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“Para resolver os problemas de saúde urbana é preciso pensar fora da caixa”

O médico Paulo Saldiva diz que a medicina tem de considerar outros saberes e a realidade de cada local na hora de atender os mais necessitados

O médico Paulo Saldiva diz que a medicina tem de considerar outros saberes e a realidade de cada território na hora de atender os mais necessitados

 

Professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o médico Paulo Saldiva já perdeu a conta do número de vezes em que, durante as aulas, falou a seus alunos sobre como ocorre o infarto do miocárdio. “Eu perco um tempão explicando aos estudantes sobre colesterol, inflamação, alterações genéticas e outras coisas, mas tudo isso responde por apenas 37% do problema. O resto está numa outra caixa, que diz respeito às condições de vida do morador de um determinado território”, comenta Saldiva, coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

Saber pensar “fora da caixa”, utilizando outras áreas de conhecimento, é fundamental na busca de soluções para os principais problemas de saúde pública, defende o professor. Ele ressalta a importância também do que chama de “política pública de precisão”. Da mesma forma que existe medicina de precisão — uma abordagem para o tratamento e a prevenção de doenças que leva em conta a variabilidade genética, o ambiente, o estilo de vida e outras características individuais do paciente —, é preciso desenhar políticas públicas voltadas para a realidade social e econômica de cada território.

Foi isso que, no fim das contas, o levou a trabalhar no Laboratório. Um lugar, segundo o médico, com uma fluidez de conhecimento e saberes graças ao perfil diversificado de pessoas, que incluem desde profissionais experientes em gestão até lideranças comunitárias que vivem o cotidiano das ruas. “Eu gosto dessa fluidez, dessa ausência de paredes”, afirma Saldiva na entrevista a seguir.

 

O sr. está no Arq.Futuro há cerca de um ano e meio. Qual foi a sua motivação para se unir ao Laboratório?

A motivação foi a seguinte: quando analisamos a heterogeneidade dos desfechos de saúde, como em pacientes com doenças cardiovasculares, covid-19 ou outros problemas médicos, observamos que eles são altamente influenciados pelas características do território onde as pessoas vivem. Isso inclui desde determinantes do ambiente físico, como temperatura, pluviosidade e densidade de árvores, até dados como disponibilidade de unidades básicas de saúde, quantidade de creches e índice de evasão escolar. Cada uma dessas coisas são indicadores indiretos de uma realidade que é particular a cada morador de São Paulo. Vale dizer que, na saúde humana, temos o que se chama de medicina de precisão. Para lidar com um câncer, por exemplo, não há um tratamento homogêneo que sirva para todos os pacientes. É preciso analisar as características moleculares das células tumorais, levar em conta a idade da pessoa, e então definir o melhor tratamento. O mesmo ocorre com a saúde urbana. Não dá para aplicar a mesma solução para toda a cidade. Aquilo que serve para o centro de São Paulo não serve para o Itaim Paulista. Os 96 distritos de São Paulo são bastante heterogêneos. Em alguns lugares, existe a gestão do Estado oficial. Em outros, há um modelo de gestão paralela, com forte atuação do crime organizado. Nessas condições, é preciso aplicar um urbanismo de precisão, que leve em conta as características locais dos agregados de pequenos pedaços da cidade. Em São Paulo, você precisa, por exemplo, enxergar Paraisópolis separadamente do Morumbi. Porque a realidade de uma pessoa no Morumbi não é igual à de alguém que mora em Paraisópolis. Não dá para simplesmente usar uma média, porque seria como usar alguém com a cabeça na geladeira e o pé no fogo. Na média, está legal, só que não está bom nem para quem está na geladeira nem para quem está no fogo. Além disso, a saúde, sozinha, não consegue desenhar soluções para os problemas que existem nesses microterritórios. Para isso, pode contar com a ajuda dos urbanistas.

 

De que maneira o Laboratório pode contribuir nesse sentido?

Este é o único lugar que conheço onde há lideranças comunitárias entre seus pesquisadores. Isso foi importante, por exemplo, para desenhar soluções exitosas durante a pandemia da covid-19, já que essas lideranças conhecem bem a realidade das comunidades que mais precisaram de ajuda no auge da crise. O Laboratório tem uma capacidade de pensar fora da caixa e buscar conhecimento sem uma regra predefinida. Quando necessita do saber de uma determinada área, atua just in time — não há um repertório fixo de soluções para usar sempre que precisar. Isso permite desenhar novas soluções. O Laboratório tem uma fluidez de conhecimento e saberes que é possível graças ao perfil diversificado de pessoas, que incluem desde especialistas em gestão até pessoas que vivem o cotidiano das ruas. Eu gosto dessa fluidez, dessa ausência de paredes. O Laboratório não é como o prisma de Newton, que decompõe a luz branca em diferentes cores. Está mais para um antiprisma, que pega todas as facetas e colorações de um território e as compõe num mosaico em que vários saberes se fundem.

Outra coisa que vejo no Laboratório, e no Insper como um todo, é a capacidade de transformar conhecimento em políticas públicas práticas. Da minha parte, vim para o Arq.Futuro buscar um espaço de criação livre, onde a saúde possa contribuir de alguma forma, uma vez que ela permeia praticamente todas as dimensões do viver urbano. A saúde é afetada pela moradia, pela estrutura das casas, pela cobertura vegetal, pelo transporte, pelo tempo que o indivíduo trabalha, pelas relações afetivas e sociais… Colocar tudo isso para conversar não é fácil. É um desafio para todas as universidades, mas vejo o Laboratório como um espaço promissor para isso.

 

O sr. coordena o Núcleo de Saúde Urbana. Qual é o objetivo desse Núcleo e o que já foi feito?

Primeiro, preciso dizer que ainda estou me habituando a essa nova cultura. É uma espécie de Tinder acadêmico: estou procurando entender o que as pessoas pensam, e vice-versa. Mas uma coisa que estou tentando fazer é mostrar que a saúde é afetada por praticamente todas as políticas. Por exemplo, todo mundo sabe intuitivamente que saneamento tem impacto na saúde. Mas quanto? Área verde também influi na saúde, mas como se mede isso? Como a vida das pessoas muda em função de várias dimensões? São questões que pretendemos ajudar a responder no Núcleo de Saúde Urbana.

Já estamos desenvolvendo alguns estudos no tecido urbano de São Paulo. Por exemplo, estamos medindo a distribuição de diabetes mal controlado na cidade. Temos como medir isso pela lesão renal e pela lesão da retina em pessoas que viveram em algum território na cidade. Como a história de vida dessas pessoas fez com que elas tivessem maior ou menor chance de ter diabetes, já que a genética não explica tudo? Existem componentes relacionados às circunstâncias de vida das pessoas. Em síntese, estamos elaborando a cartografia do diabetes descompensado, geocodificando tudo em microescala. Já estamos terminando esse trabalho. Estamos realizando também a cartografia da poluição do ar acumulada no pulmão das pessoas, observando quanto isso depende dos hábitos, do transporte e de outros fatores. Outro trabalho é a cartografia do câncer não diagnosticado. Os dados de óbito na cidade mostram que cerca de 30% das pessoas que morrem de câncer não recebem o diagnóstico em vida. Ou seja, elas morrem não com câncer, mas pelo câncer. Isso pode ocorrer por questões culturais, por falta de conscientização, por falta de acesso a uma unidade básica de saúde etc. Estamos fazendo também a cartografia do esquecimento, envolvendo a doença de Alzheimer. E agora começamos um projeto extremamente ousado, que é a cartografia das relações afetivas e sociais, a partir das histórias contadas pelas famílias sobre o que faltou ou o que havia de bom no lugar em que uma pessoa vivia e morreu.

 

O sr. destacaria mais algum trabalho do Núcleo?

Apesar do relativamente pouco tempo de existência, o Núcleo já produz ciência. A revista Nature aceitou recentemente para publicação um artigo sobre clima e vulnerabilidade na saúde humana em diferentes regiões do Brasil. Mas um dos artigos que mais me deram prazer de fazer em toda a minha vida será publicado pela Cities Health Journal. Trata-se de um artigo sobre mudanças em São Paulo induzidas pela covid-19. Tivemos a ideia de estudar não a cidade como um todo, mas as comunidades periféricas. E como as mulheres vinham tendo um papel relevante na pandemia, resolvemos conversar com elas. Fizemos então um vídeo em que as mulheres puderam relatar suas histórias. Elas contaram, por exemplo, como as cestas básicas que recebiam viravam “quentinhas” e como isso chegava às casas de pessoas que não podiam andar. Relataram como fizeram uma fábrica de máscaras para distribuir às pessoas que não tinham condições de comprar a proteção facial. Esse é o primeiro artigo científico que conheço que virá acompanhado de um videocast. E essa possibilidade de fazer um vídeo em que as lideranças das comunidades puderam contar uma história real dentro de um enquadramento acadêmico só surgiu por eu estar dentro de um lugar como o Laboratório.

 

Em uma entrevista concedida há cerca de um ano, o sr. afirmou que, para resolver os grandes problemas de saúde, não basta aplicar a medicina — é preciso lançar mão de um conhecimento bem mais amplo. Que tipo de conhecimento é necessário para resolver os principais problemas de saúde pública?

Veja o caso da covid, que ainda está fresca na memória de todos. É o mesmo vírus, a mesma cidade, o mesmo prefeito, a mesma política de saúde. Só que o risco de alguém pegar covid e, principalmente, de morrer de covid chegou a variar em cerca de 12 vezes dentro da cidade de São Paulo. Ninguém vai dizer que um vírus diferente se espalhou pela periferia e causou mais mortes ali. Geralmente, o risco de pegar o vírus aumenta em função de marcadores como, por exemplo, o código de endereçamento postal. O CEP é uma variável que sintetiza muitas coisas: a renda média, a educação, o tipo de habitação, o transporte, se o ônibus circula mais cheio ou mais vazio.

Eu moro no Bixiga e, dias atrás, estava na fila do banco. Havia um angolano abrindo a conta e ele informou seu endereço ao funcionário: deu o nome da rua, o número da casa, o número do quarto e o número da cama. Essa é uma condição que deve fazer diferença no risco de pegar covid. Há também o acesso aos exames, os aspectos culturais e até mesmo a disponibilidade de tempo que o indivíduo tem para cuidar dele próprio. Eu cansei de falar com taxista e motorista de Uber que tinham covid e continuavam trabalhando. Esse pessoal autônomo posterga ao máximo e só vai procurar um médico quando a doença já está em estágio avançado.

Na faculdade de medicina, eu ensino sobre mecanismos de adoecimento. Doença é uma coisa muito simples: ou faz buraco, ou faz bola ou entope. O infarto do miocárdio, por exemplo, é um entupimento. Eu perco um tempão explicando aos alunos sobre colesterol, inflamação, alterações genéticas e outras coisas, mas tudo isso responde por apenas 37% do problema. O resto está num numa outra caixa, que diz respeito às condições de vida do morador de um determinado território.

 

O sr. comentou que, assim como existe medicina de precisão, é necessário haver também políticas públicas de precisão. Qual é a dificuldade de fazer isso na prática?

O problema, quando se fala em eficiência de políticas públicas, que é uma das coisas mais difíceis, não é medir o efeito. É preciso ter um aspecto contrafactual. Quer dizer, áreas com mesmas características que não receberam um certo remédio. Na medicina, usamos a droga e um placebo, e o paciente não sabe o que está tomando. Em políticas públicas, temos que comparar o efeito de uma intervenção em duas regiões com o mesmo indicador: uma em que você implantou a política e outra em que não implantou essa política. Na prática, isso é muito difícil de fazer em alguns casos. Por exemplo, quando a Secretaria Municipal ou Estadual da Educação muda o currículo, muda para todas as escolas ao mesmo tempo.

Outro problema é que a maior parte dos trabalhos de saúde que avaliam políticas públicas são diagnósticos. O Brasil é o quinto ou sexto país que mais publica artigos em políticas públicas no mundo. Mas a absoluta maioria dos estudos é sobre políticas públicas, e não para produzir políticas públicas. Por exemplo, o artigo diz: “Temos que reduzir a mortalidade” ou “Temos que ampliar o acesso à medicação para infarto”. Mas não diz como fazer isso.

 

Quando o sr. diz que, para resolver os problemas de saúde, o conhecimento não pode ser compartimentalizado, cada um no seu escaninho, isso significa que o médico precisa trabalhar com profissionais de várias áreas?

Com saberes de outras áreas. Quer um exemplo? O HC é um hospital de referência em traumas graves. Não são todos os hospitais que têm um neurocirurgião de emergência, ou um cirurgião vascular de emergência. O HC então recebe pacientes de todos os lugares. Com o aumento da demanda, o hospital precisou expandir os quadros de cirurgia do trauma, de neurocirurgia, de anestesia e de UTI. Isso é mais ou menos a mesma coisa que, frente a uma epidemia de câncer do pulmão pelo tabagismo, nós aumentássemos as vagas em oncologia, pneumologia e cirurgia torácica. Quer dizer, isso é importante? É, mas não o suficiente. Outro exemplo: não há como discutir uma solução para os acidentes de trânsito sem levar em conta as relações trabalhistas do motofretista, que não é empregado nem do aplicativo, nem do restaurante, nem do cliente que pediu a comida. Ou seja, existem problemas fora da caixa da saúde, mas que são fundamentais para reduzir o risco, em vez de ficar remendando gente estropiada. O que é necessário fazer? Usar uma ferramenta que precifique os acidentes, e há metodologias na saúde muito boas para isso. Para calcular objetivamente o custo de reabilitar um indivíduo amputado, podemos usar uma moeda chamada Daly, ou disability-adjusted life years (“anos de vida ajustado por incapacidade”), que indica quanto de produtividade o indivíduo perde por ter ficado doente ou ter morrido precocemente. Usando esse cálculo, você vê que o custo de manter uma pessoa amputada vai muito além do preço da prótese e da reabilitação. É um custo que recai sobre a família e sobre toda a sociedade, pois a pessoa vai receber uma pensão por invalidez do sistema previdenciário. Enfim, tudo isso são coisas que mostram que, para entender a saúde das pessoas nas cidades, você precisa entender a cidade, sua morfologia e sua funcionalidade. E é isso que o Arq.Futuro permite a um médico: exercitar outros saberes que estão fora da caixa da medicina. E, principalmente, não só fazer diagnósticos, mas propor a terapêutica e desenvolver políticas públicas efetivas.

 

Estamos em um período de transição de governo. Na área de saúde, quais deveriam ser as prioridades do novo governo que assumirá em janeiro de 2023?

Para mim, é a valorização do Sistema Único de Saúde, o SUS. E das medidas associadas básicas, como o Programa Nacional de Imunização. Observamos hoje uma queda da taxa vacinal, o que traz o risco da volta de doenças importantes, como o sarampo. Outra prioridade é acelerar a produção de insumos — por exemplo, a vacina para dengue. Nós temos uma vacina que é a melhor do mundo, desenvolvida pelo Instituto Butantan. A Sanofi vai produzir a vacina aqui, mas o estudo da fase 3 é muito caro. Mas se há algum país que precisa fazer vacina para dengue e outras arboviroses é o Brasil. O número de caso vem aumentando, então é preciso dar uma força para os sistemas de vacinação e gerar tecnologia local para isso. E precisamos também estabelecer um diálogo da saúde com outras áreas. Criar uma plataforma de interface que aborde soluções de saúde que estão fora da caixa de saúde. Esse seria o grande desafio na área da saúde. É algo que não vai se resolver em quatro anos. Talvez demore uns 20 anos, mas é preciso começar e dar continuidade. Aliás, um dos grandes problemas no Brasil é a descontinuidade de políticas públicas. Parece que os dirigentes políticos sofrem de Alzheimer: esquecem o que foi feito de bom na gestão anterior ou mesmo o que prometeram durante a campanha. Os indicadores de saúde melhoraram muito no Brasil nos últimos 30 anos, mas ainda há problemas importantes que precisam ser enfrentados. A mortalidade materna e a infantil ainda são altas no país. É preciso definir as áreas prioritárias e fazer políticas públicas de precisão. E para isso é preciso entender o problema como um todo, e não só dentro de uma caixa da saúde.

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