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Uma distinção internacional para um brasileiro que escolheu ser bayesiano

O professor Hedibert Freitas Lopes conta o caminho que percorreu até ser eleito fellow de uma das principais sociedades de estatística do mundo

O professor Hedibert Freitas Lopes conta o caminho que percorreu até ser eleito fellow de uma das principais sociedades de estatística do mundo

 

Leandro Steiw

 

Qual é a probabilidade de alguém fazer seu primeiro relatório de iniciação cientifica sobre o modelo matemático de uma vacina e, décadas depois, receber o reconhecimento máximo entre seus pares em meio a pesquisas por medicamentos durante uma pandemia? Altíssima, se considerarmos a história do estatístico Hedibert Freitas Lopes, coordenador do núcleo de pesquisa de Ciência de Dados e Decisão e professor titular licenciado do Insper, atualmente lecionando na Universidade do Estado do Arizona (ASU), nos Estados Unidos.

Lopes foi o primeiro brasileiro eleito fellow da International Society of Bayesian Analysis (Isba), sociedade que reúne uma vertente da estatística mundial que ganhou preeminência nos últimos 40 anos. “É uma honraria de altíssimo nível para mim, altamente reconhecedora do meu trabalho, e fico muito envaidecido, porque existem outros brasileiros que poderiam ter sido eleitos também”, diz Lopes, que é graduado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O processo de fellowship na Isba começa quando um membro da sociedade recomenda outro para o título de fellow. Cartas de recomendação são então enviadas para um comitê de seleção, que decide quem merece a distinção. O processo é confidencial e escolhe seis novos fellows a cada dois anos. Os escolhidos não sabem que foram indicados por um colega, só se forem eleitos. Quem indica algum nome não vota no comitê para evitar conflito de interesses.

Títulos de fellow são uma demonstração de respeito a profissionais de alta categoria. “Acho que você ganha notoriedade”, afirma Lopes. “As pessoas já conhecem o nosso trabalho, por isso criamos mais um nível de conhecimento junto à sociedade, o que é bom para a divulgação da área de estatística bayesiana não só no mundo, mas em particular na América Latina e mais ainda no Brasil. Como todos, quando éramos mais jovens, olhávamos para os mais velhos como fonte de inspiração. Espero inspirar outros jovens brasileiros a seguir a carreira da estatística bayesiana.”

A semente vem do século 18, quando o matemático inglês Thomas Bayes (1701-1761) propôs uma equação que permitiria a atualização de uma probabilidade a partir da descoberta de novas evidências. A área destacou-se nos últimos 40 anos com o avanço da computação e sua capacidade de processamento de dados. “Essa linha de pensamento já se tornou uma competidora de alto nível no mundo da estatística, e há muita gente nos programas de mestrado e doutorado no Brasil e no mundo que percebe isso e tenta seguir”, diz Lopes.

Na esteira da eleição de fellow, ele imagina recrutar mais alunos de mestrado e doutorado, além de professores júniores, interessados na linha de pesquisa da ISBA. “Acho que é legal ter esse lado de mostrar que você participa da sociedade, que existem várias funções importantes. Serve de exemplo para os mais jovens, porque a carreira do cientista inclui promover a área dentro do país e entre as comunidades e os alunos”, afirma.

 

O rigor das matrizes

Lopes conta que aprecia matemática desde criança. “Gostava de português também, por incrível que pareça, mas a matemática foi dominando e no segundo grau eu tive um professor muito bom”, afirma. “Ele ensinava matrizes, que estão presentes em todos os campos da matemática, e todo mundo falava: ‘Esse cara é o pior professor, o mais rigoroso’. Só que eu tirei notas boas e gostei muito da matéria.”

Nascido em Mato Grosso do Sul, Lopes tinha 2 anos quando a família migrou para o Rio de Janeiro. “Venho de uma família humilde. Minha mãe não concluiu o segundo grau, e meu pai terminou a faculdade quando ele já tinha mais de 30 anos”, afirma. “Sempre vivemos no nível mais elementar. Não éramos miseráveis, mas classe baixa, nem média éramos. Eu conseguia estudar em escola pública, fiz o segundo grau numa escola técnica, mas não foi o suficiente para passar no vestibular da UFRJ.”

Na primeira oportunidade, em 1986, a aprovação veio na Universidade Santa Úrsula – particular, logo, paga. Enquanto trabalhava como digitador em um data center, frequentou um cursinho pré-vestibular antes da segunda tentativa. “Havia gabaritado a prova de matemática do vestibular daquele ano e, no cursinho, aprendi um monte de outras matérias que estavam deficientes e, enfim, passei para Matemática na UFRJ”, diz. Era um “garoto humilde e tímido (e alto), da favela da Cidade Alta” — como se descreveu em seu agradecimento nas redes sociais — que ingressava na universidade pública.

Foi no primeiro semestre que se deparou com uma disciplina chamada Introdução à Estatística, ministrada pelo professor Paulo Bravo. Naquela época, esse era o curso que todos os graduandos de matemática faziam logo na entrada. A escolha pela concentração era feita depois do ciclo básico de dois anos, no qual eram apresentados os diversos ramos da matemática (estatística e atuária, por exemplo). “O Paulo Bravo usava um exemplo interessante no qual se contava o número de táxis em Nova York selecionando-se uma pequena amostra do número de táxis que circulavam num determinado dia”, afirma. “Eu me perguntava o que era aquele negócio estranho de inferir algo usando uma amostra.”

Aquele negócio estranho era a Estatística. Lopes rememora que, nos idos de 1987 a 1990, seus quatro anos de faculdade, a maioria dos alunos da Matemática optava por Ciências Atuariais, área que rapidamente empregava os recém-formados. “Eu também fiquei tentado, porque você ganhava emprego em escritório logo depois da graduação, com um salário razoável para um menino pobre”, diz. “Mas quis fazer Estatística.”

Em seu agradecimento após a deferência na Isba, Lopes comentou a inspiração que recebeu da professora Ângela Rocha dos Santos e do professor Paulo Bravo para encontrar resiliência no estudo e na pesquisa em estatística. Aqui se explica a circularidade da história do início deste texto. Ângela orientou o primeiro projeto de iniciação científica de Lopes, intitulado “Um modelo matemático para o controle da potência da vacina da febre amarela”, em 1990. Em 2020, a estatística bayesiana contribuiu enormemente para o tratamento dos dados sobre o vírus SARS-CoV-2, que resultaram na vacina da covid-19.

Lopes diverte-se com a lembrança: “É muito engraçado porque foi uma iniciação científica, a primeira coisa que fiz na vida. Eu ia mais na onda do que a Ângela falava do que por qualquer outro conhecimento profundo que eu tinha. Mas, olhando para trás, vejo que era uma pessoa de matemática aplicada e que me ajudou muito. Esse primeiro trabalho, que nem sei onde está, foi publicado num desses cadernos de iniciação científica do Instituto de Matemática. A iniciação é um treinamento para os alunos que estão começando a graduação, para aprender a escrever artigo científico de um jeito conciso, com introdução, corpo e conclusão. Nisso, você vai vivendo esse mundo da ciência”.

 

Hedibert Freitas Lopes (à direita) com seu orientador e mentor Mike West
Hedibert Freitas Lopes (à direita) com seu orientador de doutorado e mentor Mike West

Sempre bayesiano

O subsídio que a escola bayesiana deu nas primeiras inferências sobre a propagação e contaminação do novo coronavírus é uma amostra da importância da matéria. Além das análises em epidemiologia, estatísticos como Lopes contribuem para estudos de economia, climatologia, neurologia, ciência de dados e computação, entre outros. “O último encontro da ISBA teve várias palestras com o pessoal que modelava covid-19. Em Paraty, num outro evento brasileiro de séries temporais e econometria, que não é bayesiano, havia uma vertente que trabalhava com coisas de modelagem de epidemiologia e modelos epidemiológicos de ponto de vista bayesiano”, afirma.

O cenário não era tão convidativo no início da década de 1990, quando a estatística bayesiana era quase desprezada na academia. “Fazendo uma análise retrospectiva, muito mais educada e madura, percebo que eu estava no olho do furacão”, diz. “Naquele período, estava no mestrado, e o bayesiano ainda era o patinho feio. Todos caíam de pau em cima de caras como o Hélio Migon e o Dani Gamerman, mas eles seguiram sendo bayesianos.”

Lopes foi orientado no mestrado por Migon, com quem publicou dois livros. Com Gamerman — cujo orientador de doutorado foi Mike West, o mesmo mentor de Lopes —, dividiu a autoria do livro Markov Chain Monte Carlo: Stochastic Simulation for Bayesian Inference. “As pessoas me falavam para fazer doutorado em Economia, mas eu percebia que a área bayesiana ainda cresceria muito. Dito e feito”, afirma. “Faço parte de uma geração que colheu os frutos dos profissionais que, desde os anos 1930, trabalharam muito para a estatística bayesiana se solidificar e desabrochar nos 1990.”

Enquanto os mais velhos, então com 35 a 40 anos, publicavam artigos, os mais jovens como Lopes começavam a trilhar o caminho do doutorado. “Hoje, pode-se até dizer que a estatística bayesiana está madura e tem vários outros desafios que fazem interseção com a Ciência da Computação, com a modelagem em altíssima dimensão, com dados vindos de todas as formas, e toda a revolução de machine learning, inteligência artificial, data science. Mas o período de ouro foi de 1990 até 2010, e eu surfei nessa onda.”

Para Lopes, a evolução profissional não é dependente da mente brilhante. “Você é uma pessoa que se esforça, trabalha e está cercada de um monte de gente que tomou as decisões certas em alguns momentos. E segue em frente”, afirma. “Muitos que nos criticavam naquela época fazem agora coisas que nós já fazíamos. Chamam de outras coisas, mas fazem. Não tem jeito de fugir. Se você é um cientista sério, acaba aglutinando as várias áreas e ignora um pouco aquelas disputas anteriores.”

O apoio de professores como Bravo e Migon, que ofereceram as primeiras bolsas de pesquisa, permitiu a Lopes dispensar o salário de digitador, com o qual complementava a renda da família, e dedicar-se à vida acadêmica. A mudança foi significativa. “Eu fazia a faculdade full time, das 7h da manhã às 5h da tarde, e saía correndo porque trabalhava das 6h à meia-noite. Então, dormia da 1h às 5h30 da manhã, nessa época”, diz.

Daí em diante, são respeitáveis linhas no currículo Lattes: assistente de pesquisa no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com bolsa do Banco Mundial, professor assistente na Universidade Federal Fluminense (UFF), professor na UFRJ, doutorado na Universidade Duke, professor associado na Universidade de Chicago, professor titular no Insper e professor na Universidade do Estado do Arizona.

 

Um em mil

Lopes reconhece a sorte de não ter precisado trabalhar na adolescência, apesar de ser pobre, até a idade em que os seus pais se separaram. Afinal, mesmo na década de 1980, os alunos da escola pública não conseguiam competir de igual para igual com os da escola privada. “Tive que me preparar por um ano, pagando um cursinho para preencher os gaps”, afirma. “Existem vários obstáculos de uma educação primária e secundária deficiente, que limitam o pobre, o negro, o indígena, e as ações afirmativas vieram para romper com isso. Se naquela época houvesse cotas, talvez tivesse entrado no primeiro ano em que fiz o vestibular, porque vim de uma família pobre.”

Apesar da jornada tripla, o emprego à noite foi oportuno porque, historicamente, o trabalho não costuma se conciliar com as aulas diurnas na universidade pública. “Felizmente, a informática era importante, pois muitas empresas informatizavam as suas folhas de pagamento e contratavam os data centers, que digitavam tudo. Trabalhei por quatro anos, um ano do pré-vestibular, mais os três primeiros anos da faculdade, como digitador de 6h à meia-noite”, diz. A maioria dos colegas ia para casa depois das aulas ou para os cursos de inglês e informática — formação complementar típica dos jovens de classe média daquela década.

À medida que a faculdade avançava, as dificuldades se tornavam maiores. “Se as aulas terminavam mais cedo, eu ficava até as 5h numa sala de estudo, com os colegas, resolvendo lista de exercícios”, afirma. “Eu tentava ao máximo manter o meu nível, mas é muito difícil. Há vários momentos em que você sucumbe. Hoje, mais velho, percebo que, de mil Hediberts que existiam exatamente iguais a mim, 999 foram caindo ao longo do caminho porque tiveram que parar de estudar, tiveram que trabalhar, mas não havia emprego à noite, cansaram de fazer as listas de exercícios, não conseguiam entregar a tempo. É uma corrida bastante injusta.”

Para Lopes, as barreiras sociais e financeiras ofuscam o potencial do estudante, que demora a compreender que não é inferior aos colegas mais privilegiados. “Se você chega ao nível mais elevado é porque você tem, de fato, não só a perseverança, mas também a inteligência”, diz. “Na universidade, ocorre um pouco desse choque duplo. Primeiro, ao você chegar lá. Segundo, ao notar que nem todo mundo é tão maravilhoso assim. Mas você passa uma década da sua vida enganado.”

Foi naqueles tempos complexos que a estatística bayesiana — ainda menosprezada — se apresentou para Lopes. Emprestando um trecho de seu agradecimento nas redes sociais para tentar visualizar o passado: “Quando a bayesianidade começou a se tornar praticamente factível em todas as áreas das ciências aplicadas e ser bayesiano não era mais uma decisão arriscada”.

A tensão não havia terminado, entretanto. “Me anunciaram a eleição para fellow no começo do ano, mas pediram para não divulgar porque o anúncio formal seria feito durante o evento bianual da Isba, em julho”, conta Lopes, entre risos. “No banquete do último dia, anunciam o nome dos eleitos e todos celebram. Eu estava com essa informação privilegiada sobre mim mesmo desde janeiro, mas não podia falar com ninguém.” Com o perdão do trocadilho, era uma informação digna de viralizar.

 

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