Realizar busca
test

O lado B da transição energética

Os “metais de transição”, lítio à frente, podem nos salvar da maldição do petróleo. Mas é preciso lidar com os problemas do aumento na mineração

Os “metais de transição”, lítio à frente, podem nos salvar da maldição do petróleo. Mas é preciso lidar com os problemas do aumento na mineração

 

David A. Cohen

 

A tão falada transição energética de que o mundo precisa para se livrar da maldição do petróleo — e conter as desastrosas mudanças climáticas — está finalmente ganhando tração. Segundo estimativas da Agência Internacional de Energia (AIE), daqui a apenas três anos a geração de energia renovável empatará com a produção de energia fóssil e nuclear (esta, considerada “limpa” por tantos anos, foi rebaixada por causa do risco de contaminação radiativa em acidentes).

Há, no entanto, um lado B dessa equação: a extração de minérios está em alta, em boa parte puxada pela própria transição energética. A AIE calcula que, até 2040, a extração de “metais de transição” (usados em baterias solares, pilhas etc.) deve sextuplicar, para acima das 40 milhões de toneladas.

Não é só isso, é claro. “Nós já temos mineração de todos os possíveis elementos que a sociedade utiliza, a transição só acrescenta mais um pouco”, afirma Geraldo Setter, o engenheiro que coordena o Insper Metricis – Núcleo de Medição para Investimentos de Impacto Socioambiental.

De fato, o mercado de mineração como um todo é gigantesco. No último ano, passou de 2,02 trilhões de dólares para 2,15 trilhões de dólares, segundo o relatório global de mineração da consultoria The Business Research Company, uma alta de 6%. “Mas o ataque a essa atividade adicional é uma crítica fácil”, diz Setter.

“A mineração desses materiais serve para quê? Para usar energias mais limpas. No limite, se substituirmos toda a produção energética pela solar e eólica, vamos estar deixando de usar o vilão número um, carvão, e o vilão número dois, petróleo.”

Estamos nessa trajetória. No entanto, as estimativas são de que a demanda pelo petróleo não vai parar de crescer antes de 2026. Neste ano, segundo o mais recente relatório com projeções de médio prazo da AIE, o uso de óleo para transporte entrará em declínio — embora o consumo global ainda seja mantido pelas necessidades do setor petroquímico e de aviação.

Ou seja, não é que a nossa dependência do petróleo esteja caindo. Ela vai apenas começar a declinar. É só o início do processo. Para que ele deslanche, necessitamos dos “metais de transição”: lítio, cobalto, cobre, grafite, magnésio e níquel, além de alguns da classe das terras-raras, como neodímio, praseodímio, disprósio e térbio. Por causa disso, há até quem considere o lítio, principalmente, como o próximo petróleo — um material não renovável que está por trás do ímpeto da energia renovável.

 

O “paradoxo do lítio”

A isso o professor italiano Marco Tedesco, pesquisador da Escola de Clima da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, chama de “paradoxo do lítio”. A dependência do elemento lembra, segundo ele, aquela do carvão e do óleo que transformou a nossa sociedade no passado. “Mas, se naquele tempo não se sabia dos efeitos de longo prazo da queima de combustíveis fósseis, hoje nós entendemos os aspectos negativos da extração de lítio”, afirma em artigo no site da universidade.

Entre os efeitos negativos estão o uso de uma grande quantidade de água para extração do mineral; a contaminação da água no entorno; potencial aumento das emissões de dióxido de carbono durante a extração; produção de lixo mineral; aumento de problemas respiratórios para as populações vizinhas; e possível alteração dos ciclos hidrológicos da região.

A questão da água é provavelmente a mais sensível. Para extrair uma tonelada de lítio, usam-se hoje cerca de 500.000 litros de água. E ainda há o significativo risco de poluição de reservas.

É um problema sério no vale do Atacama, no Chile, um dos polos de produção de lítio do planeta. A produção tem absorvido água que já era escassa para as comunidades locais.

E, no entanto, minerar é preciso. Lítio, níquel e cobalto para as baterias, telúrio para painéis solares, neodímio para os equipamentos magnéticos usados em usinas eólicas (e nos carros elétricos), cobre para a eletrificação das cidades… Em alguns desses casos, a humanidade precisa de volumes dez vezes maiores do que os atuais mercados, de acordo com um relatório da consultoria McKinsey do início do ano passado. Sem falar no aumento da demanda de aço, para construir a infraestrutura adicional da transição energética.

Mina de lítio no estado de Nevada, nos Estados Unidos
Mina de lítio no estado de Nevada, nos Estados Unidos

A corrida pelos minérios

Vem daí uma espécie de nova corrida do ouro, agora principalmente pelo lítio, capaz de armazenar energia de forma mais eficiente e por mais tempo. Mais de 90% do mercado de baterias é dominado pelo lítio. Em especial, na produção de carros elétricos. A bateria de um Modelo S da Tesla, por exemplo, usa cerca de 12 quilos do elemento.

Foram os carros elétricos que mudaram o jogo. Há menos de uma década, em 2015, seu uso em baterias não chegava a 30% (o mineral era mais utilizado para fazer óleos, polímeros, cerâmicas e vidros). Até o final da década, todos esses usos serão marginais, com as baterias respondendo por mais de 95% da demanda por lítio, segundo a McKinsey.

Atualmente, quase toda a produção de lítio do mundo (cerca de 98%) vem da Austrália, da América Latina (a maior parte do Chile) e da China. Não é de espantar que estejam pipocando projetos para diversificar essa oferta. Os Estados Unidos e a China já tratam essa questão como primordial para assegurar a dianteira da eletrificação.

Contando apenas os projetos já anunciados, a McKinsey calcula um crescimento anual de 20% na oferta global de lítio. Com a mineração, contudo, acontece um fenômeno já conhecido em searas como a da energia nuclear ou mesmo usinas eólicas ou solares, que tem o apelido de Nimby, um acrônimo de not in my backyard (não no meu quintal). Todos reconhecem que ela é necessária… mas não a querem perto de si.

O primeiro grande projeto de mina de lítio nos Estados Unidos em mais de uma década, no estado de Nevada, está sofrendo a oposição ferrenha de grupos ambientalistas, fazendeiros e uma tribo indígena, porque se prevê o uso de bilhões de litros de água do subsolo.

“As nossas novas demandas por energia limpa podem estar criando mais mal, embora a intenção seja boa”, disse Aimee Boulanger, diretora executiva da Iniciativa pela Garantia de Mineração Responsável, um grupo que avalia minas para companhias como a BMW e a Ford Motor. “Não podemos deixar que isso aconteça”, afirmou ao jornal The New York Times.

Em Portugal, que também tem um projeto de mineração de lítio, tem havido protestos semelhantes.

 

No leito do oceano

Todos esses protestos são compreensíveis. Afinal, qualquer tipo de extração de recursos é prejudicial ao planeta, com potencial degradação do solo, uso exagerado de água, perda de biodiversidade, danos ao ecossistema local e aumento na emissão de poluentes responsáveis pelo aquecimento global.

E nós podemos estar no pior dos momentos: de um lado, a extração de materiais fósseis não caiu; de outro, a curva da extração de minérios acelera. Mas a questão é: temos alternativa? “O ponto é que a velocidade da transição energética pode ser melhorada”, diz Geraldo Setter, do Insper.

Também não convém simplesmente fechar os olhos para os riscos da mineração. As pressões ambientais estão aí e tendem a crescer.

Está em discussão, por exemplo, o início da mineração no leito oceânico, em terras internacionais, em busca principalmente de… lítio, claro. O projeto mais avançado, da Metals Company, baseada no Canadá, foi suspenso no final de julho pela Autoridade Internacional do Leito Oceânico (ISA, das iniciais em inglês), uma organização internacional criada em 1994 que hoje conta com 169 membros (168 países mais a União Europeia).

A ISA concluiu que precisa de mais tempo para analisar os impactos da atividade, o que adia o início dos trabalhos no mínimo por dois anos. A área de maior interesse para a mineração subaquática fica entre o México e o Havaí, onde existe uma alta concentração de metais. Se a Metals Company conseguir a licença para explorar a região, a pequena companhia que jamais teve lucro poderá se tornar de repente uma das principais fornecedoras do mundo de materiais necessários para a transição energética.

 

O lítio verde

Até onde se sabe, com os dados de hoje, a mineração traz muitos problemas, mas os que ela ajuda a solucionar são mais graves e mais urgentes. “Há um problema na extração, mas no consumo esses tipos de energia não liberam poluentes”, lembra Setter.

O que não significa que devemos nos resignar ao menor dos males. “Qualquer atividade pode ser feita de maneira mais agressiva ou mais consciente em relação à natureza”, afirma. Um exemplo vem justamente do Brasil

No final de julho, a empresa canadense Sigma Lithium anunciou sua primeira remessa de lítio produzido no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. É, segundo a companhia, o primeiro “lítio verde do mundo”: sua extração é feita com “zero emissão de carbono, zero rejeitos, zero químicos nocivos”.

“Como produtores de lítio verde, estamos ajudando a elevar o papel do Brasil na transição energética, ao mesmo tempo que criamos um impacto positivo nas comunidades do Vale do Jequitinhonha”, afirmou a executiva-chefe da companhia, Ana Cabral.

Um aspecto importante da extração “verde” foi o desenvolvimento de um processo de beneficiamento do minério de lítio que não gera barragem de rejeitos e permite que ele seja empilhado a seco, para venda posterior, o que gera mais recursos para os municípios. Além disso, a ausência de uso de produtos químicos no seu processo contribui para preservar os rios e matas da região.

 

Bateria de lítio de carro elétrico
Bateria de lítio de carro elétrico

Dá para ser (ainda) mais verde?

Além da extração consciente, precisamos investir em soluções alternativas, afirma Tedesco, da Universidade Colúmbia. Isso inclui procurar substitutos para o lítio, aumentar o tempo de duração das baterias, melhorar o processo de reciclagem (que diminuiria a necessidade de mineração). Ao mesmo tempo, seria necessário implementar leis e regulamentações estritas para as operações de mineração e investir em métodos mais avançados de extração do lítio, diz o professor.

Alguns desses métodos já existem. O DLE (Direct Lithium Extraction), por exemplo, já é provado como uma alternativa a um dos métodos predominantes, usado no Chile. Lá, separa-se a água em salares, ou salmouras, que têm alta concentração de sais, sendo o lítio um deles. A partir daí, o Sol faz a maior parte do trabalho: provoca a evaporação da água, o que faz com a concentração de lítio suba cerca de 30 vezes (para mais ou menos 6%). Daí aplicam-se solventes para obter o carbonato de lítio, que depois passa por processos para aumentar sua pureza.

Os métodos de DLE são variados, mas obedecem a um mesmo conceito: a salmoura passa por uma solução com materiais capazes de atrair o lítio. Isso pode ser feito num processo químico de adsorção (diferente da absorção, ela provoca a adesão de átomos, íons e moléculas de um gás ou líquido a uma superfície), ou com troca de íons, ou com membranas ultrafinas, ou solventes. Depois dessa fase, aplica-se uma solução para polir a substância resultante e obter o carbonato de lítio ou o hidróxido de lítio.

Entre as vantagens do DLE estão a redução ou eliminação das salmouras de evaporação, maior eficiência na obtenção do lítio (até o dobro), uso bem menor de água e menor tempo de produção (não é preciso esperar a evaporação).

Um outro método, ainda em experimentação, é o DLP (Direct Lithium to Product), que consiste em usar energia (de fontes renováveis) para extrair o lítio, seja de salmouras, de baterias velhas ou outras soluções e produzir o hidróxido de lítio (usado nas baterias) sem precisar passar pelo estágio do carbonato de lítio.

Quanto às opções para substituir o lítio, há vários projetos que buscam candidatos plausíveis.

• Um deles é o sal. O sódio é um elemento bastante próximo do lítio e sua extração não tem o mesmo impacto ambiental. Já pensou em jogar um pouco de sal no seu carro para dar uma carga extra na bateria? O problema é que o sódio tem o triplo do peso do lítio, e as baterias de sal seriam bem mais pesadas — além de menos potentes.

• Outra alternativa é o ferro. Sua vantagem é um suposto potencial maior de retenção da eficiência, que se traduziria em maior durabilidade da bateria. Também são muito mais baratas para produzir, disse o pesquisador de energias renováveis Rich Hossfeld, em artigo para a revista Bloombergintitulado “Um avanço na bateria de ferro poderia tirar o lítio do jogo”. A desvantagem é que elas são muito maiores que as baterias de lítio. Não funcionam para celulares, máquinas fotográficas ou computadores. Mas podem dar certo para armazenamento de energia na rede pública.

• Também o silício é visto como potencial elemento de transformação. Ele não poderia substituir o lítio, mas adicionado a ele no lugar do grafite usado hoje. Isso pode resultar em menor perda de potência, com baterias mais seguras e leves.

• Há ainda estudos para utilizar o magnésio nas baterias. Em tese, este elemento tem capacidade de entregar mais carga do que o lítio ou o sódio — possivelmente o dobro. Baterias feitas com ele poderiam ser mais estáveis, fornecer mais energia, custar menos.

• E, correndo por fora vem… a maconha. A startup Bemp Research Corp está em busca de investimentos para levar adiante uma bateria em que a maconha não substitui o lítio, mas pode ser usada no lugar do níquel ou do cobalto, em conjunto com enxofre e boro, dois elementos abundantes.

A profusão de projetos é uma mostra de que a transição energética avança a passos largos. E muita coisa ainda vai mudar nas tecnologias que nos permitirão deixar o petróleo para trás.

Este website usa Cookies

Saiba como o Insper trata os seus dados pessoais em nosso Aviso de Privacidade, disponível no Portal da Privacidade.

Aviso de Privacidade

Definições Cookies

Uso de Cookies

Saiba como o Insper trata os seus dados pessoais em nosso Aviso de Privacidade, disponível no Portal da Privacidade.

Aviso de Privacidade