“Precisamos de uma política nova para imigrantes, que hoje são recebidos como cidadãos de segunda classe”, diz Luís Felipe Aires Magalhães, do Observatório das Migrações de São Paulo
Bárbara Nór
Italianos, japoneses, sírios, libaneses, portugueses. Esses são apenas alguns exemplos das diferentes nacionalidades que ajudaram a compor o que hoje se entende como população brasileira – isso sem contar as milhares de pessoas forçadas a vir de diferentes regiões da África durante o período da escravatura no Brasil.
Desde o começo, portanto, fomos resultado de uma série de imigrações. Não à toa, o dia 25 de junho foi escolhido para celebrar nacionalmente a contribuição dos imigrantes para a cultura e a economia do Brasil. No entanto, estamos longe de ser um país preparado para receber estrangeiros, aponta Luís Felipe Aires Magalhães, mestre e doutor em Demografia pela Unicamp, professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) e coordenador-adjunto do Observatório das Migrações no estado de São Paulo.
“O imigrante é sempre recebido como um cidadão de segunda classe, e por muitos anos o Brasil teve uma legislação que via o estrangeiro como uma ameaça”, diz Magalhães.
Sofrendo com preconceito, entraves para reconhecer diploma e qualificações do país de origem e muitas vezes sem acessar o mercado de trabalho formal, a condição de muitos imigrantes no Brasil acaba sendo de vulnerabilidade social e econômica. Embora tenhamos políticas de acolhimento, segundo Magalhães, ainda falta articulação entre diferentes instâncias governamentais, fiscalização das condições de trabalho e integração dessas pessoas na sociedade.
Leia mais na entrevista a seguir.
Como você descreveria a situação do Brasil hoje em relação aos fluxos mundiais de migração?
O Brasil não é um destino preferencial nem para o imigrante voluntário nem para aquele em deslocamento forçado. Aqui, comemoramos o dia do imigrante em 25 de junho e, internacionalmente, temos 20 de junho o dia da pessoa em condição de refúgio. O fato de as duas datas serem próximas é simbólico, porque existe uma proximidade entre as duas condições. Toda pessoa em situação de refúgio é imigrante, mas nem todo imigrante está em situação de refúgio. As pessoas se deslocam por várias razões: de forma voluntária e, cada vez mais, de forma forçada — é aí que entram as pessoas em situação de refúgio. São pessoas forçadas a se deslocar e obrigadas a sair de sua região, cidade ou país, porque, se ficarem, a vida delas corre algum tipo de risco. Então, embora o Brasil não seja um destino desejado, nos últimos anos nos tornamos um destino possível para essas pessoas, por diversas razões políticas e econômicas.
Quais razões econômicas e políticas você destacaria para isso?
As razões econômicas se referem especialmente ao ciclo de desenvolvimento que tivemos no Brasil na primeira década dos anos 2000. Entre 2013 e 2014, o Brasil criou 14,4 milhões de postos de trabalho, e isso em um contexto atravessado por uma crise econômica nos Estados Unidos e na Europa. Onde há crise, haverá fechamento de fronteiras e crescimento na xenofobia. Os imigrantes vão sofrer mais que os cidadãos nacionais. Então, esse período aumentou as barreiras para essa migração Sul-Norte. Isso tornou o Brasil um destino mais possível para essas pessoas.
Além disso, nesse mesmo período sediamos a Copa do Mundo de 2014 e organizamos os Jogos Olímpicos de 2016. Para ambos os eventos, precisávamos de grandes obras e, portanto, de força de trabalho, outro elemento que atraiu muitos migrantes nessa primeira década. Também tivemos um grande fluxo de haitianos porque, desde 2004, o Brasil coordenava a missão de paz no Haiti, a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti). No governo Bolsonaro, por sua vez, tivemos muito mais o reconhecimento de venezuelanos como refugiados para evidenciar as discordâncias ideológicas com o governo daquele país. Já o governo atual criou um visto de acolhida humanitária que hoje é estendido aos haitianos, afegãos, ucranianos e sírios, entre outros. Essa resolução prevê a acolhida daqueles que se veem forçados a se deslocar por razões ambientais, entre outras, atraindo mais pessoas desses países.
Antes disso, qual era o perfil mais comum dos imigrantes no Brasil?
Os fluxos constituídos há mais tempo são os chamados mercosulinos, e vêm principalmente da Bolívia, do Peru e do Paraguai. Os bolivianos, por exemplo, começaram a vir já na década de 1950 — e de um recorte bastante privilegiado. Eram estudantes da saúde que vinham estudar em São Paulo. Com a crise do Estado boliviano nos anos 1970 e 1980, esse fluxo adquiriu um perfil mais popular, e começou a vir para o Brasil em busca de trabalho, especialmente aquele de baixa qualificação profissional na costura. Assim, eles se estabeleceram na indústria têxtil, que passou a absorver também paraguaios e peruanos. Esses imigrantes mercosulinos também, muitas vezes, se encontram em condições precárias de trabalho em oficinas de costura pulverizadas pelo centro de São Paulo até as regiões norte e leste. Mas, nos últimos anos, eles vêm se dispersando mais para outros municípios, como Guarulhos e Osasco, em uma tentativa das empresas de fugir da fiscalização dos órgãos de trabalho. Essa é uma fiscalização que é importante e eficaz, mas que está muito aquém do necessário. Temos pouco mais de 2 mil fiscais para fiscalizar mais de 100 milhões de vínculos de trabalho. Essa conta não fecha. A nossa hipótese é que essa dispersão tem a ver, além da fuga da fiscalização, com a possibilidade de acessar aluguéis mais baratos em um sistema informal.
E em relação aos fluxos mais recentes como é a absorção dessas pessoas pelo mercado de trabalho?
Em geral, essas pessoas vão ser recrutadas pelos setores que estão mais em expansão, o da construção civil e o da indústria e o da agroindústria, em especial empresas do Centro-Sul. Esse recrutamento mobilizou e espalhou os imigrantes haitianos desde o início da década passada — hoje, isso acontece com os venezuelanos, que são dispersos pelo território com a chamada Operação Acolhida, montada pelo Estado e realizada pelas Forças Armadas. Distribuem-se essas pessoas pelo território sob o argumento de que as cidades fronteiriças não têm condições de absorver essas pessoas. Mas em diversas pesquisas que fizemos no Observatório das Migrações, vemos que as condições de trabalho desses migrantes foram caracterizadas como bastante degradantes.
Como essas condições de trabalho são degradantes?
Em estudos que fizemos com haitianos, em especial na agroindústria, vimos que há três principais formas de violações dos direitos trabalhistas dessas pessoas. A primeira é o desconto de uma parte do valor do salário em troca de um alojamento precário, o que se configura como trabalho análogo à escravidão. Há também a retenção de documentos e imposição de jornadas exaustivas, com violência no processo de trabalho. A segunda forma de exploração é a questão da alocação discriminatória — ou seja, onde havia mais desgaste de energia física, como o setor de pendura de peças de carne, em que era mais comum encontrar haitianos, muitas vezes sem respeito a normas de segurança de trabalho. Já a terceira forma de violação de direitos é a entrega de documentos demissionais sem tradução juramentada ou sem a presença de intérpretes. Os documentos tinham cláusulas em que os trabalhadores abriam mão, sem saber, de direitos pós-demissionais. Essa é uma marca do capitalismo brasileiro: a forma como ele lida com o trabalho braçal negro. Não é uma questão de mau-caratismo, mas uma característica estrutural do capitalismo brasileiro.
Quais são alguns dos maiores entraves para essas pessoas acessarem postos de trabalho mais qualificados?
Muitos imigrantes se queixam da dificuldade de reconhecer diploma e de realizar o trabalho que faziam em sua região de origem. O Brasil é um país muito xenofóbico, discriminador da população imigrante e negra, e entende que ela é apenas uma força de trabalho. Há uma resistência em reconhecer o imigrante como qualificado. Como resultado, os imigrantes têm uma contribuição muito aquém do que poderiam ter na economia. Os haitianos, por exemplo, são um fluxo muito qualificado. Vir para o Brasil não é barato, então as famílias que conseguem vir para cá são aquelas que colocaram os filhos em escolas, universidades. Chegam médicos, professores, engenheiros, enfermeiros, que acabam trabalhando em condições muito abaixo da qualificação.
Como você avalia a política migratória do Brasil?
Ela é ainda muito recente. Até 2017, vigorava o Estatuto do Estrangeiro, um resquício da ditadura, que entendia o migrante como um estrangeiro que podia ferir a segurança nacional, como um risco. Ela proibia imigrantes de se sindicalizarem, de se organizarem politicamente, e os entendia como ameaça, só recebendo imigrantes de acordo com o interesse de cada setor brasileiro, privilegiando os mais qualificados em detrimento dos menos qualificados. Em 2017, essa lei foi sepultada e uma lei muito mais avançada em um período adverso politicamente foi aprovada. Isso só aconteceu graças a um arranjo político muito interessante entre forças do PT e PC do B com o apoio do PSDB. A lei entrou em vigor em 2018 e busca trazer uma perspectiva de acolhida humanitária. No entanto, a lei precisa de regulamentação e é aí que a conjuntura política falou mais alto — não tivemos essas portarias envolvendo diferentes escalas, como municipal e estadual. Tudo ficou muito concentrado na Operação Acolhida, exclusiva para venezuelanos. Ao mesmo tempo, em 2019, o Brasil saiu do Pacto Global da ONU para Migração Segura, Ordenada e Regular — na prática, isso significou que não nos comprometemos mais com os estrangeiros que chegam aqui, e outros países não precisam mais se preocupar com os brasileiros. Então passamos quatro anos concentrados na Operação Acolhida, dispersando venezuelanos pelo território sem ter grande crescimento de centros de referência para migrantes no país. Os maiores espaços de acolhida ainda estão concentrados em São Paulo.
O que existe em São Paulo que falta ainda em outras regiões do Brasil?
Desde 2013, existe na cidade de São Paulo a Coordenação de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente. É uma política municipal, incorporada à gestão pública, que não depende do governo ou partido. Temos centros de acolhida onde é possível acessar serviços como emissão de documentos, atendimento médico-hospitalar e reconhecimento de diploma. Não estou dizendo que é uma maravilha, mas, comparativamente a outras cidades, São Paulo está muito mais avançada. Apenas mais recentemente, outras cidades estão estabelecendo serviços assim, como Porto Alegre, Curitiba e Rio de Janeiro. Mas, logicamente, mesmo São Paulo esbarra em questões burocráticas de competência federal, como na validação de diplomas — há coisas que dependem de uma articulação com todas as esferas.
Ou seja, temos a pulverização de imigrantes sem, de fato, termos estrutura para acolhermos essas pessoas pelo território?
Sim. As migrações estão mais interiorizadas, temos uma presença maior no interior por causa do crescimento econômico das cidades médias e menores e por causa da presença de frigoríficos, que empregam muitos imigrantes, no interior. Aí a questão da ausência de política pública se agrava ainda mais. As cidades do interior já não têm uma estrutura de assistência de acolhimento em geral muito avançada, e muito menos para imigrantes. Esse é o principal problema: a vulnerabilidade fica ainda maior do que na região metropolitana, onde, por mais que sejam explorados, os imigrantes sabem que podem ir e receber uma cesta básica ou solicitar acompanhamento jurídico, ter algum tipo de apoio. No interior, essa rede praticamente não existe.
Em sua opinião, o que seria mais necessário agora para dar conta desse cenário?
O Brasil precisa criar uma política nova para imigrantes. Nós temos vistos, temos um processo de facilitação de entrada, temos um governo atual mais sensível para o tema. Mas não temos uma política com “P” maiúsculo, envolvendo diferentes instâncias governamentais, e que articuladamente consiga resolver alguns problemas centrais da população imigrante. Um exemplo é o acesso à cidadania e a direitos. Ainda temos muitos imigrantes sem documentos, entrando por uma fronteira terrestre enorme e muito porosa, especialmente com Bolívia, Peru e Venezuela. Isso faz com que tenhamos uma entrada de pessoas sem acompanhamento e assistência por parte do Estado.
Isso não significa que devemos fechar fronteiras: a mobilidade é um direito humano universal. Mas é preciso ter acesso a direitos, e isso exige documentação e acompanhamento. A segunda questão é que ficamos quase quatro anos sem Ministério do Emprego. Tivemos uma reforma trabalhista que piorou muito as condições de trabalho. Precisamos pensar a política migratória por meio do trabalho decente. Não é só acesso a trabalho, mas combate ao trabalho escravo, com fiscalização das condições. Esse tema tem que ser transversal e envolver outros ministérios. Além disso, o Conare, o órgão que julga solicitações de refúgio, é muito pequeno. Temos mais de 100 mil solicitações ainda esperando julgamento. Pessoas que vêm de países da África e Ásia, cujas guerras não recebem tanta importância como as da Ucrânia e da Síria, não são atendidas tão rapidamente. Essas pessoas esperam 6, 7 anos para ter uma resposta e até lá ficam em um limbo jurídico.
Qual o papel que empresas e universidades do setor público e privado podem ter nessa questão do acolhimento de imigrantes?
É fundamental que as universidades criem mecanismos de entrada e acesso a imigrantes. Temos as chamadas Cátedras Sérgio Vieira de Mello [diplomata brasileiro morto em um atentado no Iraque]. Essa cátedra é articulada com o Acnur [Agência da ONU para Refugiados] e é um dispositivo para trazer o tema do refúgio para as universidades, por meio de disciplinas, pesquisas e acesso facilitado. Independentemente disso, devem buscar constituir grupos de pesquisa, redes de pesquisadores, institutos e observatórios voltados ao estudo das migrações internacionais e do refúgio. O Observatório das Migrações em São Paulo, aliás, se coloca desde já à disposição para auxiliar a criação desses espaços. Além disso, as universidades podem contribuir trazendo dados específicos, cotas de acesso, pesquisar o tema, criar grupos e espaços para gerar dados e conhecimentos para subsidiar políticas públicas. Isso é algo que universidades particulares devem fazer. Já em relação às empresas, não serei muito ingênuo. Só peço que elas cumpram as leis e respeitem os direitos trabalhistas. Essas instituições têm que reconhecer a importância dessa questão, facilitar o emprego formal e não vincular o imigrante a uma jornada exaustiva. Não é porque ele é migrante que precisa ser relegado a essas condições. As empresas precisam saber aproveitar as aptidões que eles trazem e valorizar as qualificações deles.