Escrito por David Cutler e Edward Glaeser, Survival of the City (2021), ainda inédito no Brasil, faz da pandemia o fio condutor de uma oportuna reflexão sobre os desafios da vida nas cidades – vale dizer, da maior parte da população do mundo
Paulo Saldiva*
As cidades são um evento relativamente recente na história do Homo sapiens. Evidências obtidas em ossadas e reveladas em 2017 indicam que nossa espécie surgiu na África há cerca de 300 mil anos – até então supunha-se que tal aparecimento ocorrera 200 mil anos atrás.
Nossos antepassados distantes viviam, àquela época, em pequenos grupos, e se mantinham como caçadores ou coletores dos recursos naturais do entorno. Em cenários onde as atividades de caça e coleta eram limitadas, a necessidade de sobrevivência da espécie levou ao aprimoramento das técnicas de plantio e à domesticação de animais, ensejando a fixação de um número muito maior de pessoas no mesmo local. Desses conglomerados de indivíduos é que surgiram as primeiras cidades – isso, há mais ou menos 7 mil anos no Crescente Fértil, entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia (Ásia), e mais tarde, 4 mil anos atrás, na Europa.
Não resta dúvida, portanto, que as urbes sejam resultado da inteligência, da criatividade e sobretudo da integração entre seres humanos – de um “grande acordo”, por assim dizer, para tornar possível a vida em grandes comunidades. Todavia, embora tenham se tornado sinônimo de civilização, as cidades não arrastam consigo apenas ideias virtuosas – seu advento e expansão por todo o globo trouxeram à tona também uma série de problemas, alguns capazes até de ameaçar a espécie humana. Como elas, as urbes, conseguiram – ou melhor, vêm conseguindo, pois o desafio não desapareceu – superar tantas adversidades? Em certa medida, esse é o mote de Survival of the City: Living and Thriving in an Age of Isolation (2021), dos economistas americanos Edward Glaeser e David Cutler, ainda inédito no Brasil.
Cidades podem ser consideradas como seres vivos, o que significa que não escapam do risco de adoecer e de morrer. Os primeiros grandes agrupamentos humanos tornaram insuficientes os procedimentos sanitários herdados dos caçadores e coletores. A sujidade e a proximidade das pessoas forneceram as condições ideais de contágio por agentes infecciosos, alguns deles transferidos dos animais utilizados para alimentação e serviço. O comércio e mesmo os conflitos bélicos permitiram que as infecções superassem a geografia e alcançassem regiões muito distantes do seu foco original – como ocorreu com a febre que devastou Atenas durante a Guerra do Peloponeso (431 a.C-404 a.C) e com a Peste Negra que se espalhou pela Europa partir da rota da seda (século XIV). Mais do que as armas dos espanhóis Hernán Cortés (1485-1547) e Francisco Pizarro (1475-1541), foram a varíola e o sarampo que dizimaram os astecas, no México, e os incas, no Peru. As epidemias – e as pandemias – nascem e se perpetuam nas cidades, podendo destruí-las. Na verdade, podem destruir civilizações inteiras.
As urbes são vítimas também de outros tipos de “doenças”. A produção contínua de alimentos para manter a população urbana trouxe a necessidade da montagem de estoques capazes de enfrentar incertezas como as secas e as pragas. Esse excedente gerou o acúmulo de riqueza. Ao quebrar o sistema que distinguia os caçadores coletores por suas habilidades pessoais, a novidade estabeleceu a desigualdade estrutural como regra.
A desigualdade econômica e social resultou em violência e criminalidade, fazendo com que as áreas mais afetadas sofressem acentuada degradação, como se fossem abscessos ou focos de necrose das cidades. Como no tecido humano, as áreas necrosadas são envolvidas por uma cápsula de fibrose, que tenta circunscrever a região afetada. No caso das urbes, as pessoas de maior renda criaram – criam – enclaves, protegidos por cercas, muros e portarias eletrônicas. Em última análise, isso veio a configurar o oposto da convivência urbana – a matriz das cidades.
Todos esses complexos aspectos já evidenciariam a pertinência do tema da obra de Glaeser e Cutler. No entanto, há outro elemento ainda mais decisivo para que se possa classificar de oportuna a leitura do livro da dupla: ele discute a questão da sobrevivência das cidades frente à devastação provocada pela pandemia de covid-19.
Com a explosão da doença, um temor começou a parecer bastante legítimo: seria preciso renunciar à vida urbana stricto sensu? O novo coronavírus representaria o golpe fatal no “triunfo da cidade”? – para usar aqui uma expressão consagrada por Glaeser e que dá título à sua obra mais famosa, essa sim já publicada no país (Bei Editora, 2016).
A pista para as respostas a ambas indagações surge no subtítulo de Survival of the City, que fala em viver e prosperar em uma era de isolamento (recorde-se: Living and Thriving in an Age of Isolation). Ele, o subtítulo, também sinaliza para algo que Glaeser e Cutler frisam logo no início do livro: não, não se trata de uma obra sobre doenças e sim a respeito dos problemas que podem surgir devido à “escala urbana” e à “proximidade” entre habitantes de uma cidade. Dito de outro modo, nada de renunciar às urbes e sim de atentar para os “demônios da densidade”, a expressão que a dupla adota referindo-se ao que, em O triunfo da cidade, Glaeser chamava de “demônios da urbanização”: justamente a propagação da doenças contagiosas, os congestionamentos, os crimes e a alta dos preços das moradias.
Para estudar esses transtornos, os autores dividem Survival of the City em duas grandes seções, que, entretanto, não estão explicitadas no índice – a explicação disso aparece na introdução do livro. Nos quatro primeiros capítulos, Glaeser e Cutler se dedicam à saúde mental e física das cidades; nos quatro seguintes, eles se debruçam sobre os desafios econômicos e sociais escancarados pelo surto global do Sars-CoV-2.
A estratégia é a de, inicialmente, fazer um diagnóstico dos problemas e, então, propor sugestões de políticas capazes de responder às dificuldades. Nesse itinerário, Survival of the City repassa a relação histórica entre pandemia e cidade, destacando o papel do saneamento básico, os comportamentos que determinam o bem-estar de uma urbe e também suas vulnerabilidades, os sistemas de saúde, as consequências econômicas de uma tragédia como a da Grande Peste, o reflexo do novo coronavírus no trabalho, a questão da gentrificação, do policiamento e da educação.
No campo das propostas concretas, há na obra desde sugestões comuns, como a eliminação de rígidas regulações do uso do solo, até uma ousadia do tipo adaptar o modelo da Otan para o âmbito da saúde, em um contraponto à OMS, que, na opinião de Glaeser e Cutler, é mal equipada para lidar com surtos de doenças – no começo da explosão de covid-19, por exemplo, a entidade se rendia aos informes oficiais da China.
A justificativa da dupla para redigir Survival of the City – proeza realizada em poucos meses – é cristalina: a esperança de que uma melhor política pública possa limitar os danos que a pandemia trouxe para as cidades e, obviamente, para todos os que nelas vivem (os quais, sobreviventes de uma doença arrasadora, podem levar consigo sequelas duradouras, algo de que, reforcemos, as urbes também não escapariam).
Essa explicação vem junto com um esclarecimento sublinhado pelos autores: embora eles sejam ligados à mesma instituição acadêmica, a Harvard University, politicamente se encontram bem distantes. Enquanto Glaeser “has been a traditional East Coast Republican”, Cutler “served in the Clinton White House and on the Obama presidential campaign and has been engaged with Democratic health policy for decades”. O fato só reforça a credibilidade do livro, além de atestar algo que deveria servir de lição para muitos países, a começar pelo Brasil: saúde não é uma questão partidária.
O surto global da doença, como se sabe, não resultou apenas em uma crise sanitária propriamente dita – ele contaminou a economia, as relações pessoais e internacionais, o ensino etc. etc. Resultado: o Sars-CoV-2 fez com que todos nós repensássemos o futuro.
As consequências de longo prazo da covid-19 estão longe de se restringir ao corpo humano. As cidades também exibem cicatrizes deixadas pela doença. Questões importantes do porvir restam sem resposta, exigindo reflexões sobre o mundo que queremos – e nos será possível, diante do presente que se afigura ameaçador. O que fica evidente na obra é que grande parcela das soluções para os gigantescos desafios do futuro passa, necessariamente, pelas soluções de melhor planejamento e administração das cidades.
Assim, concordo plenamente com uma das mensagens centrais do livro de Glaeser e Cutler. Como as cidades constituem o centro de nossa vida e é nelas que vive – e trabalha, sofre, se encanta – a maior parte da humanidade, repensá-las após a crise trazida pelo novo coronavírus não é uma alternativa: é um dever de todos nós. Por maiores que sejam os obstáculos, as urbes possuem a energia e o potencial criativo de propor saídas para torná-las mais habitáveis, mais sustentáveis e mais justas. No fundo, este Survival of Cities acena com uma ponta de otimismo. Afinal, para além de agentes infecciosos, a esperança também frequenta os espaços urbanos.
Uma última observação. É verdade que o trânsito entre o particular e o geral, ou mais exatamente entre o local e o universal, não representa a “pedra de toque” da obra de Glaeser e Cutler. “Nossas cidades” – ou seja, as americanas – é um termo que se repete ao longo do livro (e o foco se dirige sempre para as maiores urbes dos Estados Unidos). Apesar disso, como anotam os autores, “americans states and cities cannot prevent a global plague, but they can help contain it and they can strengthen civil society”. E, frente ao espectro de novas pandemias, a ideia de uma “Nato for Health” espelha uma inquietação com o planeta. Guardadas, portanto, as devidas particularidades de cada nação e de suas urbes, creio que Survival of the City poderá ser lido com especial interesse pelo público brasileiro.
*Médico patologista e coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
–Colaborou Rinaldo Gama, coordenador de Conteúdo do Laboratório
SURVIVAL OF THE CITY: LIVING AND THRIVING IN AN AGE OF ISOLATION, de Edward Glaeser e David Cutler
Penguin Press (2021)
Disponível nas versões impressas (480 páginas) e digital