Para Paulo Amaral, professor da trilha de Bioengenharia e pesquisador nas áreas de genética molecular e bioquímica no Insper, a premiação consagra pesquisa que já salvou milhões de vidas
Tiago Cordeiro
Filha de um açougueiro, nascida em Szolnok, cidade da Hungria atualmente com 71 mil habitantes, a bioquímica Katalin Karikó viveu do lado comunista da Cortina de Ferro até que, em 1985, o governo local cortou as verbas do laboratório onde ela trabalhava. Mudou-se então com o marido e a filha para os Estados Unidos.
Na nova pátria, realizou pós-doutorado na Universidade Temple, na Filadélfia, e, após percalços, se tornou professora-adjunta na Universidade da Pensilvânia. Já sendo pioneira em pesquisas sobre RNAs terapêuticos, parecia estar no lugar certo, na hora certa: uma série de pesquisas, a partir do final dos anos 80, vinha apontando para a possibilidade de alterar o “software” das células, de forma a ensinar o corpo a criar proteínas capazes de levar à produção de anticorpos, por exemplo, com potencial para prevenir ou tratar doenças.
Acontece que os trabalhos esbarraram em um problema que parecia insolúvel. Para induzir o corpo a alterar seu processo produtivo, seria preciso inserir nas células moléculas de RNA mensageiro (mRNAs) criadas em laboratório. Afinal, são elas que recebem as instruções contidas nos genes e se locomovem dentro das células até os ribossomos, que fazem a síntese das proteínas. A aceitação de RNAs mensageiros sintéticos por células não estava acontecendo. Ele era rejeitado pelo sistema imunológico e rapidamente destruído.
Em 1995, Karikó estava sozinha (o marido havia voltado à Europa para renovar o visto e precisaria ficar seis meses fora antes de retornar aos Estados Unidos). Havia descoberto um câncer. E tinha sido rebaixada de seu posto na universidade, com redução também no salário, enquanto via o financiamento para suas pesquisas minguar.
Ela persistiu. Em 23 de agosto de 2005, finalmente, publicou o artigo “Suppression of RNA recognition by Toll-like receptors: the impact of nucleoside modification and the evolutionary origin of RNA”. Ele sintetizava sua pesquisa revolucionária, que contou, desde o final dos anos 1990, com o suporte e a colaboração do imunologista norte-americano Drew Weissman. Avanços importantes aconteceram na década subsequente pela dupla e diversos outros grupos de pesquisa, como o empacotamento de RNAs em vesículas de lipídeos para a introdução efetiva dos RNAs nas células.
Este ano, Karikó e Weissman foram agraciados com o Prêmio Nobel de Medicina graças às enormes implicações de seus trabalhos. Sem eles, não teria sido possível desenvolver as vacinas contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech e da Moderna. Centenas de outras pesquisas, baseadas na solução encontrada por eles e em outros avanços recentes, buscam utilizar o RNA mensageiro modificado para desenvolver, por exemplo, uma vacina eficaz para diversas outras doenças, inclusive diversos tipos de tumores.
O caminho que os pesquisadores encontraram foi alterar um dos nucleotídeos do RNA mensageiro artificial, com pequenas modificações químicas que existem em nossos RNAs naturalmente, de forma que ele fosse aceito pelo organismo e, finalmente, transformasse os ribossomos em fábricas de proteínas estratégicas para ameaças específicas à saúde. E tudo isso sem interferir no DNA humano.
“Essa é uma das história mais interessantes de um ganhador de Prêmio Nobel em todos os tempos”, avalia Paulo de Paiva Amaral, professor do Insper e pesquisador também na área de RNAs e o papel de suas modificações químicas. “Karikó teve que lutar contra tudo e contra todos para sustentar suas hipóteses e eventualmente levar às aplicações clínicas. É uma história de persistência, que comprova a relevância da pesquisa básica e indica o quanto o avanço científico pode ajudar a resolver problemas urgentes, quando necessário.”
Ao conseguir que o corpo humano não rejeite mais o RNA “editado”, o trabalho aumentou ainda mais o interesse e financiamento em pesquisas em genética molecular, especialmente com o uso de tecnologias de RNAs, que continuam avançando em um ritmo acelerado, lembra o professor, que é coautor de um livro premiado que resgata toda a trajetória dos trabalhos na área.
Trata-se de RNA, the Epicenter of Genetic Information, publicado em setembro de 2022 e que desde então conquistou três prêmios internacionais. “Estamos iniciando um trabalho para a tradução para o português e em uma segunda edição atualizada. O difícil é decidir quando parar de atualizar e enfim publicar, porque os acontecimentos e novas descobertas se sucedem quase diariamente”, afirma Amaral, cujo trabalho também rendeu a publicação, em parceria com outros 20 pesquisadores de renome, de um artigo na revista britânica Nature.
“O artigo na Nature é resultado de uma conferência que realizamos há um ano e que retrata o momento atual das pesquisas sobre o genoma humano. Existem quatro grandes frentes de pesquisas que abordamos nesse trabalho. Uma delas, aquela em que me especializei, trata dos genes não-codificadores de proteínas, que já foram apelidados de a matéria escura do genoma, mas têm emergido como moléculas cruciais para nosso desenvolvimento e implicadas em diversas doenças, e também já exploradas como alvos e agentes terapêuticos”, explica Amaral.
“Fazemos uma atualização necessária para o entendimento da importância dos RNAs e de regiões menos exploradas do genoma, de forma que os pesquisadores possam fazer descobertas novas e também buscarem aplicações médicas. Nunca tivemos tanta informação sobre a genética da nossa própria espécie, com ganhos recentes sobre o entendimento da diversidade que nos caracteriza.”