Para desenvolver um sistema com ativos digitais e interoperabilidade global, é preciso evoluir para uma economia tokenizada. Ou seja: com dados confiáveis e contínuos
Marson Cunha*
Da mesma forma que a evolução de seres vivos se deu com a transição de organismos unicelulares para multicelulares, há 600 milhões de anos, desencadeando uma série de passos evolutivos até chegar ao Homo sapiens, no mundo inteiro as empresas estão se organizando para desenvolver um mercado de capitais público e privado com interoperabilidade[1] global.
Vemos isso com o desenvolvimento de ativos digitais: sejam moedas, sejam representações digitais de ativos reais. No Brasil, contamos hoje com um ente regulador, a CVM, que está mais dinâmico e com um olhar atento para essa nova fronteira a ser entendida e desbravada. Também temos como aliado nessa frente o próprio Banco Central, que desenvolveu e implantou com sucesso uma agenda digital que começou com um meio de pagamento descentralizado, o PIX.
A CVM publicou recentemente o Parecer de Orientação nº. 40, no qual esclarece e consolida entendimentos importantes para o mercado a respeito de ativos digitais. Com esse passo, a autarquia desenha um caminho inicial para o mercado brasileiro evoluir com ativos digitais de maneria ágil e demonstra adaptabilidade às novas tecnologias.
As tecnologias de registro distribuído[2] (como a blockchain) têm sido cada vez mais utilizadas para dar maior transparência e velocidade a ativos reais privados com a criação de ativos digitais diversos, entre os quais aqueles que servem de instrumento para captação de recursos e investimento.
Em 1701, um polímata alemão chamado Gottfried Leibniz expressou um princípio filosófico em forma matemática[3] que trata da mudança de um estado para outro. Nele, ele demonstra que não há ruptura na natureza e nada passa de um estado para outro sem passar por todos os estados intermediários. Mas como isso se conecta com o tema em questão? Para construirmos um mercado de capitais com ativos digitais e interoperabilidade entre pools de liquidez (sejam bolsas, sejam mercados de balcão), precisamos evoluir de um mercado mais analógico com data lakes[4] sem conectividade para uma economia tokenizada.[5] Simplificando: precisamos de dados confiáveis e com continuidade.
A Securities Exchange Commission (“SEC”, a CVM americana) criou em 1995 um sistema de consolidação de dados para companhias listadas, chamado EDGAR (Electronic Data Gathering, Analysis, and Retrieval). Seu principal propósito seria aumentar a eficiência e equilíbrio para investidores, companhias e a economia de mercado ao acelerar o recebimento, a aceitação, a disseminação e a análise de dados importantes que foram submetidos à autarquia. Em outras palavras, o EDGAR é uma base de dados gratuita e pública que proporciona aos participantes de mercado pesquisarem uma empresa listada.
Há uma confiança do mercado nessa base de dados porque as empresas públicas são obrigadas a arquivar seus informes e demonstrações financeiras. Essas empresas são obrigadas a passar por auditorias de terceiros e podem ser penalizadas por quaisquer distorções materiais, uma vez que os investidores confiam nessas informações. As bases de dados EDGAR são centralizadas.[6]
O acesso a informações confiáveis elimina a assimetria de informações no mercado. Isso permite que a descoberta de preços ocorra. A descoberta de preços leva à negociação secundária. O banco de dados EDGAR entrou em operação em 1995. O valor de negociação de ações nos Estados Unidos foi de US$ 9 trilhões naquele ano. Em 2000, havia saltado para US$ 46 trilhões, de acordo com o Banco Mundial.
De acordo com estudos da consultoria McKinsey (2020), os mercados privados captaram globalmente duas vezes mais capital do que os mercados públicos. No entanto, os mercados públicos têm 330 mil vezes mais liquidez.[7] Com a blockchain, isso vai mudar.
A explicação da tecnologia blockchain e as extensões apropriadas geralmente ficam aquém de uma analogia concisa e compreensível para a aplicabilidade no mundo de negócios. Para os que se lembram, um jogo de Super Trunfo (aquele da Grow) é composto por dois componentes simples: uma foto de um ativo (geralmente um carro ou avião) e suas estatísticas de um determinado ano, como velocidade máxima, aceleração e peso. Essas estatísticas transmitem o desempenho do ativo, que é um composto de vários pontos de dados daquele ano. Milhares dessas cartas são duplicadas com os mesmos dados naquele ano. E se, em vez disso, essas cartas pudessem refletir continuamente as métricas à medida que ocorrem em tempo real?
Quando falamos de um jogo ou um bem colecionável, o atrativo é o modelo original com todas as características daquela época (pense no Chevrolet Chevelle Malibu 1964, do Pulp Fiction). Quando tratamos de ativos mobiliários, a conversa é diferente. A blockchain permite a rastreabilidade dos dados com confiança e transparência e é a tecnologia que está sendo utilizada por algumas empresas globalmente para construir esse novo mundo.
A KKR & Co. Inc., também conhecida como Kohlberg Kravis Roberts & Co., é uma gestora de investimentos americana que administra fundos de private equity, energia, infraestrutura, imóveis, crédito e, por meio de seus parceiros estratégicos, fundos de hedge. De acordo com dados reportados no final de 2021, conta com US$ 471 bilhões de ativos sob gestão. A gestora está disponibilizando uma fatia de um de seus fundos de private equity no blockchain público,[8] na última tentativa de expandir o acesso de investidores individuais a veículos de investimento privado. O resultado buscado é democratizar investimentos, permitindo alocações menores de capital em veículos e estratégias que antes eram restritas à grandes investidores institucionais.
Já a Apex Group Ltd., estabelecido nas Bermudas em 2003, é um provedor global de serviços financeiros. Com mais de 80 escritórios em 40 países em todo o mundo e mais de 10.000 funcionários no fechamento das aquisições anunciadas, o Apex oferece uma ampla gama de serviços para gestores de ativos, instituições financeiras, clientes privados e escritórios familiares. Atualmente, conta com mais de US$ 3 trilhões de ativos sob administração. A administradora global fará uso de uma tecnologia patenteada de blockchain e o sistema operacional de dados da Inveniam[9] para fornecer dados de ativos privados de alto funcionamento e credenciados digitalmente para avaliações mais consistentes e totalmente auditáveis. Isso muda fundamentalmente como os ativos são precificados e permite uma marcação a mercado com maior recorrência e qualidade.
*Marson Cunha é o managing director da Inveniam, Brasil e Peru Lead. Profissional de finanças com vasta experiência na liderança e planejamento de finanças estruturadas, fusões e aquisições e private equity real estate. É alumnus do MBA de Finanças no Insper, turma de 2009.
[1] Característica da capacidade de diversos sistemas e organizações trabalhem em conjunto (interoperar) de modo a garantir que pessoas, organizações e sistemas tecnológicos interajam para a troca de informações de maneira eficaz e eficiente.
[2]] Banco de dados distribuído entre múltiplos dispositivos conectados (nós) numa rede descentralizada, onde são armazenados registros de eventos (ex.: transações financeiras) com uma estampa de tempo e com uma assinatura digital. O objetivo é estabelecer confiança e segurança por meio da concordância entre múltiplos membros sobre os registros armazenados.
[3] The early mathematical manuscripts of Leibniz. Translated from the Latin texts published by Carl Immanuel Gerhardt with critical and historical notes by J. M. Child. Chicago-London: The Open Court Publishing Co., 1920
[4] Repositório de armazenagem de todos os dados estruturados e não estruturados.
[5] Processo de tokenização, pelo qual um ativo físico ou produtos financeiros tradicionais são transformados em ativos digitais.
[6] Bases de dados centralizadas são controladas ou geridas por uma única parte e sua continuidade é geralmente dependente desta parte. Isso traz um risco de continuidade e imparcialidade (dependendo da parte responsável para o segundo ponto).
[7] https://thedefireport.substack.com/p/defi-thesis-private-markets-pt-1
[8]] Existem dois tipos de blockchain: público e privado. A blockchain pública é conhecida como permissionless, enquanto a privada é permissioned. Existem aplicabilidades distintas e preferências de diferentes partes que advogam e reconhecem prós e contras de cada um dos tipos.