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Doar a própria empresa: a sucessão na Patagonia vai fazer escola?

Dificilmente alguma companhia seguirá o exemplo de transferir 100% do seu patrimônio a alguma causa. Mas uma nova pesquisa mostra que a filantropia no Brasil está cada vez mais ligada ao próprio negócio

Dificilmente alguma companhia seguirá o exemplo de transferir 100% do seu patrimônio a alguma causa. Mas uma nova pesquisa mostra que a filantropia no Brasil está cada vez mais ligada ao próprio negócio

Yvon Chouinard, da Patagonia
Yvon Chouinard, fundador da Patagonia, fabricante de roupas e acessórios esportivos

 

David Cohen

 

Em seus 49 anos de existência, a Patagonia sempre foi uma empresa especial. Fundada por um ex-alpinista um tanto avesso ao capitalismo, ela costuma estar na vanguarda de movimentos que aos poucos vão se disseminando, em especial na agenda ESG, de responsabilidade social, ambiental e de governança.

Ela foi, por exemplo, uma das pioneiras na adoção de algodão orgânico para fabricar suas jaquetas, bonés e roupas de esqui; na construção de um espaço para que os empregados possam cuidar dos filhos no trabalho; até mesmo em estimular o consumo consciente (ensinando a consertar as roupas ou incentivando doações); e também vem há décadas doando 1% de sua receita para causas sociais ou ambientais.

“É uma empresa superinovadora, com uma estratégia de sustentabilidade baseada nos princípios da economia circular”, diz Priscila Claro, professora de Estratégia, Sustentabilidade e Negócios Sociais do Insper. “Foi uma das primeiras a adotar a slow fashion, que foca em produtos mais duradouros e mais simples. Ela chegou inclusive a fazer uma campanha no Natal dizendo que as pessoas não comprassem sua jaqueta — a não ser que realmente precisassem.”

Talvez não o façam com o mesmo denodo, mas muitas empresas têm seguido caminhos parecidos com os que a Patagonia vem desbravando ao longo dos anos. A preocupação com o bem-estar dos funcionários cresce desde os anos 1990, a agenda ambiental se impôs neste milênio e até a organização Business Roundtable, que reúne os principais executivos de mais de 180 empresas — cuja receita conjunta ultrapassa os 7 trilhões de dólares — redefiniu em 2019 o propósito dos negócios: em vez de simplesmente gerar lucro, o mantra predominante há décadas, o compromisso agora é beneficiar todos os seus stakeholders (os públicos afetados por sua atuação, desde funcionários e fornecedores até clientes e as comunidades no seu entorno).

Será então que a mais recente decisão da Patagonia — um processo sucessório que envolve a doação da própria empresa e a perenização de seu propósito de combate às mudanças climáticas — servirá de inspiração para o mundo dos negócios?

 

Lucro para o meio ambiente

O mecanismo de sucessão da Patagonia, anunciado em setembro por seu fundador, o americano Yvon Chouinard, é extraordinário. Em vez de vender a companhia ou abrir seu capital, ele, a mulher e os dois filhos transferiram a propriedade da empresa, avaliada em 3 bilhões de dólares, para um fundo gestor e para uma organização sem fins lucrativos.

O fundo gestor, Patagonia Purpose Trust (fundo de propósito Patagonia), supervisionado pela família e seus conselheiros, terá todas as ações com direito a voto, que representam 2% do capital total. Os restantes 98% irão para uma organização que eles criaram, o Coletivo Holdfast, cuja missão é distribuir dinheiro para causas ambientais.

Quer dizer: a Patagonia vai continuar a operar como uma empresa, mas todo o seu lucro (cerca de 100 milhões de dólares anuais) será revertido para causas ambientais. “Temos esperança de que esse movimento ajude a criar um novo capitalismo que não desemboque em umas poucas pessoas ricas e um monte de pessoas pobres”, disse Chouinard em entrevista ao jornal The New York Times.

É pouco provável, porém, que essa esperança se concretize. “É muito difícil encontrar uma organização que funcione como a Patagonia”, afirma Priscila. É quase como se a Patagonia tivesse cruzado uma fronteira: não quer ser empresa, pelo menos não no sentido de realizar uma atividade que traga ganhos a seus acionistas.

Até existe — muito mais em tese do que na prática — um conceito que se aproxima disso, o setor 2,5. O pioneiro do conceito foi o banco Grameen, criado na década de 1970 para emprestar dinheiro a empreendedores em comunidades carentes. Guiado por este propósito, o banco estava a meio caminho entre o setor 2 (as empresas que compõem o mercado da iniciativa privada) e o setor 3 (as organizações não lucrativas, com objetivos sociais). É difícil crer, no entanto, que uma parcela significativa das empresas migre para essa lógica.

Ainda assim, o movimento feito pela Patagonia é um exemplo de uma tendência no mundo dos negócios — um exemplo extremado, talvez, mas por isso mesmo inspirador. Trata-se de unir a filantropia à atividade central da empresa.

“Até uns 15 anos atrás, as empresas tinham projetos de filantropia muito assistencialistas”, afirma Priscila Claro, do Insper. Muitas vezes, seguiam as exigências da lei: para montar uma fábrica ou um projeto de porte, em geral o poder público cobra da empresa alguma ação em prol da comunidade.

De lá para cá, houve uma paulatina mudança. Até pelo acompanhamento das ações filantrópicas, mas especialmente pelos canais de comunicação abertos com as populações impactadas pela empresa, começou a haver uma escuta das demandas sociais. “E os recursos destinados à filantropia passaram a ser investidos em projeto de inclusão produtiva, como treinamentos, apoio à população etc.”, diz Priscila.

 

Loja da Patagonia no estado do Colorado
Loja da Patagonia no estado do Colorado

Alinhamento com o negócio

No Brasil, essas mudanças vêm sendo acompanhadas pela pesquisa Bisc (Benchmarking do Investimento Social Corporativo), realizada pela Comunitas, uma organização de apoio ao investimento social das empresas. A pesquisa, realizada desde 2008, compila informações de cerca de 350 empresas e institutos. Os dados relativos ao ano de 2021 deverão ser divulgados em novembro, mas já foi possível ter acesso a alguns destaques do estudo.

O principal dado é o volume de recursos destinado a projetos filantrópicos (o investimento social). Em 2020, o total investido praticamente dobrou em relação ao ano anterior, para 5 bilhões de reais. Mas foi um ano atípico, em que as empresas se mobilizaram para mitigar os problemas causados pela pandemia da covid-19.

Houve, portanto, um retorno pontual a projetos assistencialistas, especialmente os voltados à saúde. A área, que costumava receber menos de 5% dos investimentos sociais das empresas, em 2020 recebeu 45%. No ano passado, quando o governo já havia se organizado para atender a população, era esperada uma queda significativa nas doações das empresas, de mais da metade do valor total. “Mas a queda foi muito mais amena do que prevíamos”, afirma João Ricardo Ribas de Morais, que cursou mestrado em políticas públicas no Insper e é coordenador de pesquisas da Comunitas.

O total investido em projetos sociais em 2021 ficou em 4,1 bilhões de reais. É um valor ainda um pouco inflado por projetos relacionados à pandemia, mas a percepção na Comunitas é que a atuação realmente se expandiu, para além do esforço emergencial.

“Um fenômeno que está chamando a atenção, especialmente nos últimos anos, é a maior pulverização em áreas de atuação das empresas”, diz João Ribas. A saúde, por exemplo, recuou em relação a 2020, para 15% do valor total dos investimentos, mas ainda é o triplo do verificado em 2019. Resquício de ajuda contra a pandemia? “Um pouco, sim, mas nós acreditamos que a experiência de 2020 acabou chamando a atenção das empresas para a área”, afirma.

As empresas estão passando a investir em projetos que tenham mais a ver com o seu próprio negócio. Essa mudança é concomitante à maior importância dos times sociais — com o fortalecimento da agenda ESG, eles estão se tornando mais estratégicos. “O investimento social privado está se dando mais no setor industrial, cuidando dos impactos da empresa, como poluição sonora, atmosférica etc.”, afirma João Ribas. Segundo ele, a trajetória de alinhamento ao negócio faz muito sentido para as empresas: elas têm reagido às demandas que chegam da comunidade.

É significativo que os retornos esperados pelas empresas em suas ações também estejam mudando. Um dos motivos clássicos para ações sociais, a mitigação de riscos (na suposição de que a filantropia cria boa vontade em relação à empresa), teve 46% de expectativa de retorno alto ou muito alto em 2017. Em 2021, a expectativa caiu para 36%.

Já a expectativa de aproximação com as comunidades subiu de 69% de “alto” e “muito alto” em 2017 para 72% em 2020 e 81% no ano passado. E a expectativa alta ou muito alta de retornos operacionais — a noção de que a empresa se beneficia das ações sociais ou ambientais com melhora em sua eficiência — subiu de 23% em 2017 para 27% em 2020 e 50% no ano passado.

Essa crescente expectativa se justifica pelo aumento de projetos de inclusão produtiva nas comunidades do entorno, com treinamentos para qualificar a mão de obra, observa Priscila Claro.

Todo esse movimento reflete uma mudança na natureza das ações filantrópicas. Há algumas décadas, os investimentos sociais eram em geral apartados do dia a dia das empresas. Dessa lógica nasceram os institutos e fundações, com atuação própria e independente da companhia que lhes deu origem. “O alinhamento com comunidades é uma agenda mais nova”, afirma João Ribas. Ele ganhou força com a agenda ESG, mas antes disso já vinha crescendo, com a ideia de triple bottom line, nos anos 1990 (a busca de resultados financeiros, sociais e ambientais) e, mais recentemente, com a agenda de objetivos sustentáveis da ONU, lançada em 2015.

“Lá atrás, nós separamos o time social do time de negócios”, resume João Ribas. “A agenda agora é alinhar.”

Não chega a ser um novo capitalismo, como disse desejar o fundador da Patagonia. Mas é certamente um caminho para tornar as empresas mais cidadãs.

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