O Núcleo de Moradia do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper passa a se chamar Habitação & Real Estate e amplia seus objetivos a fim de superar o antagonismo de visões que atrasa a solução do problema de quem quer um teto para viver
Leandro Steiw
Desde o final de 2022, há uma reestruturação em curso no Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Sob a coordenação do cientista social e arquiteto José Police Neto e do também arquiteto Washington Fajardo, o até então chamado Núcleo de Moradia passou a se denominar Núcleo de Habitação & Real Estate, com o objetivo de superar o antagonismo persistente de dois agentes do setor que se mantêm segregados: um que produz unidades para pessoas de baixa renda (habitação) e outro que constrói todo o resto (real estate). A escolha da expressão em inglês, traduzível como mercado imobiliário, marca posição ante essa falsa dicotomia em um país cujo déficit habitacional é de cerca de 6 milhões de moradias, segundo a Fundação João Pinheiro. “O ineditismo na proposta do núcleo — uma escala nacional em termos educacionais de tratar a habitação junto com o real estate — permite mostrar que existe até uma condição global desse aspecto da produção da moradia”, afirma Fajardo. Faz sentido: a sociedade, afinal de contas, é uma só.
A reconfiguração do núcleo tem como pano de fundo dois marcos fundamentais do planejamento urbano no país: o Estatuto da Cidade, criado em 2001, e outro mais antigo, a Carta do Embu, de 1976. Ambos se notabilizam como esforços pioneiros na produção da função social da cidade e da propriedade. “Oportunizar o acesso à moradia digna ainda é um grande desafio nas cidades brasileiras, e um pouco da nossa reestruturação se dá porque pensamos em ampliar as investigações que fazemos, em especial, das experiências exitosas realizadas Brasil afora”, diz Police.
A estratégia de fortalecimento do núcleo passa por investigação e pesquisa aplicada. A segunda linha de ação é por meio de debates e seminários capazes de estimular “provocações sobre o tema”, como esclarecem os coordenadores.
De igual importância, outra frente do núcleo será a de formação — área que é, claro, a matriz do Insper —, ancorada em cursos marcados por uma grande diversidade de enfoques, expressa tanto na forma das abordagens e na dinâmica quanto no tempo de duração. “Queremos beber dessa fonte poderosa que nasce com pesquisa e investigação, que reflete com provocações e debates em cima dela e que se consolida na reprodução do conhecimento e, a partir disso, dá escala para aquilo que produzimos”, acentua Police. Por enquanto, estão programados três cursos para 2023, com o primeiro devendo ser lançado no fim de abril.
A dupla de coordenadores destaca que o núcleo se estrutura em um dos pontos fortes do Laboratório: a prática executiva para realizar transformações. “Ninguém é formado só na teoria”, argumenta Police. “A teoria é fundamental, pois apresenta os princípios e os propósitos, mas se não houver prática não há nenhuma condição de fazer de novo aquilo que nos ensinaram. Não é só na leitura e na reflexão histórica que se consegue realizar as mudanças. É na prática do dia a dia, é sendo testado, é sendo inquirido, é vivendo no atrito.”
A experiência brasileira é de um “sonho intenso” de cidade, como define Fajardo, e está muito bem expresso, ressalta ele, no ciclo da redemocratização do país, iniciado ainda nos anos 1980. “A redemocratização trouxe uma Constituição com especial apreço ao tema urbano e, desde então, a sociedade brasileira vem evoluindo em termos de pactos regulatórios, como o Estatuto da Cidade, e nas experiências das grandes metrópoles e das capitais”, analisa o arquiteto.
Entretanto, reconhece a dupla de coordenadores do núcleo, o tema habitacional ainda é mal alocado nesse desejo intenso de organização das cidades brasileiras. “Isso aparece especialmente nessa relação quase de monopólio do Estado sobre a responsabilidade no provimento da moradia acessível”, diz Fajardo. “Esse processo de relações com a produção habitacional é feito pelo mercado em bases que são, infelizmente, muito antiquadas. Repetem modelos que o Brasil pratica desde os anos 1930, no qual o Estado brasileiro é um financiador, é quem subsidia a produção privada. Ou seja, temos o avanço no ponto de vista de arcabouço jurídico urbanístico, temos experimentos de muita qualidade, porém a formulação sobre políticas habitacionais ainda é abordada sem avaliar a capacidade sistêmica do mercado de oferecer também contribuição para o assunto.”
Isso se refletiria até mesmo na maneira como se organiza a informação sobre moradia; assim, o próprio ensino da história da moradia é constantemente uma narrativa marcada pela perspectiva do Estado. “Obviamente, o Estado é o formulador da política”, admite Fajardo. “Contudo, há um descompasso entre, por exemplo, acessar dados e evidências sobre a produção imobiliária residencial e o seu impacto em políticas de acesso à moradia. Ou até algo que passa muito pela preocupação das instituições privadas de construção imobiliária em relação ao contexto macroeconômico, incremento de custo de construção, o impacto de ajuste fiscal nos juros e, consequentemente, o custo do capital para a produção imobiliária.”
O resultado é que a formulação e o desenho de políticas habitacionais dão pouca atenção à formação dos preços e ao custo da alocação do capital na produção da moradia, em descompasso com preocupações, informações e discursos considerados no setor privado voltado à produção de moradia não inclusiva, guiado pelas regras do mercado. “Por isso, é fundamental que possamos ter uma mirada mais holística e mais integrada, em primeiro lugar justamente para essa base de informações”, defende Fajardo. “Nesse sentido, é bastante preocupante imaginar que uma sociedade complexa como a nossa, com tantas desigualdades, ainda possa aceitar tentativa e erro na área habitacional. Entre o início e a entrega de um produto da área da construção tem, em média, cinco anos. Ora, esse período já é maior do que o de uma administração municipal. Não dá para errar, ou, pelo menos, temos que reduzir significativamente a possibilidade de erro e fiasco de políticas públicas, incluindo a oferta de subsídios para o setor privado, que acaba sendo mal proporcionada.”
O núcleo se coloca, portanto, como um espaço aberto de confluência da academia com políticas públicas e o setor privado do campo habitacional — algo da maior urgência, no ponto de vista dos seus coordenadores.
Reestruturado, o Núcleo Habitação & Real Estate quer suprir a lacuna existente no setor no que se refere à desatenção para a organização da informação, do pensamento, da formulação e da prática pedagógica. “Queremos ocupar esse vazio e oferecer, em contribuição à sociedade brasileira, uma capacidade de desenvolvimento harmonioso, inclusivo e que não repita erros do passado. Essa, aliás, é também a missão do Insper”, esclarece Fajardo.
Police ressalta que as últimas edições do Fórum Social Mundial e do Fórum Econômico Mundial apontaram a fragmentação de um espaço que era para estar compactado. “Quanto mais se compacta a cidade, mais ela está fragmentada”, sustenta. “E, quando falamos desse fenômeno que é viver em cidade, um dos desafios que impomos ao núcleo é a redução dessa fragmentação que está presente na maneira com que os diversos atores se articulam. De um lado, existe a população que não tem casa; do outro, o empreendedor que vai produzir essa unidade habitacional. Se os dois estão dentro da mesma solução, porque um é a demanda e outro é a oferta, por que estariam em lados opostos na disputa de algo em que poderiam estar aliados?”
Cidade é um território “de disputa e atrito”, comenta Police. O problema é saber como produzir energia positiva desse atrito, inevitável em um arranjo urbano no qual 85% da população vive em até 7% da área do planeta. “Acreditamos que o fenômeno da conjugação dos verbos ‘viver’ e ‘morar’ em cidade pode ser a grande senha do sucesso, tecendo novas redes e, portanto, reduzindo as fragmentações e gerando uma cidade que promova equidade”, afirma o coordenador do núcleo.
O Laboratório nasceu para trabalhar com questões dessa natureza e, ouvindo as populações das comunidades mais vulneráveis, empenha-se em aproveitar a experiência delas para oferecer às cidades brasileiras, tão disfuncionais e marcadas pela fragmentação, soluções que tornem realidade uma vida mais digna para todos os cidadãos. O Núcleo Habitação & Real Estate, em seu novo desenho, é mais uma etapa nessa direção. “Não tem vento bom para uma nau que não tem destino”, sublinha Police. “A sensação que tenho é que, hoje, há um vento bom batendo à nossa porta. Observando certo alinhamento entre os Fóruns Social e Econômico, algo vem aproximando a sociedade que parecia disputar algo que não se disputa.”
Por seu turno, Fajardo avalia que a brutal desigualdade das urbes brasileiras, com a intensa segregação socioespacial, afasta a ideia de cidade como lugar de polifonia — e, portanto, o lugar da ideia original de política, pelo contato entre diferentes ideais e pontos de vista. “As nossas visões sobre o nosso futuro comum também são segregadas, segmentadas”, acredita. “Existe uma visão que tem origem nos condomínios, a ‘condominialização’ da sociedade brasileira, algo que preocupa muito. E, por outro lado, a visão das periferias; um outro fenômeno, que é a intensa ‘periferização’ das cidades brasileiras. Isso tem um rebatimento político.”
Na possibilidade de deslocamento dessa intensidade de polarização, o tema da habitação aparece de modo contundente, sobretudo se forem considerados os investimentos recentes. “Bilhões de dólares não são uma quantia de que se disponha com muita facilidade, e nós tivemos um investimento expressivo nesse setor”, afirma Fajardo. “Entretanto, isso ocorreu sem alterar déficit, sem alterar o perfil de famílias que comprometem mais de 30% da renda, sem alterar significativamente a precariedade habitacional. Então, esses indicadores continuam muito semelhantes após um investimento muito expressivo.”
Police e Fajardo concordam: o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper tinha certa urgência de oferecer ferramentas e condições para que a própria sociedade pudesse fazer o debate urbano. Uma das iniciativas fundamentais foi a aproximação com lideranças de movimentos de moradia — sem a chamada “educação formal” — para desenvolver os seus pensamentos, com o apoio do ambiente acadêmico, e combinar esses princípios democráticos sobre a cidade. Isso significa participação ativa na proposição de ideias.
“Uma característica que o Laboratório sempre teve é a sua vocação social muito clara”, lembra Police. O programa de bolsas de estudo contribui para inclusão de integrantes das comunidades mais vulneráveis no ambiente acadêmico. “As bolsas trazem para dentro o conhecimento e abrem a possibilidade para aqueles que, notadamente, não teriam as condições financeiras de estar no Insper”, diz o coordenador. “Elas contemplam também os gestores públicos, que em sua maioria não têm auxílio dos municípios ou estados em sua formação, pesquisas e desenvolvimento intelectual e profissional — só que lá na frente serão responsáveis ou ajudarão a escrever as políticas públicas do país”
Ao mesmo tempo, o Núcleo Habitação & Real Estate não deixará de se dedicar à oferta de cursos, eventos e estudos imobiliários, algo ainda restrito no Brasil, com ênfase na relação entre economia imobiliária e economia urbana. “Não queremos demonizar ninguém”, pontua Police. “Muito menos fragmentar e isolar”, conclui Fajardo.