A realidade é complexa e exige maior cuidado e reflexão acerca daquilo que deve ou não ser coibido
Sávio da Silva de Souza
O escritor francês Victor Hugo afirmava que “as palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade”. Por meio do discurso, seja ele escrito ou falado, pode-se propagar e popularizar as mais diversas ideias e opiniões, inclusive aquelas que trazem consequências negativas e são consideradas danosas ao bem-estar da sociedade.
No mundo contemporâneo, marcado pela liberdade de expressão e ascensão das mídias sociais, a disseminação de discursos de ódio é crescente. De acordo com a Safernet, organização não governamental especializada na promoção de direitos humanos no espaço virtual, no primeiro semestre de 2022, por exemplo, houve, na internet, um aumento, em relação ao mesmo período do ano anterior, de 67,5% de crimes como a intolerância religiosa, a xenofobia e o neonazismo, totalizando cerca de 24 mil denúncias.
Outro fenômeno que ganha cada vez mais espaço nas redes é o das chamadas fake news, ou notícias falsas, as quais podem, de maneira articulada e intencional, degradar, dentre outras coisas, o ambiente político-eleitoral e a reputação de pessoas. Em paralelo, a história também fornece uma vasta gama de exemplos nos quais doutrinas e ideologias foram utilizadas para subjugar grupos e povos, como foram os casos da Alemanha nazista e da escravidão africana, fundamentadas na concepção de superioridade de raças, o que justificaria o extermínio e exploração dos “inferiores”.
Diante de tantos usos inadequados do direito à livre expressão e opinião, é legítimo e perfeitamente razoável que algumas pessoas queiram estabelecer ou aumentar os limites à tal prerrogativa legal. No entanto, essa posição enfrenta objeções que precisam ser considerados.
Inicialmente, há uma dificuldade de enquadramento conceitual: se a defesa de um maior cerceamento da liberdade de expressão é para evitar a disseminação de discursos de ódio e fake news, é preciso classificar cada discurso como sendo ou não de ódio e cada informação como sendo ou não falsa. Em alguns casos, essas rotulações são fáceis e claras, mas existem situações nas quais tais distinções são mais complicadas. Além disso, cabe saber quem será responsável por fazer tais julgamentos, ou seja, quem terá o poder de definir o que pode ou não ser dito.
Entretanto, como expunha o filósofo britânico John Stuart Mill, ainda no século XIX em seu livro “Sobre a Liberdade”, há algumas fragilidades inerentes aos juízos de valor em questão:
As nuances da presente discussão são perfeitamente representadas no filme “O povo contra Larry Flynt” (1996), quando um grupo de conservadores tenta censurar a revista “Hustler”, a qual publicava, explicitamente, mulheres nuas. Ou seja, a pornografia, vista como normal por muitos, é encarada como inapropriada por outros, que advogam sua censura.
Nesse sentido, a produção americana demonstra a volatilidade do que pode ser considerado vulgar (ou falso, ou discurso de ódio) e como, muitas vezes, as pessoas só querem, a partir de um impulso autoritário, afirmar suas visões de mundo e censurar publicações pelo simples fato de não gostarem delas. Mas, como dito em um dos diálogos do filme, “há um preço para liberdade: temos que tolerar coisas das quais não gostamos. […] se começarmos a coibir o que alguns acham obscenos, acordaremos um dia e veremos que haverá censura em lugares que nunca imaginamos”.
Em síntese, seria positivo, em um mundo ideal, impor maiores limites à liberdade de expressão como forma de prevenir a disseminação do ódio e da mentira. No entanto, a realidade é complexa e exige maior cuidado e reflexão acerca daquilo que deve ou não ser coibido, quem determina tal restrição e quais as implicações disso na manutenção do estado democrático de direito.
Referências bibliográficas:
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
MOTTER, Andressa. Crimes de ódio na internet crescem até 650% em ano eleitoral. G1, 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/08/29/crimes-de-odio-na-internet-crescem-ate-650percent-em-ano-eleitoral.ghtml. Acesso em: 21 fev 23.
KIYOMURA, Leila. Crescimento de neonazistas no país é um dos desafios das eleições 2022. Jornal da USP, 2022. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/crescimento-de-neonazistas-no-pais-e-um-dos-desafios-das-eleicoes-2022/. Acesso em: 21 fev 23.
O POVO CONTRA LARRY FLYNT. Direção: Milos Forman. Estados Unidos: Columbia Pictures Corporation, 1997.