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O azeite, a mostarda e as empresas

Os dois produtos são o exemplo mais recente dos novos riscos à economia trazidos pelas mudanças climáticas — e que estão levando a uma profunda reorganização dos negócios

Os dois produtos são o exemplo mais recente dos novos riscos à economia trazidos pelas mudanças climáticas — e que estão levando a uma profunda reorganização dos negócios

 

David A. Cohen

 

Está aí nas gôndolas de qualquer supermercado: o preço do azeite de oliva praticamente dobrou nos últimos 18 meses. Não é um fenômeno localizado; a alta atinge o mundo inteiro. “Na Espanha, vários mercados passaram a colocar correntes nas prateleiras em torno dos galões de azeite”, afirma Geraldo Setter, coordenador do programa avançado em sustentabilidade e ESG do Insper.

A crise de abastecimento foi provocada por uma seca que atingiu a Espanha, principal produtora, e pelo mau tempo que afetou plantações de oliva também na Itália, Grécia e Portugal em 2022 — o sul da Europa é responsável por mais de metade da oferta mundial. Na safra seguinte, que começou no final do ano passado, a situação não melhorou muito.

É o mesmo tipo de problema que recentemente afetou a produção de vinhos franceses, de laranjas da Flórida e de mostarda dijon no Canadá (provocando no ano passado uma crise de abastecimento do principal condimento da cozinha francesa). E que, ao que tudo indica, será cada vez mais comum.

De acordo com um relatório da ONU, desastres relacionados às mudanças climáticas saltaram assombrosos 82% entre as duas últimas décadas do século passado (quando foram contabilizados 3.656 eventos do tipo) e as duas primeiras deste século (com 6.681 eventos). O número de grandes enchentes mais do que duplicou, as tempestades severas aumentaram em mais de 40% e houve muito mais secas, incêndios florestais e ondas de calor.

“O risco de desastres está se tornando sistêmico, com um evento se sobrepondo e influenciando outro de maneiras que testam ao limite a nossa resiliência”, afirmou Mami Mizutori, uma diplomata japonesa que tem servido como oficial responsável da ONU para redução de riscos de desastres.

 

Impactos desastrosos

Este é hoje um dos principais problemas da economia mundial, tanto no olhar macro como microeconômico. Nos Estados Unidos, por exemplo, tem ocorrido nos últimos anos mais de um desastre por mês com prejuízos acima de 1 bilhão de dólares. Uma década atrás, o país raramente vivia um ano com mais do que uns poucos desastres com esse nível de impacto, conforme uma análise da Casa Branca do final de 2022.

Não é só que os eventos extremos tenham se tornado cinco vezes mais comuns entre 1970 e 2019. Os prejuízos à economia também aumentaram — quase oito vezes, globalmente, em valores ajustados pela inflação, afirma um relatório feito no ano passado pelo banco Barclays.

 

Do just in time para o just in case

Para as companhias, lidar com esse risco é uma questão existencial. É algo parecido com o que se viu durante a pandemia da covid-19: empresas que não têm gordura para sustentar períodos de inatividade forçada podem sucumbir ante uma emergência. E já não dá para acreditar que as emergências têm pouca chance de acontecer.

“As mudanças climáticas estão afetando o supply chain (cadeia de suprimentos) de muitas indústrias”, constata Setter. De novo, a pandemia ilustra o dilema. Num mundo em que as linhas de produção e transporte estão fortemente interligadas, pequenas crises locais (como o fechamento de uma fábrica ou um porto devido a preocupações sanitárias) têm o potencial de rupturas de grandes proporções nas cadeias logísticas.

Embora a pandemia tenha tornado o problema mais agudo, ela não o criou. Como indica uma análise da fabricante de softwares de planejamento SAP, o volume de e-commerce triplicou nos últimos dez anos, trazendo consigo uma nova expectativa de atendimento imediato e personalizado que estressa as operações de logística. Além disso, as relações internacionais ficaram mais instáveis: tarifas e políticas comerciais podem mudar a qualquer momento, também com impactos consideráveis para as companhias.

Em reação à mudança de condições externas, as empresas têm sido obrigadas a se transformar. “Estamos saindo um pouco da lógica do just in time e entrando na lógica do just in case”, diz Fernando Picasso, professor de gestão da cadeia de suprimentos nos cursos de graduação, pós e educação executiva do Insper.

Just in time (algo como “só no momento” ou “no momento preciso”) é uma prática que ganhou o mundo a partir dos anos 1970, como parte do mantra de maximização de eficiência que inclui cortar excessos de gordura tanto em pessoal quanto em processos, operações e estoques. Como diz o nome, trata-se basicamente de concatenar recursos de forma a que eles só estejam disponíveis no momento que forem necessários — evitando os custos de organização e manutenção de estoques e otimizando a integração das operações.

Mas a premissa original das cadeias de suprimentos just in time era que produtores e fornecedores estivessem razoavelmente próximos. Isso mudou radicalmente desde o final do milênio passado, com a transferência de boa parte das operações fabris para a China e países vizinhos.

Quando uma empresa tinha a sua cadeia de suprimentos em sua vizinhança (ou fazia tudo internamente), a gestão de riscos seguia um roteiro tradicional: identificação de áreas mais sujeitas a problemas, reforço de segurança, treinamento, instalação de sistemas de monitoramento. Com a nova complexidade das cadeias, porém, essa estratégia já não é suficiente, porque a quantidade de problemas potenciais se multiplica. Isso levou a uma nova forma de prevenção, com foco na resiliência do sistema: as companhias tendem a se preocupar menos com a identificação de riscos específicos e mais com a robustez da cadeia — com sua capacidade de se recuperar quando algo inesperado acontece.

Daí a ideia do just in case (algo como “vai que acontece”). “A maioria dos responsáveis por cadeias de suprimentos hoje reconhece que tornar-se mais resiliente é uma necessidade imposta pelo ambiente de negócios atual”, afirma Geraint John, vice-presidente de análises da consultoria Gartner. Na prática, isso significa trabalhar com mais capital, gerenciar estoques maiores, arcar com o custo de desenvolver fornecedores alternativos, correr o risco de ficar com produção encalhada caso as demandas dos consumidores mudem.

“Sim, isso aumenta o custo da operação”, avalia Picasso. “Mas essa estratégia mais do que se paga se acontece alguma ruptura.” Um exemplo dramático aconteceu em 2011. Após o terremoto seguido de tsunami no Japão, durante meses as montadoras não conseguiram exportar carros; às vezes pela falta de algumas poucas peças simples e baratas, cuja falta atravancava toda a linha de produção. E não foi a única indústria. No agregado, estima-se que a interrupção de atividades pós-terremoto tenha reduzido o crescimento do PIB do Japão em quase meio ponto percentual.

Como aconselha Geraint John, da Gartner: “As rupturas nas operações da cadeia de suprimentos se intensificaram nos últimos anos. Isso significa que o custo de manter diversas fontes de fornecimento deve ser encarado como um custo de estar no negócio, mais do que uma ineficiência.”

Num planeta mais propenso a desastres, aponta Geraldo Setter, a solução é “sacrificar um pouco da eficiência — e, portanto, do lucro — em prol da segurança das cadeias de suprimento”. Essas novas condições impulsionam inclusive uma nova disciplina do programa avançado em sustentabilidade e ESG do Insper, a green supply chain (cadeia de suprimentos verde). São análises sofisticadas em torno de um conceito antigo e simples: “não colocar todos os ovos na mesma cesta, é mais ou menos isso”, resume Setter.

 

Colheita de azeitonas na ilha de Creta, na Grécia
Colheita de azeitonas na ilha de Creta, na Grécia

 

Nearshoringreshoring

É mais do que um seguro contra desastres. De acordo com um estudo do Fundo Monetário Internacional, a diversificação de locais de produção e de fornecedores pode reduzir em mais de 50% os prejuízos econômicos causados por desastres em países do Ocidente.

É uma das justificativas para pacotes de incentivo ao reposicionamento da produção das indústrias. Os Estados Unidos, também preocupados com a disputa comercial com a China, aprovaram leis de parcerias público-privadas para estimular a volta da produção de bens perto de casa.

“Os americanos estão promovendo o nearshoring (trazer a produção para perto), especialmente para o México, e o reshoring (trazer a produção para dentro), com a construção, por exemplo, de uma enorme fábrica de chips em Ohio”, afirma Picasso. Até o final do ano passado, as empresas americanas haviam anunciado mais de 614 bilhões de dólares em investimentos para produzir bens no país.

Reshoring também está sendo a estratégia da França em relação à mostarda de dijon. Plantada desde a Idade Média em Dijon, na região de Borgonha, sua produção foi drasticamente reduzida por causa de pestes que proliferaram depois que o governo francês baniu os agrotóxicos mais utilizados pelos agricultores locais. Entre 2017 e 2021, a quantidade de mostarda colhida na região caiu de 12.000 para 4.000 toneladas.

Com a seca do Canadá, o governo francês orquestrou um acordo de aumento de preços pagos pelos fabricantes de mostarda para que os produtores dobrassem a área plantada. Deu certo. No ano passado, o número de produtores das sementes saltou de 160 para 500, de acordo com a Câmara de Agricultura regional.

 

De vítimas a agentes

Além das ações governamentais, as próprias empresas têm tomado suas providências. As estratégias mais imediatas para busca da resiliência são investimentos em redundância, capacidade de usar materiais ou peças alternativas e melhoras na comunicação dentro da cadeia de suprimento.

Mas começa a se formar também uma mudança de mentalidade nas companhias, incluindo a consciência de que os desastres não são apenas algo externo que as atinge. São também provocados por suas próprias ações.

“Antes a gente estudava como as cadeias eram afetadas por eventos externos à operação, como um ataque cibernético ou uma guerra”, diz Picasso, do Insper. “Hoje a gente está vendo como elas são afetadas pela falta de ações sustentáveis, por decisões tomadas lá atrás em suas próprias operações.”

Há, no entanto, um complicador. Na maior parte das vezes, a responsabilidade da empresa é minúscula em relação ao impacto que sofre. Sua participação individual nos processos que levam ao aquecimento global, por exemplo, costuma ser mínima — embora no conjunto as empresas tenham grande responsabilidade pelas mudanças climáticas, ou pela internacionalização das cadeias de suprimentos. Sendo assim, há um dilema. Uma empresa não tem incentivo forte para mudar seus procedimentos se as concorrentes não mudarem também.

De qualquer forma, afirma Picasso, houve uma importante mudança de perspectiva: “As empresas eram vistas muito mais como vítimas de rupturas nas cadeias, agora estão sendo vistas como agentes.” A dificuldade é que esse é um problema cuja solução exige que as companhias equilibrem a lógica de olhar apenas para o seu próprio negócio com uma postura de maior colaboração.

 

Competir e colaborar

O Insper tem uma iniciativa que vai nessa direção: um grupo de estudos em operações de logística urbana. “Ali discutimos algumas questões relacionadas à resiliência da cadeia”, diz Picasso. Por exemplo: como as empresas podem colaborar para fazer entregas a partir de lojas de shopping.

Hoje, se você faz um pedido em duas lojas, é provável que cada uma envie um entregador para a sua residência. “A gente quer colocar essas empresas para colaborar na entrega.” Isso pode reduzir problemas no trânsito, melhorar as condições de trabalho dos entregadores, racionalizar custos, recompensar os shoppings (de onde normalmente saem as mercadorias).

Não é nada fácil. Afinal, as empresas são muitas vezes concorrentes diretas e enxergam a entrega na última milha como uma vantagem competitiva (garantir a chegada do produto mais rápida impulsiona as vendas). “Mas elas muitas vezes já usam o mesmo provedor de tecnologia para fazer as entregas”, argumenta Picasso. Usar o mesmo transporte seria uma questão de desenhar um processo seguro.

Sim, teria que haver concessões, claro. A grande dúvida, segundo Picasso, é: “Até onde as empresas estão dispostas a mudar para mitigar os impactos que estamos vendo hoje?”.

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