Vale indagar se haverá mais transparência nas transações para detectar manipulação, insider trading, lavagem de dinheiro e outros ilícitos que comprometem o regular funcionamento desse mercado
Isac Costa*
Muitos empreendedores da criptoeconomia têm dificuldade de explicar objetivamente quais são os benefícios da tokenização de ativos, isto é, da emissão de criptoativos que referenciam outros ativos.
As vias tradicionais de captação são custosas: é preciso recorrer a intermediários financeiros para encontrar compradores dos títulos emitidos, pagar taxas de registro ou depósito, alcançando um grupo restrito de investidores e, em alguns casos, é preciso fornecer informações aos reguladores. Por fim, há custos adicionais para poder arcar com os custos regulatórios (consultorias e escritórios de advocacia, por exemplo). Há, portanto, dificuldades na estrutura do próprio mercado. E, o que é pior, a liquidez dos mercados secundários é pífia, o que desestimula ainda mais a aquisição desses instrumentos financeiros.
Mesmo que você não saiba o que é blockchain, já deve ter ouvido falar que tokens são uma forma de captar recursos para financiar projetos. Algumas vantagens que costumam ser indicadas são: o baixo custo de sua emissão em termos tecnológicos, a possibilidade de alcançar investidores (especialmente de varejo) em todo o mundo sem restrição de valores máximos de aporte ou patrimônio mínimo declarado, a potencial liquidez em mercados secundários aquecidos pelo apetite por risco e volatilidade e a eventual desnecessidade de elaboração de documentos exigidos pela regulação financeira. Em síntese, nesse sistema financeiro “paralelo”, os custos de captação e negociação seriam muito menores e potencialmente imunes à interferência estatal.
Tendo em vista que um token é apenas um registro digital em uma rede descentralizada, qualquer ativo pode ser tokenizado, em teoria, o que abriria incontáveis possibilidades. Porém, o que pode dar errado? Por que se afirma que esse mercado não regulado é um “Velho Oeste” propício para a proliferação de pirâmides, manias e outras fraudes? Quão fundado é esse receio?
O “pecado original” de qualquer mercado é a assimetria de informação. O economista Georg Akerlof nos explicou que, se alguns sabem mais do que outros, a dinâmica das relações pode tornar um mercado inviável. Se não há formas de diferenciar projetos legítimos de fraudes, que vantagem aqueles têm sobre estas? Há um longo caminho entre essa simples constatação e o complexo e oneroso regime de informação imposto às companhias abertas e às ofertas públicas de valores mobiliários. Contudo, deixar a cargo dos investidores a coleta, a verificação e a utilização da informação para tomarem decisões pode ser uma ideia perigosa, apesar de seu apelo liberal (“faça sua própria pesquisa”, como dizem, ou “caveat emptor”, como diziam).
Vieses cognitivos, simplificações do processo decisório, medo de ficar de fora e outras vulnerabilidades são exploradas de forma cada vez mais intensa com o uso das redes sociais e de seus algoritmos. “Não pense demais”, “a sorte favorece os corajosos”, “conquiste sua liberdade financeira” e outros mantras são um chamado irresistível em tempos de inflação, desemprego e crises crônicas na economia e na sociedade.
Nesse contexto, atribuir o prefixo “cripto” a um projeto pode ser uma isca para atrair enxames sedentos de volatilidade, buscando obter, em poucos dias, ganhos que a renda fixa levaria anos para gerar.
Tanto o mercado de renda variável quanto o mercado de apostas dependem de previsões sobre o futuro. Certa vez, a CVM analisou um caso envolvendo uma empresa que prestava serviços de astrologia financeira, recomendando investimentos com base no “mapa astral de empresas”. O caso foi resolvido porque as recomendações não provinham de profissionais registrados. Sempre me pergunto qual teria sido o desfecho se os relatórios de análise cumprissem esse requisito. O que diferencia uma aposta “pura e simples” (ou baseada em astrologia) das apostas sugeridas pelos economistas ou analistas financeiros?
Quando você compra um ativo virtual (ou qualquer outro ativo) por impulso, sem pensar muito no que está fazendo, sua conduta não é muito diferente da de alguém que puxa a alavanca de um caça-níquel ou compra um bilhete de loteria. Muitos milionários ou bilionários acumuladores de criptoativos pouco têm a oferecer em termos de estratégias de investimento, pois seus números de bilhete premiado pouco valem para apostas futuras. Ao mesmo tempo, muitos “investidores” anseiam por “sinais” de entrada e saída, iludidos por gurus-predadores.
Assim, convido você a pensar em criptoativos para além dos ganhos (e perdas) potenciais das apostas, distanciando-os de fichas de um cassino digital. Para isso, precisamos pensar juntos sobre quais são os problemas concretamente solucionados por essa tecnologia, qual é o sentido dessa inovação financeira. Teremos mercados globais de ativos, sem que as ofertas e negociações fiquem circunscritas a uma única jurisdição? Será possível ter mais transparência nas transações para detectar manipulação, insider trading, lavagem de dinheiro e outros ilícitos que comprometem o regular funcionamento de mercado? E quanto à eficiência e aos custos dos processos de escrituração, registro, custódia e depósito de ativos e à prestação de garantias? Essa tecnologia será mesmo capaz de fomentar a liquidez de mercados secundários e reduzir os custos de negociação por meio da desintermediação? De onde virá o maior retorno potencial para o investidor por meio desses ativos virtuais em comparação aos instrumentos tradicionais?
Em tempos de opiniões fortes e especialistas sobre todos os assuntos, fazer tantas perguntas está meio fora de moda. Mas a inovação decorre da curiosidade, da vontade de enfrentar “por quê”, “como” e outras indagações. Quem sabe você, que me leu até aqui, não ajudará a elaborar as melhores respostas?
Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Insper. Doutorando (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.