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Sucessão na Disney: o líder errado, na hora errada

Os quatro grandes erros do executivo Bob Chapek — e a puxada de tapete que o tirou do comando do gigante de entretenimento

Os quatro grandes erros do executivo Bob Chapek — e a puxada de tapete que o tirou do comando do gigante de entretenimento

 

David Cohen

 

O executivo Bob Chapek foi sumariamente destituído da presidência da Walt Disney Company em novembro passado e foi substituído pelo seu antecessor no cargo, Bob Iger, que o havia escolhido e treinado para assumir o comando do gigante de entretenimento. Podem-se citar vários motivos para a gestão de Chapek não ter dado certo. O primeiro deles foi azar. Ele assumiu o cargo de executivo-chefe no dia 25 de fevereiro de 2020 — quando a pandemia da covid-19 começava a se espalhar pelo mundo.

Nesse aspecto, a situação da Disney lembra a de outra corporação americana, a GE. No início do milênio, ela também teve uma troca de comando, seguindo um rigoroso processo de sucessão disputado entre executivos da própria empresa. Assim como Chapek, Jeff Immelt teve que substituir um líder extraordinário, ninguém menos que Jack Welch, então considerado por muitos como o melhor executivo-chefe de todos os tempos nos Estados Unidos. E Immelt também foi surpreendido logo no início de seu mandato por uma catástrofe: assumiu o comando da GE apenas quatro dias antes do nefasto 11 de setembro de 2001, data do ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, que afetou vários dos negócios da GE, levando a uma queda de 20% no valor de suas ações — e durante seus 16 anos no comando da empresa ele não conseguiu reverter seu declínio.

No caso da Disney, a pandemia também apresentou desafios inéditos, como o fechamento dos parques, responsáveis por boa parte da receita do grupo, e a acentuada queda de audiência para os filmes lançados nos cinemas.

Curiosamente, sob o comando de Chapek, a Disney não respondeu mal a esses obstáculos (pelo menos do ponto de vista financeiro). Uma política de aumento de arrecadação nos parques levou a uma recuperação mais rápida do que se previa; e o esvaziamento dos cinemas impulsionou outro braço da Disney, o streaming, que sob sua gestão ultrapassou a Netflix em número de assinantes.

Ter se saído relativamente bem dessa situação foi uma das causas para a confirmação de Chapek para um novo mandato como executivo-chefe, em junho passado. As dúvidas sobre ele, no entanto, nunca se dissiparam, graças aos outros problemas que a Disney enfrentava — vários criados pelo próprio Chapek. Eis os principais:

Bob Chapek, ex-CEO da Disney
Bob Chapek, ex-CEO da Disney: várias brigas compradas em menos de três anos no cargo

 

 

#1. Chapek irritou os “criativos”. Numa empresa que vive basicamente de criar sonhos, Chapek alijou os diretores responsáveis por conteúdo de algumas decisões importantes. “Enquanto Iger é mais participativo, mais empático, e entendia a parte criativa do negócio, Chapek era mais voltado a finanças”, diz Afonso Braga, professor de estratégias de marketing da pós-graduação do Insper.

Em essência, os executivos do setor criativo se sentiram menosprezados quando Chapek tirou de suas mãos o controle dos orçamentos. Uma querela adicional foi ele ter decidido lançar filmes por streaming simultaneamente ao lançamento nos cinemas. Era uma medida excepcional dados os obstáculos para ir ao cinema durante a pandemia, mas rompeu um preceito considerado sagrado, a janela de tempo em que um filme só está disponível nos cinemas.

Esta última decisão rendeu a Chapek uma disputa legal com a atriz Scarlet Johansson, cujo contrato estipulava um pagamento de bônus atrelado à bilheteria do filme Viúva Negra nos cinemas. A Disney lucrou 60 milhões de dólares com o aluguel via streaming, mas essa conta não entrou nos cálculos do pagamento de Johansson, e fontes disseram ao Wall Street Journal que ela pode ter perdido 50 milhões de dólares nessa brincadeira. As duas partes chegaram a um acordo no final de setembro, cujo valor não foi divulgado.

Brigar com os criativos — ainda mais quando o caso chega ao ponto de um entrevero público com Scarlet Johansson — nunca é boa ideia para empresa nenhuma, e para a Disney menos ainda.

Não à toa, uma das primeiras iniciativas de Bob Iger foi demitir Kareem Daniel, um protegido de Chapek que ele havia nomeado para uma nova divisão, de distribuição de mídia e entretenimento. Daniel havia ficado com a responsabilidade pelos lucros e perdas, antes atribuída aos executivos dos estúdios. A divisão de Daniel — um executivo com pouca experiência na ampla área da qual tinha de cuidar — contribuiu para as perdas de 1,5 bilhão de dólares do streaming. Ao demiti-lo, Iger anunciou que uma nova estrutura da companhia iria “racionalizar custos e colocar mais poder de decisão de volta nas mãos das equipes criativas”.

 

#2. Ele comprou briga com o governo da Flórida. Em março do ano passado, a Disney se envolveu numa acirrada disputa com o governo do republicano Ron DeSantis por causa de uma lei que proíbe a discussão de orientação sexual ou identidade de gênero em salas de aula até o terceiro ano. A lei, apelidada de “não diga gay”, foi alvo de protestos de liberais. Chapek a princípio havia tentado se manter neutro, mas essa atitude revoltou grande parte dos empregados da Disney — uma empresa que sempre apoiou a diversidade. Quando ele finalmente se manifestou contra a lei, meteu os pés pelas mãos e foi duramente rechaçado por DeSantis.

Ativistas da direita conservadora passaram a qualificar a empresa como “woke Disney” — “woke”, forma pretérita do verbo wake, acordar, era também uma gíria do movimento negro para pessoas que “acordavam” para o fato de existir discriminação racial, e entrou nos últimos anos no vocabulário americano com o sentido de tornar-se alerta para temas diversos de injustiça social.

Não foi apenas uma briga de palavras. Em abril de 2022, DeSantis revogou a designação da Disney como um distrito especial, o que lhe permitia administrar o próprio território e aplicar nele boa parte dos impostos arrecadados. O privilégio existia desde 1967; sem ele, a vida fica mais difícil para a empresa: ela teria de passar, por exemplo, pela burocracia de aprovações municipais a cada vez que quisesse instalar um novo brinquedo ou construir uma nova estrutura.

Nos bastidores, a Disney tem tentado reverter a decisão ou chegar a um compromisso com o governo da Flórida, algo que pode ser facilitado pela volta de Iger.

De certa forma, Chapek foi vítima de uma situação insolúvel, em que tinha de escolher entre uma revolta interna ou uma briga externa. Mas uma decisão de sua gestão lhe tirou os meios de reagir com mais diplomacia. “Há uns dois anos, a Disney mudou o seu lema de qualidade”, diz o brasileiro Claudemir Oliveira, um ex-líder da estratégia de treinamentos da Disney. “O lema era ‘segurança, cortesia, show e eficiência’, as diretrizes que deviam guiar qualquer decisão. Aí acrescentaram ‘inclusão’, na gestão de Chapek”, diz Claudemir.

“Assim que fizeram isso, eu gravei um vídeo dizendo que a Disney não sabia onde estava se metendo”, lembra. “A empresa sempre foi inclusiva, é uma das suas características básicas; mas, quando põe isso por escrito, abre um flanco.” De fato, com base nesse estatuto os funcionários tiveram um forte argumento para cobrar um posicionamento mais contundente de Chapek.

 

#3. Ele desagradou aos consumidores. Em parte, com razão. “Imagine a empresa ter um parque fechado durante um ano”, afirma Claudemir. “Eles já são difíceis de dar lucro quando estão abertos, o que dirá sem funcionar.” A solução foi aumentar os preços. Chapek fez isso com tanto denodo que ganhou o apelido de Bob Paychek (contracheque).

Sua estratégia não foi de um aumento puro e simples. Além de comandar uma alta nos ingressos acima da inflação, Chapek passou a cobrar por serviços que antes eram gratuitos, como algumas viagens de trenzinho para os parques e um passe que dava direito aos clientes de escolher uma ou duas atrações nas quais entrariam numa fila mais rápida.

No site de debates Reddit, um dos tópicos era sobre a demora nas filas para atrações na Hollywood Studios da Disney — ela teria passado de pouco menos de duas horas para quatro horas e meia em média, para quem não comprava o cartão que dá direito à Lightning Lane, a fila mais rápida. Isso demonstra um problema de implementação na medida, pois a espera nas filas normais não deveria se alterar muito. Aparentemente, a Disney tem vendido mais passes do que é capaz de gerenciar.

Outro serviço que a Disney implementou foi um organizador de visitas para os clientes, o Genie+, com o qual controla as frequências nos parques porque as pessoas precisam marcar os dias e horas das visitas. “Como consumidor, eu não gosto”, avalia Claudemir. “Mas do ponto de vista do negócio é uma senhora sacada. Um executivo da Disney hoje sabe quanta gente vai ao Epcot, ao Magic Kingdom etc. a cada dia. Se quiser transferir mais gente do Magic Kingdom para o Epcot Center, pode.”

Se já era antipático para seus executivos criativos e lhe faltava carisma para inspirar os funcionários, passou a ser também antipático para o consumidor. Sua falta de tato contribuiu para isso. No meio do ano passado, Chapek disse a investidores que os lucros dos parques teriam sido maiores se não fosse pela “frequência de uma plateia desfavorável” na Disney World. A declaração não foi bem recebida pelos donos de passes anuais para o parque, e logo surgiram na internet artigos como camisetas, decalques e canecas com a inscrição “Desfavorável” em caligrafia típica da Disney.

 

#4. Por fim, Chapek enfureceu os investidores. A gota d’água para o final de sua gestão ocorreu no dia 8 de novembro, com um desastroso anúncio de resultados para os analistas. No trimestre encerrado em outubro, a Disney reportou uma receita de 20,15 bilhões de dólares, 9% a mais do que no mesmo período do ano anterior. Não parece ruim, você pode pensar. Mas os investidores esperavam uma receita de 21,3 bilhões de dólares, amparados pelas projeções da própria Disney. O lucro de 162 milhões de dólares no período também foi considerado pífio — e é praticamente inédito a Disney não atingir os números previstos tanto na receita quanto nos lucros.

Para piorar a situação, Chapek foi totalmente inadequado na comunicação. Seu tom era de quem não estava nem um pouco preocupado com a situação. Menosprezou as perdas e enalteceu a capacidade da Disney de “produzir memórias que duram a vida inteira”. Chegou a comemorar o sucesso de uma “festa de Halloween do Mickey”, um evento de pouca expressão realizado na Disney World. Aparentemente, mais de um conselheiro já havia advertido Chapek de antemão para o tom inapropriadamente otimista de suas anotações para a conferência, mas ele não deu bola.

Como consequência, as ações da Disney despencaram 12% na manhã seguinte ao anúncio de resultados. Jim Cramer, o influente apresentador do programa Mad Money na cadeia de TV CNBC, que um mês antes era só elogios a Chapek e à Disney, afirmou que o executivo-chefe era “incapaz de dirigir uma companhia fantástica” e completou: “Precisamos de alguém novo na Disney”.

A essa altura, mais gente pensava assim. Uma boa parte dos executivos — e não apenas os “criativos” — estava irada. Do começo do ano até aquele novembro, as ações da Disney haviam perdido 41% de seu valor e um sensível pedaço de sua compensação é paga em opções de ações. Vários cogitaram pedir demissão caso Chapek mantivesse o cargo e a respeitada diretora financeira, Christine McCarthy, que ajudou a concretizar uma série de fusões na época de Iger e durante a pandemia conseguiu manter o fluxo de caixa da empresa, disse a pelo menos um membro do conselho de administração que havia perdido a confiança na capacidade de Chapek de liderar a Disney, de acordo com o jornal The New York Times.

 

Além de tudo isso, havia Iger

Para complicar a situação de Chapek, sabe-se agora, seu antecessor passou meses solapando sua liderança. Depois de anos preparando Chapek, Bob Iger deixou seu posto no início de 2020, mas continuou como presidente do conselho, acompanhando de perto o pupilo e chancelando suas decisões. Só no final de 2021 Iger se desligou da companhia.

No entanto, foi um desligamento mais oficial do que real. De acordo com uma reportagem do Wall Street Journal, Iger manteve seu escritório na sede da Disney, em Burbank, na Califórnia. E continuou mantendo encontros com a equipe de Chapek — sem o convidar.

Também chegaram ao ouvido de Chapek reclamações que Iger fez sobre ele, dizendo considerá-lo um líder medíocre, que não estava à altura do desafio de comandar a Disney. A reação de Chapek foi afastar-se de Iger. No auge da crise com o governo da Flórida, ele nem sequer o procurou para pedir uma opinião. Isso irritou ainda mais seu antecessor. A cisão entre os dois escalava e Iger dizia temer que a Disney estivesse “perdendo sua alma”.

Entre as duas forças — de um lado, um executivo-chefe cambaleante, de outro um líder que orquestrou uma série bem-sucedida de aquisições (Lucasfilm, Pixar, Marvel…) e a estratégia de apostar no streaming com a Disney+ —, prevaleceu a segunda. Na falta de opção interna para substituir Chapek, Iger foi chamado de volta. “Se a empresa não tem alguém suficientemente inspirador, faz sentido chamar o líder antigo, sim”, afirma Braga, do Insper.

Por qualquer ângulo que se observe, Iger errou — e errou feio — na condução de seu processo sucessório. E acabou sendo premiado por esse erro.

 


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