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Recorde de pedido de demissões: há mesmo uma “grande debandada”?

Como se explica e até onde vai a onda de saída voluntária do mercado de trabalho, um fenômeno que ganhou impulso nos Estados Unidos durante a pandemia

Como se explica e até onde vai a onda de saída voluntária do mercado de trabalho, um fenômeno que ganhou impulso nos Estados Unidos durante a pandemia

 

David Cohen

 

A “grande debandada” (ou Grande Renúncia) no mercado de trabalho da qual tanto se tem falado nos últimos meses — principalmente graças aos dados de pedidos de demissão e contratações nos Estados Unidos — talvez não seja assim tão grande, nem exatamente uma debandada.

É certo que os pedidos de demissão nos Estados Unidos alcançaram níveis impressionantes em todo o ano passado. Em setembro, 4,4 milhões de pessoas largaram seus postos e, em novembro, esse recorde foi novamente batido, com 4,5 milhões de demissões. Em janeiro deste ano, o Departamento de Trabalho americano divulgou que havia 10,6 milhões de ofertas de emprego e 6,9 milhões de desempregados — uma vaga e meia para cada pessoa.

Esses dados parecem reforçar a narrativa estabelecida em meados de 2021, de que a pandemia da covid-19 fez com que as pessoas repensassem suas vidas e, especialmente, o significado de seu trabalho. Dessa mistura de angústia, ansiedade, decepção, estresse e redescoberta interior estaria surgindo um enorme movimento de fuga do trabalho — pelo menos do modo como ele vinha sendo realizado.

Essa narrativa faz tanto sentido (quem não está estressado?), é tão coerente com o discurso moderno sobre o trabalho (quem não quer mais significado em sua vida profissional?) que, mesmo na ausência de dados comprovatórios, a “grande debandada” passou a ser tratada como uma tendência mundial. A ideia é: se em alguns países não há estatísticas nessa direção, é porque o fenômeno iniciado nos Estados Unidos ainda não chegou ali com toda a sua força. Ou: pode não ter chegado para todos, mas ele já se verifica em alguns segmentos de mercado.

 

As particularidades dos Estados Unidos

“Este é um problema que nós temos: quando um fenômeno ganha um nome chamativo, passamos a adotar o conceito de forma um tanto superficial”, diz Luciana Lima, professora de estratégia de negócios e de gestão de pessoas no Insper.

É bem possível que, sim, as pessoas tenham sido forçadas a repensar sua relação com o trabalho. E, sim, o nível de insatisfação tenha subido. Mas o número de demissões nos Estados Unidos tem muito menos a ver com isso do que com as peculiaridades do mercado de trabalho e com a situação econômica do país.

A primeira dessas peculiaridades é que as normas de emprego nos Estados Unidos são muito mais flexíveis do que no Brasil ou na Europa. Há menos regulação e, portanto, muito mais facilidade (e menos custos) para contratar ou demitir.

Além disso, durante a pandemia, o governo americano assumiu a estratégia de proteger o crescimento econômico, enquanto a Europa Ocidental (e também o Brasil) optou por proteger empregos. De acordo com o editorial do jornal britânico Financial Times de 1º de fevereiro, as políticas da Alemanha, do Reino Unido, da França, da Itália e da Espanha preservaram 32 milhões de empregos por meio do pagamento de licenças remuneradas na primeira onda da pandemia, em abril de 2020 — e milhões de trabalhadores ainda se beneficiam desses esquemas.

O Brasil fez algo semelhante com seu Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, em abril de 2020. Para evitar demissões, empregador e empregado podiam chegar a um acordo de redução da jornada de trabalho e correspondente redução de salário. Durante três meses, o governo assumia parte dos custos da suspensão ou redução da jornada, pagando ao trabalhador um benefício emergencial de preservação do emprego e da renda (apelidado de BEM).

Nos Estados Unidos, as empresas foram deixadas à vontade para demitir o tanto de funcionários que considerassem necessário. A rede de proteção para eles foi um cheque aos desempregados, pago diretamente pelo governo (o Brasil também fez algo semelhante, até pelo tamanho de seu mercado informal, que o BEM não atingia).

A diferença nas estratégias explica por que os Estados Unidos tiveram 9,6 milhões de pessoas demitidas nos primeiros três trimestres de 2020, enquanto a União Europeia, com uma economia de tamanho similar e cerca de 100 milhões de habitantes a mais, teve pouco mais de um quarto disso: 2,6 milhões.

A flexibilidade, porém, funciona tanto para baixo quanto para cima. E a economia americana se levantou do baque mais rapidamente que a dos demais países ricos. Nessa hora, as empresas que demitiram em massa — principalmente no setor de serviços — se viram sem braços para funcionar a contento. As vagas fechadas voltaram a se abrir, em grande número.

Acontece que as pessoas não voltaram exatamente para os empregos que tinham antes. Um número de vagas assim tão grande, abertas quase simultaneamente, conferiu aos trabalhadores, principalmente os da base da pirâmide, um poder de barganha que raramente têm. E é isso que explica a “grande debandada”: o maior contingente de pessoas a largar seus empregos foi atrás de outros empregos — com salários maiores, ou melhores perspectivas, ou numa atividade diferente. Ou as três coisas juntas.

 

Mais gente trabalhando

Como costumam dizer os economistas, pedir demissão é um sinal de otimismo. Em geral, o empregado tem confiança de que vai ter sucesso ao abrir um negócio próprio ou, o mais comum, que vai arranjar um emprego melhor.

O movimento ainda não acabou. O número de desempregados nos Estados Unidos, de acordo com um relatório do governo divulgado em fevereiro, declinou de 4 milhões, há um ano, para 1,7 milhão agora; mas ainda são 570.000 a mais do que em fevereiro de 2020, quando a pandemia começou. Há hoje 2,9 milhões de empregos a menos no país em relação ao nível pré-pandemia. Levando em conta o crescimento populacional, o déficit é de 4 milhões de vagas, de acordo com Elise Gould, do Instituto de Política Econômica, citada pelo jornal The New York Times.

Este processo ainda em andamento já garantiu ao presidente Joe Biden o melhor primeiro ano de governo em termos de criação de empregos desde o início da coleta desse tipo de dados, em 1939. Foram 6,6 milhões de empregos criados desde janeiro de 2021. Não só o desemprego caiu acentuadamente, os salários subiram em média 5,7% no mesmo período.

Cada vaga dessas em geral não é preenchida por um desempregado. O mais comum é que alguém largue um emprego menos adequado para assumi-la, abrindo espaço para que outra pessoa concorra à posição abandonada, e assim por diante. Uma evidência desse processo é uma análise feita pelo banco central do estado da Geórgia, o Atlanta Fed: segundo seus dados, os trabalhadores que trocaram de emprego entre agosto e outubro do ano passado tiveram um aumento salarial médio de 5,1%, enquanto quem ficou no lugar em que estava teve aumento médio de 3,7%.

Essa dinâmica explica grande parte dos 25 milhões de pedidos de demissão nos Estados Unidos apenas no segundo semestre de 2021. O fenômeno se assemelha mais a uma dança das cadeiras do que a uma renúncia aos empregos.

 

Já houve ondas maiores

O número de pedidos de demissão é um recorde histórico. Ainda assim, o número pode ter sido bem maior em outras épocas. Explica-se: esse tipo de dados começou a ser coletado pelo Burô de Estatísticas de Trabalho no ano 2000.

A série histórica é, portanto, relativamente curta. Houve, entre 1930 e 1981, uma outra série de dados de demissões, mas essas não entram na conta porque a metodologia aplicada era diferente.

Não são, porém, diferenças assim tão grandes, como observou Peter Coy, editorialista econômico do The New York Times, em sua newsletter no final de janeiro. Hoje, a renúncia é definida como “deixar o trabalho voluntariamente”. Antes incluía, além disso, não aparecer para trabalhar depois de ser contratado e sumir do trabalho sem autorização por mais de sete dias. “A mim parece uma distinção sem muita diferença”, escreveu Coy.

Outro empecilho é que os dados antigos se referem apenas ao setor industrial. Quando Coy restringiu os dados atuais à indústria, para poder comparar os índices de pedidos de demissão das duas séries, verificou que durante a Segunda Guerra Mundial o nível de abandonos de emprego era quase três vezes maior do que o de agora. É fácil entender por quê: muita gente largou o trabalho para se alistar na guerra, o que impulsionou a entrada das mulheres no mercado de trabalho, mas de forma não instantânea. Durante bastante tempo imperou um desequilíbrio em favor dos trabalhadores; qualquer um que largasse seu posto podia ter a certeza de encontrar um novo trabalho quando quisesse.

Mesmo entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970, a taxa de demissões ficou perto dos 3%, em vários anos — um pouco maior do que a de agora.

 

Vai haver contaminação?

Ao que tudo indica, a “grande debandada” é um fenômeno que se repete nos Estados Unidos de tempos em tempos, um ajuste mais volumoso que o observado em outros mercados graças à ausência de freios regulatórios. Nos lugares em que a legislação trabalhista é mais rígida, as empresas pensam duas vezes antes de demitir (e umas três ou quatro antes de contratar), o que arrefece as movimentações.

Como essa conjuntura é específica dos Estados Unidos, o fenômeno atual dificilmente vai surgir em outros países. Não só pelo mercado de trabalho, mas pelo mercado de consumo.

No mundo inteiro, as políticas de isolamento levaram a um maior nível de consumo em casa. Você não pode ir à academia, compra uma bicicleta ergométrica e pesinhos; não tem como jantar fora, pede comida em domicílio; não pode viajar, compra um TV maior, um sofá mais confortável etc. Mas nos Estados Unidos esse movimento natural teve um impulso extra — pela cultura do país e, certamente, pelo pacote de estímulo econômico (1,9 trilhão de dólares injetado na economia a partir de março de 2021, incluindo ajuda de 300 dólares semanais aos desempregados, ajuda para pagamento de aluguéis, auxílio emergencial a estados e municípios e programas de vacinação).

Não à toa, enquanto na Europa Ocidental a demanda voltou ao nível pré-pandemia, nos Estados Unidos ela está hoje 30% acima do que era em 2020 — um fator que torna o mercado de trabalho ainda mais aquecido.

“Quando olho para o mercado de trabalho, não estamos experimentando nada parecido com a Grande Renúncia, e os números de emprego estão chegando muito perto do nível pré-pandemia”, disse a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, em um evento online do Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro. A opinião de Lagarde é amparada pelos números. De acordo com o Financial Times, a disputa por funcionários está fazendo o custo do trabalho subir de forma acentuada nos Estados Unidos, enquanto em outros países ricos ele tem caído.

Na França, o número de pessoas no mercado de trabalho é hoje maior do que antes da pandemia. Na Espanha, os pedidos de demissão caíram, em vez de subir, de 2020 para 2021 — também, com um nível de desemprego de cerca de 15%, ninguém é muito encorajado a largar o rendimento certo pelo duvidoso.

É verdade que na Alemanha, a maior potência europeia, mais de um terço das companhias relata não conseguir contratar o tanto de trabalhadores qualificados que gostaria, de acordo com pesquisa do IFO – Instituto de Pesquisa Econômica, uma instituição de análises baseada em Munique. Mas o país sofre com falta de trabalhadores há anos. O déficit de empregados na economia em geral é praticamente igual ao de 2018.

Também no Reino Unido o mercado de trabalho está aquecido. De acordo com Sanjay Raja, o economista-chefe para o Reino Unido do Deutsche Bank, o número de pedidos de demissão no país é o maior desde 2009 e o número de vagas abertas na economia é o maior de que se tem notícia. “É um dos mercados de trabalho mais aquecidos na saída da pandemia”, escreveu em nota para os clientes.

Também ali, no entanto, trata-se menos de uma debandada do emprego do que uma reacomodação rumo a setores mais valorizados da economia. Segundo dados da rede social profissional LinkedIn do Reino Unido, entre agosto e outubro do ano passado, o número de contratações na área de software e serviços de tecnologia da informação mais do que dobrou em relação ao ano anterior, enquanto o número de postos em educação e varejo caiu. Também o setor de saúde está com déficit de empregados, como em quase todo o mundo, pelo aumento da demanda por esses serviços na pandemia e piora das condições de trabalho.

Essa reacomodação acontece em praticamente todos os países. No Brasil, entre 2020 e 2021 (dados até novembro), o número de admissões subiu de 15 milhões para 19 milhões; e o número de desligamentos também subiu, de 15,8 milhões para 16,1 milhões. O fato de ambas as variáveis terem subido é sinal de uma dança das cadeiras. “As pessoas estão sendo realocadas porque o mercado de trabalho sofreu um grande choque”, afirmou Marcelo Neri, diretor do FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas, ao jornal O Estado de S. Paulo.

 

A insatisfação já era bem grande

E quanto aos outros sinais de uma grande debandada? Foi muito citada no ano passado uma pesquisa da Microsoft, apontando que 41% dos trabalhadores no mundo inteiro estavam considerando largar seu emprego no decorrer de um ano. Os motivos citados iam de estafa em meio à covid-19 até um sentimento de isolamento e perda dos laços profissionais.

Tomado assim, sozinho, é de fato um número assustador. Porém, não é algo muito diferente do que se vê nas empresas há muito tempo. Em 2019, por exemplo, um ano antes da pandemia, o Instituto Gallup fez uma pesquisa que elencava dez fatores para avaliar um emprego: nível salarial, segurança de receber o salário, carga horária estável, flexibilidade para fazer seu horário e local de trabalho, segurança, benefícios, oportunidade de progresso, ambiente agradável, propósito, autonomia. A conclusão é que 44% das pessoas têm trabalhos medíocres e 16% têm trabalhos ruins.

Outra pesquisa do mesmo instituto, também de 2019, apontou que o índice de funcionários que se declaravam engajados no serviço era de apenas 34% nos Estados Unidos e 15% globalmente. E esse índice era o maior registrado em vários anos de pesquisa…

Além disso, é preciso lembrar o óbvio. “Uma coisa é pensar em deixar o emprego”, diz Luciana Lima, do Insper. “Outra bem diferente é deixar.” A pandemia pode ter aumentado a insatisfação com o trabalho, mas ela já era bem alta antes. O que realmente faz diferença é se o mercado de trabalho é amigável ou inóspito para quem se aventura a pedir demissão. Nos Estados Unidos, hoje, é amigável. No Brasil, com seu índice de desemprego de quase 12%, é inóspito.

 

O abandono das mulheres

Embora o termo “grande debandada” se coloque entre o impreciso e o equivocado, isso não significa que as premissas usadas para justificá-lo estejam erradas.

Há, de fato um grande sentimento de frustração pairando no ar – com governos, com empresas, com a vida. Ou, como escreveu a jornalista Noreen Malone, em artigo da revista do New York Times, em fevereiro: “a pandemia pode ter alertado novas levas de pessoas para seu desgosto por seus empregos – ou tê-las exaurido além do ponto em que ainda há qualquer coisa prazerosa nos trabalhos de que costumavam gostar”.

Para além das pessoas buscando novas oportunidades, há as pessoas – bastante gente – desistindo do mercado de trabalho. Em geral, porém, é menos por exercer sua liberdade do que por doença ou depressão, por falta de oportunidades, por ter de cuidar dos filhos.

Há uma espécie de grande debandada em setores como o da saúde, em que o estresse tem sido brutal, ou de turismo e lazer, em que as oportunidades ainda não voltaram ao nível de antes da pandemia.

E há uma debandada mais específica, que atinge as mulheres, em especial as mães de família. Um estudo da consultoria McKinsey detectou que o número de mulheres que se dizem estafadas subiu de 32%, em 2020, para 42% no ano passado. Para os homens, a alta foi de 28% para 35%.

Um dos sentidos em que a pandemia acentuou as desigualdades sociais é que sobre as mulheres, usualmente mais sobrecarregadas com a “segunda jornada”, o trabalho de cuidar da casa e dos filhos, recaiu o maior peso das preocupações com as crianças. Em muitos casos, com escolas fechadas ou mandando crianças embora quando aparece um caso de covid na sala, as cuidadoras simplesmente não têm mais como comparecer ao trabalho.

De acordo com declaração da economista Misty Heggeness, do Censo dos Estados Unidos, ao jornal The Guardian, em setembro e outubro de 2021 havia no mercado de trabalho 1,4 milhão de mães a menos que nos mesmo meses do ano anterior. A “segunda jornada” sufoca a primeira.

 

Todo o poder aos jovens (qualificados)

De outro lado, o Brasil tem também seus grandes vencedores na retomada da economia. São os jovens bem qualificados. Para começar, o desemprego para essa população é de apenas 6,3% (pouco acima dos 5% que caracterizam, segundo especialistas, uma situação de pleno emprego).

Entre esses jovens, há ainda um subgrupo de pessoas “extremamente assediadas, que têm a liberdade de escolher onde e como querem trabalhar”, nas palavras de Luciana. “São os profissionais de 20 e poucos a 30 e poucos anos, que têm boa formação educacional e sabe programar.” Eles são disputados pelas empresas dos setores mais valorizados hoje: tecnologia e mercado financeiro.

Esse não é um fenômeno novo. O país tem um desemprego alto e uma falta crônica de profissionais, um paradoxo cuja explicação repousa no nosso precário sistema educacional, incapaz de formar gente qualificada suficiente.

O que a pandemia fez foi exacerbar a situação. Com a adoção do trabalho online, principalmente para os serviços mais intelectualizados, romperam-se barreiras geográficas, não só nacionais como internacionais. O mercado começou a se mexer: um banco pode contratar profissionais que estão em outro estado; e empresas estrangeiras podem contratar brasileiros para alguns cargos, sem que eles precisem se mudar.

Luciana diz ter testemunhado o desligamento de profissionais rumo ao exterior em diversas empresas em que prestou consultoria. “Estamos perdendo profissionais qualificados até para o Peru”, diz.

 

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