário-mínimo por pessoa. Nos casos em que a renda fica acima desse valor, também é recomendável fazer a inscrição, que dá acesso a programas ou serviços específicos.
Com o objetivo de avaliar a eficácia do Cadastro Único e identificar o quanto ele, de fato, identifica os cidadãos brasileiros em necessidade, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) solicitou ao Insper uma análise da metodologia utilizada.
O lançamento do estudo “A Qualidade do Cadastro Único e o Futuro do Bolsa Família” foi realizado no último dia 8 de março. O trabalho foi apresentado e debatido durante um evento online gratuito, que permanece disponível aqui. Ele aponta que o banco de dados utilizado pelo governo federal tem 6,6 milhões de famílias fora da linha de pobreza, resultado de uma discrepância média da ordem de 29%.
E vai além, identificando as regiões do país onde a diferença é maior: em Cuiabá (MT) e em seu entorno metropolitano, em Terezina (PI), no Amapá, com exceção da capital Macapá, na Zona da Mata de Pernambuco, no Oeste da Bahia e no entorno da capital do Rio de Janeiro.
“Existe uma heterogeneidade nessa discrepância. O mapa produzido para o estudo pode se mostrar útil, caso a sociedade queira dar um passo a mais e entender essas diferenças, fazendo uma dupla verificação e buscando orientar os territórios em que a diferença é mais urgente”, informou, durante o encontro, Laura Müller Machado, professora no Insper que participou da elaboração do estudo.
A estratégia adotada pelo trabalho, cuja apresentação foi mediada por Laura Abreu, pesquisadora no Insper e que participou também do estudo, foi buscar uma compatibilização do Cadastro Único com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como explicou Ricardo Paes de Barros, professor no Insper e economista que liderou a concepção técnica do programa Bolsa Família, lançado há 20 anos, como medida provisória em 2003 e como lei em janeiro de 2004.
“Uma maneira de avaliar o Cadastro Único seria fazer uma pesquisa por amostragem, selecionando domicílios e entrevistando as famílias de uma maneira independente. O ministério já fez algumas dessas pesquisas. O problema é que elas são caras porque demandam uma amostra gigantesca. Uma ideia mais acessível seria tentar usar a PNADC para fazer essa avaliação”, explicou Paes de Barros.
Para poder fazer essa comparação, foi preciso lidar com as diferenças de metodologia do Cadastro Único em comparação com a PNDAC, que, por exemplo, não é aplicada em terras indígenas e domicílios coletivos. Buscar a melhor definição de família e a forma mais precisa de avaliar a renda também representou um desafio, explicou o professor, já que também nesses dois pontos as formas de reunir e mensurar os dados diferem.
A comparação utilizou a menor renda entre a do último trimestre e a média do último ano, mesma definição que consta no manual dos cadastradores do CadÚnico, e foram consideradas somente as informações atualizadas nos últimos 24 meses. Foram comparados os dados de 2017, 2022 e 2023. Concluiu que, nesses anos, o Cadastro Único considerou que havia, respectivamente, 15, 24,6 e 22,3 milhões de famílias abaixo da linha de pobreza atual.
A PNADC, por sua vez, avaliou a estimativa do número de famílias pobres em 13,5, 15,7 e 15,8 milhões. A diferença, portanto, saltou de 1,5 milhão em 2017 para 8,9 milhões em 2022, recuando para 6,6 milhões em 2023, uma disparidade ainda relevante.
“Todos somos plenamente a favor de gastar o que gastamos hoje com transferência de renda, e mais. O que queremos discutir é que, quanto melhor for o cadastro, mais fácil vai ser solicitar tal dinheiro para a sociedade brasileira”, afirmou Paes de Barros.
Em outras palavras, essa análise cruzada entre os dados cadastrais e as pesquisas domiciliares mostrou resultados importantes para compreender em que medida as famílias em situação de vulnerabilidade estão sendo incluídas efetivamente nas políticas sociais. São aspectos fundamentais para garantir uma distribuição mais justa e eficiente dos recursos destinados aos programas sociais.
O trabalho do Insper passa por questões estratégicas de fundo. Por exemplo: qual é o público-alvo do Bolsa Família? Ele é um programa de renda mínima ou deveria ser voltado para situações de pobreza estrutural? Deveria também atender a pessoas que enfrentam pobreza conjuntural, como vítimas de desemprego, doenças ou acidentes naturais? Como encontrar as melhores estratégias para definir família e avaliar renda?
Os participantes do evento se debruçaram sobre essas questões, em especial os convidados Cecília Machado, economista-chefe do Banco BoCom BBM, e Rafael Osório, pesquisador do International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC-IG) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Vocês aprimoraram bastante em relação às versões anteriores do estudo. Ainda acho que é necessária uma calibragem, que é o caso de se aproximar mais da PNADC do que do Cadastro Único. Faço votos de que continuem aprimorando essas estimativas, porque é um trabalho muito bom”, afirmou Rafael Osório.
“A pergunta colocada nesse estudo é bastante importante e fico feliz de ela estar sendo respondida com tanto rigor. Quando vemos números diferentes na PNADC e no Cadastro Único, o estudo suscita a dúvida: será que tivemos realmente um aumento no número de pobres ou será que a cobertura do cadastro está correta?”, disse, por sua vez, Cecilia Machado.