Em uma “treta” via Twitter que durou três dias, a corretora de criptos Binance expurgou do mercado seu principal concorrente, a FTX. Que lições podemos extrair desse caso?
Isac Costa*
O bom funcionamento do mercado financeiro depende da confiança que os agentes econômicos depositam em suas instituições. Crises e pânico podem levar a perdas relevantes a investidores e danos ao próprio funcionamento do sistema econômico.
No dia 6 de novembro, Changpeng Zhao (CZ), o CEO da exchange (corretora) Binance, postou em seu Twitter que a empresa venderia todos os tokens FTT (cerca de US$ 2,2 bilhões), de emissão da FTX, que recebera após ter saído do investimento realizado nessa empresa. A razão para a venda seriam “algumas revelações recentes” envolvendo as informações financeiras sobre a FTX e o fundo Alameda, divulgadas pelo portal CoinDesk, revelando um grau de alavancagem preocupante nas empresas.
O tema da alavancagem e eventual insolvência de empresas cripto é sensível, diante da quebradeira de empresas cripto alavancadas como Celsius e Voyager, o projeto Terra Luna e o fundo Three Arrows Capital (3AC).
FTT é um token de emissão da FTX com a função de prover descontos e comissões para seus usuários, à semelhança do token BNB emitido pela Binance. Seria uma espécie de “sangue” no sistema circulatório da exchange, suportado pelas corretagens e outras taxas relativas aos serviços prestados.
A despeito do efeito nefasto da venda dos tokens da FTX, CZ insistiu que sua decisão não era uma manobra contra seu principal competidor. O preço dos tokens FTT desabou, de pouco mais de 24 dólares para 3 dólares na manhã de 9 de novembro. Em 3 dias, uma desvalorização de quase 90%. Ou melhor, uma “vaporização”.
A FTX foi praticamente reduzida a pó em poucos dias porque, após um choque de credibilidade, foi alvo de solicitação de resgates em massa de seus clientes. Por dispor, em ativos líquidos, apenas uma fração de suas exigibilidades, a empresa não conseguiu honrar os saques, bloqueou os resgates e, ainda, virou alvo de um suposto ataque hacker que teria resultado na perda de bilhões de dólares de seus clientes.
Embora tenha recebido investimentos de grandes fundos e empresas e, por isso, tenha sido alvo de auditoria, a FTX fez o mesmo que outras “gigantes” que a precederam: falsearam informações prestadas ao mercado. Diante da euforia, o descuido (ou dolo) amplifica a máxima de que o papel aceita tudo.
A FTX chegou a ter um valuation de US$ 32 bilhões no início de 2022 e tem investidores como Softbank e Vanguard, estava socorrendo várias empresas cripto como a BlockFi e a Voyager Digital — a ponto de Sam Bankman-Fried (ou SBF, para os mais íntimos), seu CEO de 30 anos com uma fortuna pessoal estimada em cerca de US$ 24 bilhões, ser considerado uma versão cripto de JP Morgan.
SBF chegou a afirmar que comprar o Goldman Sachs não estava fora de cogitação. A FTX também investiu na controvertida corretora norte-americana Robinhood, pivô do caso das ações da Gamestop e conflitos de interesses na intermediação de ações envolvendo a venda de ordens de investidores de varejo para a Citadel. As ações da Robinhood chegaram a cair quase 20% em meio a todo o imbróglio.
Pelo Twitter, CZ anunciou que um acordo não vinculante havia sido firmado. Enquanto isso, a volatilidade aumentou em todos os criptoativos, com fortes desvalorizações, com destaque também para o token Solana (perda de 36% em sete dias), projeto que também recebeu investimento da FTX.
E agora? A Binance se consolida como líder do mercado. Em uma “treta” via Twitter que durou três dias, expurgou do mercado seu principal concorrente. Que lições podemos extrair desse caso?
Em um mercado regulado, a conduta da Binance poderia ser considerada uma infração à legislação concorrencial e, ainda, manipulação de mercado. A depender de quem detinha a informação sobre a venda dos tokens FTT e de eventual negociação em mercado, algumas pessoas poderiam também ser acusadas de insider trading.
Teria a Binance o direito de se desfazer dos tokens FTT? O modo pelo qual ocorreu a divulgação foi adequado? Há alguma infração em simplesmente dar transparência a uma decisão negocial?
A resposta a essas perguntas depende da compreensão de um contexto maior. Devemos lembrar que, recentemente, a Binance anunciou que expurgaria de sua plataforma as stablecoins USD Coin, emitidas pela rival Coinbase. Além disso, começou a reduzir ou eliminar taxas de corretagem para algumas operações, capturando ainda mais o interesse de quem deseja negociar criptoativos.
Seriam tais manobras estratégias legítimas de mercado? Ao fim e ao cabo, que vença o melhor? O investidor-consumidor ganha ou perde com tudo isso?
Convido você, que lê este texto, a navegar pelo art. 36 da Lei nº 12.529/2011. Ou pelo art. 27-C da Lei nº 6.385/1976. Dado o caráter extraterritorial da disputa e a não caracterização de criptoativos como valores mobiliários, difícil dizer se estas normas — ou suas equivalentes no âmbito dos EUA ou da União Europeia — se aplicariam ao caso, mas fica a sugestão de agenda de pesquisa para acadêmicos e debate pelas autoridades interessadas.
Normas que protegem o patrimônio dos investidores, segregando seus recursos da empresa que presta serviços financeiros, podem ajudar a mitigar os riscos desse tipo de situação. Igualmente, controles sobre a concessão de empréstimos ajudam a manter a estabilidade financeira.
É exatamente esse o problema decorrente da rejeição do dispositivo PL 4.401/2021 (sobre ativos virtuais), que trata da segregação do patrimônio de investidores e dos prestadores de serviços. Sobre o tema, inclusive, a senadora Soraya Thronicke propôs, há poucos dias, um novo projeto de lei que tem como preocupação central a garantia de que “não haverá confusão patrimonial entre o bem ou direito do consumidor e o bem ou direito do prestador desses serviços” (PLS 2.681/2022).
No mercado de ativos virtuais como modalidade de investimentos alternativos, encontramos uma tensão intrínseca entre mercado e Estado.
De um lado, defende-se a liberdade para o desenvolvimento de novos modelos de negócios, o aumento da concorrência, a proteção da privacidade e a superação de ineficiências da burocracia estatal e custos de instituições incumbentes.
De outro lado, a intervenção regulatória é justificada pelas preocupações com a estabilidade financeira, a proteção do investidor-consumidor e a transparência na prestação de informações.
Sem lombadas, proteções laterais e freios, há um terreno fértil para “velozes e furiosos”, com muita adrenalina… e risco. É esse o mercado que queremos?
* Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutorando (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.