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Governança e gestão: uma visão sobre as empresas familiares brasileiras

O sucesso de qualquer organização depende desses dois pilares, que estão intimamente ligados

O sucesso de qualquer organização depende desses dois pilares, que estão intimamente ligados

 

Renan Toenjes*

 

Às vezes é difícil definir conceitos abstratos como governança e gestão. Muitas pessoas têm visões diferentes sobre esses temas e isso impacta no desenho e na sua utilização em uma organização. Sem entrar em muitos detalhes, vou usar neste artigo duas definições simples.

Governança é o processo de tomada de decisão de uma organização que busca equilibrar os diferentes interesses envolvidos. Muitas vezes, confunde-se governança com estruturas como Conselhos de Administração, Conselhos de Acionistas ou comitês destes conselhos. Entende-se governança como algo que envolve grandes decisores e que não impacta as vidas da maioria dos colaboradores. Porém, governança abrange desde como se definem as metas anuais de uma empresa, incluindo as taxas de crescimento e retorno, até a exposição a diferentes tipos de risco ou o limite de desconto que o vendedor pode dar em um produto na loja ou a alçada de um colaborador da área de compras em relação ao valor ou aos fornecedores dos quais ele pode comprar. Ou seja, governança inclui não somente estruturas como comitês dentro das organizações ou conselhos, como também políticas e processos para tomar boas decisões. No final, mesmo empresas familiares com decisões focadas em um fundador possuem governança, pois as decisões estão sendo tomadas de alguma forma. Uma vez que governança é o processo de tomada de decisões, ela existe ainda que não esteja bem estruturada.

Gestão diz respeito a como colocar essas decisões em prática e como prover informações para a tomada de decisão. Ou seja, governança e gestão estão intimamente ligadas para o sucesso de qualquer organização. O processo de gestão inclui desde a rotina dentro de empresas até melhorias incrementais (Kaizen), sistemas de TI bem estruturados, processos bem mapeados e executados e gerenciamento de projetos bem-feitos, além de inovações disruptivas (Kaikaku).

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Venho trabalhando há quatro anos com famílias empresárias e já atendi mais de 30 famílias, seja na área de governança, seja em análises financeiras, negociações jurídicas, treinamentos para herdeiros, eventos de integração familiar e desenhos de protocolos de família, documento que descreve regras para algumas questões da família. A principal diferença entre empresas familiares e empresas de capital pulverizado é o tipo de interesse de seus acionistas e a existência de necessidades da família em si.

O acionista de uma empresa de capital pulverizado tem, em linhas gerais, o interesse em maximizar o retorno ao mesmo tempo que minimiza seu risco. Ele decide quanto de risco a que se dispõe a se expor dado o retorno proporcionado por aquela companhia, maximizando sua utilidade (seu grau de satisfação, como definido em economia), considerando o seu perfil como investidor. Por exemplo, um acionista pode preferir investir em uma startup que ofereça a possibilidade de maior retorno com maior risco, enquanto outro pode querer investir em uma empresa de geração elétrica com contratos fixos de longo prazo e preços pré-determinados, ou seja, com retorno estimado menor, porém mais estável, trazendo menos risco. Claro, mesmo acionistas institucionais ou individuais de empresas de capital pulverizado podem ter determinadas políticas que não são completamente financeiras, como não investir em empresas petrolíferas por aumentar o aquecimento global ou direcionar seu capital para empresas que têm ações de impacto social. Porém, em geral, os aspectos financeiros são os principais fatores que pesam na decisão desses acionistas ao definir seu portfólio.

 

Muito além do financeiro

Famílias empresárias têm acionistas com perfil variado, com fatores de decisão que, muitas vezes, vão além dos financeiros. Os fundadores, com frequência, têm relações com a empresa que criaram como se fosse um de seus filhos, ou seja, mesmo sendo uma operação que não dê retorno ou seja deficitária, eles querem mantê-la. Esse amor, muitas vezes, passa para as gerações seguintes, ainda que não no mesmo nível. Exemplo muito ilustrativo disso são grupos empresariais que possuem operações de jornal. Mesmo digitalizados, são raras as operações desse tipo que realmente dão retorno para a família. É comum utilizarem vastos recursos de outras operações para manter essas empresas. O motivo disso pode ser ideológico, com vistas a manter um posicionamento neste atribulado ambiente político do país, ou apenas por ver a mídia independente como um defensor da democracia do país.

Outro fator comum considerado em empresas familiares é a sucessão. É comum que a sucessão de um familiar na direção das empresas seja feita por outro familiar, mesmo que este não seja o mais capacitado para o cargo em comparação com profissionais externos. Isso ocorre porque muitas famílias entendem que ter um de seus membros gerindo a companhia levará a pessoa a defender melhor os interesses familiares. Teoricamente, seria um jeito de diminuir o clássico problema da agência, no qual o agente (gestor) pode não agir de acordo com as vontades de um principal (acionistas). Um exemplo recente deste problema em uma empresa não familiar é a fraude praticada pelos diretores da Americanas para valorizar a companhia e aumentar seu bônus, ainda que isso impactasse negativamente o patrimônio dos acionistas no futuro.

Já vi também alguns casos de familiar que quer apenas ter uma rotina e não deseja parar de trabalhar, mesmo que a operação não dê retorno. No caso mais extremo, uma família que possui muitos patrimônios imobiliários não desenvolvidos nem alugados poderia vender esses ativos para investir em títulos públicos, gerando um retorno mais de 10 vezes maior que o da operação da companhia, considerando 100% da Selic atual. Mesmo assim, os familiares não queriam vender os ativos.

Acionistas familiares, de certa forma, são mais complexos, e a necessidade de equilibrar seus interesses com o retorno financeiro é uma difícil tarefa para um gestor, uma consultoria ou advogados das empresas de um grupo familiar. Outros interesses comuns também estão envolvidos, como a necessidade de representação de diferentes ramos da família e seus interesses, relacionamentos conflituosos entre pessoas, perfis diferentes de gerações, o desenvolvimento de sucessores e a necessidade de dividendos para pagar as despesas do dia a dia (em empresas de capital aberto, o pequeno acionista ou investidor institucional pode, em teoria, vender apenas parte de suas ações para ter alguma liquidez. Na prática, ações que distribuem dividendos têm algum prêmio no seu valor).

Porém, é importante lembrar as famílias da importância de manter crescimento e retornos para que elas sejam bem-sucedidas como empresárias, pois é o dinheiro que sustenta toda a estrutura. Claro, mesmo que seja preciso equilibrar com outros interesses, levando em conta o risco que a família quer assumir e sua necessidade de liquidez. Robert S. Kaplan e David Norton reforçavam muito isso em sua teoria sobre o Balanced Scorecard, afirmando que até mesmo organizações sem fins lucrativos devem mirar objetivos financeiros para manter suas operações. É por isso que, no mapa estratégico desenhado por eles, esses objetivos se encontram no topo, como se observa no modelo abaixo:

 

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Toda a complexidade desse sistema familiar pode ser parcialmente representada no modelo dos Três Círculos elaborado pelo acadêmico John Davis e pelo orientador de seu estudo, Roberto Tagiuri, onde os diferentes grupos de interesses são ilustrados de forma simples:

 

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Realidade brasileira

Até aqui, falei apenas de famílias empresárias e de seu grupo empresarial de forma genérica, com alguns exemplos brasileiros, de modo a ilustrar suas características únicas. Agora, como esses aspectos se adaptam ao Brasil? Há dois aspectos da economia brasileira que vejo impactar muito as famílias em nosso país.

O primeiro é a conhecida instabilidade do nosso sistema econômico, que leva comumente a altas taxas de juros ou de inflação. Com isso, a grande maioria de nossas famílias rejeita a ideia de utilizar dívidas para crescer, devido ao risco de as adquirir e a taxa de juros variar demais. Muitas delas têm dívidas líquidas negativas, ou seja, têm mais caixa do que dívida e só contraem dívidas em emergências. Talvez essas famílias tenham sido as que sobreviveram ao longo do tempo, pois não assumiram risco e puderam se sustentar durante a instabilidade dos anos 1980 e 1990 e, mais recentemente, no final dos anos 2010 e início dos 2020. Além disso, praticamente todas têm outros ativos menos arriscados, fora sua empresa familiar principal, ainda que esta represente o grosso do patrimônio. Esses ativos menos arriscados podem ser ativos líquidos investidos em renda fixa, ações e quotas em outras empresas ou ativos no exterior.

Porém, em quase 100% dos casos, estamos falando de imóveis próprios alugados para terceiros. Mesmo em situações de instabilidade econômica, é comum que sua taxa de ocupação não caia muito e que os aluguéis garantam um fluxo de caixa estável. Além disso, é normal que os imóveis valorizem de acordo com a inflação. Ou seja, apesar de o grosso do patrimônio ainda ser normalmente a empresa principal da família que, em geral, é pouco endividada, as famílias brasileiras diminuem ainda mais o risco do seu portfólio com imóveis. A parte da dívida é muito diferente de empresas de capital aberto e de famílias de países mais estáveis economicamente, pois, na teoria financeira, se você tiver um projeto para investir com retorno esperado maior que o custo de capital da dívida, você deve pegar mais dívida para realizar o projeto, pois isso faria o valor da empresa crescer e o retorno do acionista aumentar, como se vê na imagem abaixo. Caso o projeto tenha risco elevado, acionistas muito avessos a ele poderiam vender suas participações na empresa.

 

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Não se endividar mostra a forte aversão a risco das famílias brasileiras, que esperam uma taxa mínima de retorno bastante alta para pegar qualquer capital de terceiros para investir. Claro, ter uma Selic alta, ou seja, o ativo livre de risco com retorno alto, aumenta o custo de oportunidade das famílias, que podem preferir investir em títulos do governo, que, em teoria, seria o ativo com menor risco de um país. É o ativo com menor risco porque, se um governo der default em sua dívida, a economia do país como um todo entra em forte recessão.

Outro aspecto do Brasil que impacta fortemente nossas famílias empresárias é a alta regulação do mercado e a complexidade tributária. Devido a isso e a outros fatores, temos um péssimo ambiente para negócios. Para ilustrar, estamos na 124ª posição no ranking do Banco Mundial de facilidade de fazer negócios, em um estudo que abrange 190 países. Ao longo dos anos que trabalhei com nossas famílias, percebi e li algumas pesquisas sobre o quanto as empresas do nosso país não utilizam técnicas básicas de administração, resultando em menor eficiência da nossa economia como um todo. Afinal, de acordo com o IBGE, 90% das nossas empresas são familiares, que representam 65% do PIB e empregam 75% dos trabalhadores no país.

A menor competição em razão de um ambiente pouco favorável aos negócios leva à menor necessidade de utilizar boas técnicas de gestão, ou seja, nossas empresas sobrevivem mesmo sendo pouco eficientes. E isso não se limita a empresas familiares, porém é mais aparente em empresas de capital fechado deste tipo por falta de fiscalização de acionistas qualificados e executivos com competências adequadas. É comum ver contabilidade que não fornece boas informações para a tomada de decisão, com falta de transparência sobre as margens e os retornos da empresa, além de balanços patrimoniais pouco adequados. Não há contabilidades gerenciais avançadas que possam apoiar o processo de tomada de decisão, ou seja, a governança como definida anteriormente. A contabilidade oficial foca em planejamento tributário que visa pagar menos impostos, em vez de apoiar decisões. Tal planejamento é um dos principais diferenciais de uma empresa no Brasil dada a nossa complexidade tributária e por isso recebe tanto foco ao invés de focar em apoiar boas decisões e uma melhor gestão. Poucos indicadores operacionais são monitorados, além de ter gerenciamento por diretrizes pouco desenvolvido, sem um desdobramento das metas estratégicas para táticas e operacionais, o que leva a uma forte dependência da experiência de gestores específicos com boa intuição para o bom desempenho da companhia, o que dificulta sucessões. Muitas vezes, este gestor é o próprio fundador. Riscos tributários e trabalhistas são constantes, aumentando o risco das empresas, ou seja, reforçando a aversão a risco das famílias, o que diminui a produtividade da economia como um todo. Projetos que poderiam ser realizados deixam de ser feitos porque as famílias não querem contrair dívidas e querem manter uma boa reserva de dinheiro para imprevistos.

Em suma, as características macroeconômicas e políticas do país têm forte impacto em nossas famílias empresárias e em suas empresas, no que se refere a como elas definem seus portfólios, gerenciam risco e geram retorno. Afinal, essas famílias têm o desafio de equilibrar todos os aspectos descritos anteriormente para terem sucesso, considerando o ambiente e a cultura do país. Não é à toa que a grande maioria das empresas familiares não passa da terceira geração. A expressão “Pai rico, filho nobre, neto pobre” existe em várias culturas, pois, de fato, não é fácil manter um sistema familiar no qual o patrimônio da família se mantenha em constante crescimento. Sistemas de governança e de gestão bem desenvolvidos são essenciais para isso. Não dá para encarar esse desafio com estruturas isoladas e pouco efetivas. Somente com políticas e processos eficazes e eficientes uma família empresária poderá se tornar exceção à regra das três gerações.

 


Renan Toenjes

*Renan Toenjes é consultor de famílias empresárias formado em Administração e Economia pelo Insper, em Ciências Sociais com especialização em Ciência Política pela FFLCH-USP e em Contabilidade pela Unicsul.

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