Não se trata de presencial ou remoto. As empresas caminham para um mundo sem cargos definidos, em que cada profissional tem sua combinação própria de habilidades, interesses e funções
David Cohen
Nos últimos dois anos, os gestores têm sido bombardeados com debates e análises sobre o trabalho híbrido — no sentido de ter um corpo de funcionários que ora fazem o serviço em casa, ora comparecem ao escritório ou à fábrica. Compreende-se: foi uma discussão imposta pela pandemia da covid-19. Há, porém, um outro tipo de definição para o termo, com um impacto talvez mais profundo sobre o mundo corporativo: o trabalho que mistura funções e habilidades que costumavam andar completamente separadas.
Esta definição de trabalho híbrido não é assim tão nova. Ela foi exposta em 2015 num estudo da Burning Glass Technologies, uma empresa americana de análise do mercado de trabalho. Eles notaram que, graças ao avanço da tecnologia, mais e mais cargos vinham combinando habilidades que antes eram compartimentalizadas.
Um exemplo é a análise de dados. Há pouco tempo, era preciso ter um alto grau de especialização para extrair informações úteis da montanha de dados que uma empresa costuma recolher. O advento de ferramentas como o programa Google Analytics tornou possível que os próprios gestores desempenhassem algumas das funções do pessoal técnico.
Há muitos outros exemplos. Um profissional de marketing precisa ter, hoje em dia, habilidades de análise de dados para formular uma campanha; programadores bem-sucedidos precisam ter uma boa noção de design; a força de vendas precisa cada vez mais interagir com seus clientes usando ferramentas de comunicação, e não raro exerce a função de atendimento ao cliente no pós-venda.
“Se a gente entende que o mundo do trabalho está mudando, a conclusão é que uma série de profissões vai deixar de existir”, diz Aloisio Buoro, professor de liderança e gestão de RH do Insper. Não é que as tarefas realizadas pelos profissionais deixem de ser feitas; elas se distribuem, e outros profissionais as assumem, em geral com o auxílio de softwares, robôs, inteligência artificial.
“Vai continuar a haver especialistas, em alguns locais e em algumas áreas”, afirma Buoro. “Mas uma grande parte das profissões irá requerer diversidade.”
A diversidade a que o professor se refere não é exatamente a que costumamos pensar: de gênero, de credo, de etnia, de região. É isso, também, mas principalmente na medida em que essas diferenças acarretam uma diversidade de habilidades. “O aumento da diversidade é uma das esferas que determinam a mudança do mundo do trabalho”, afirma Buoro.
Não se deve confundir o trabalho híbrido — pessoas cujas habilidades não se encaixam direito no organograma da empresa — com o acúmulo de funções. Este é bastante comum em períodos de crise, quando a empresa reduz sua folha pessoal, mas mantém o volume de trabalho, resultando em excesso de carga e muito mais estresse.
O trabalho híbrido, ao contrário, ocorre justamente porque a organização muda de cara, em resposta às demandas e às oportunidades do ambiente a sua volta. Nesse mundo, os desafios vão surgindo e é necessário formar equipes para responder a eles. Isso envolve trabalho em equipes descentralizadas, formadas pela combinação de habilidades peculiares a cada colaborador — habilidades que evoluem ao longo do tempo pela experiência e pelo aprendizado contínuo.
“Todo mundo tende a ser um pouco assim no futuro”, diz Buoro. “Você a priori vai precisar ter habilidades diversas.”
Como afirma Betty Thompson, chefe de pessoal na consultoria Booz Allen Hamilton, em artigo na revista Fast Company, o trabalho híbrido se ancora “nos interesses, paixões e conhecimentos dos indivíduos, permitindo que eles se movimentem de forma fluida pela organização, para onde são mais necessários”.
De certa forma, o trabalho híbrido é a exata aplicação do conceito de adhocracia, do teórico canadense Henry Mintzberg — pela perspectiva dos trabalhadores. Mintzberg divide as empresas em cinco tipos:
1) a organização empreendedora, em geral uma startup ou pequena empresa, em que o dono e um pequeno grupo de diretores controlam tudo;
2) a organização máquina, ou burocrática, em que o trabalho é fortemente padronizado, com rotinas e procedimentos bem definidos e uma estrutura de controle vertical;
3) a organização profissional, na qual trabalhadores altamente especializados controlam seu próprio trabalho (um escritório de advocacia, por exemplo);
4) a organização diversificada, composta de várias unidades de negócios;
5) a adhocracia, ou organização inovadora, em que as decisões são tomadas ad hoc (“para esse fim” em latim), ou seja, conforme a ocasião.
A adhocracia é praticamente o oposto da burocracia. Ela funciona por projetos, reunindo os profissionais necessários para aquela tarefa à mão. Quando o projeto termina, a equipe é dissolvida e os talentos que a compunham são alocados em novos projetos.
A adhocracia não deve ser considerada o estágio mais avançado da organização. Cada tipo de organização tem suas vantagens e desvantagens. Uma burocracia é mais adequada para garantir um alto controle de qualidade, por exemplo. Uma adhocracia, embora mais inovadora, apresenta uma dificuldade extra de administrar egos na formação e dissolução das equipes; e pode haver mais conflitos manifestos em uma organização em que a estrutura de poder não é tão clara e estável.
Num mundo que muda com crescente rapidez, no entanto, a adhocracia se apresenta como uma solução mais adequada. “É um modelo de resposta rápida ao que está acontecendo no mundo”, aponta Buoro. “Não é tão boa para planejamento de longo prazo, mas é superior em ambientes de incerteza, ou de mudanças súbitas, porque se adapta com mais facilidade.”
Ora, o trabalho híbrido é justamente o que fazem (pelo menos idealmente) os profissionais de uma adhocracia. Como escreveu Betty Thompson, da Booz Allen, “conforme os empregados navegam o complexo ecossistema do trabalho, eles podem descobrir que suas habilidades e interesses mudam. O que lhes trouxe alegria há dois anos pode ser agora uma fonte de frustração. Para criar um ambiente de trabalho sustentável, que extraia o melhor dos empregados, estimule excelência, inovação e criatividade e atraia a próxima geração de talentos, é preciso estar alerta para estruturas de trabalho que desmontem décadas de tradição”.
O problema é que a empresa ad hoc é quase uma não-empresa. No limite, seus profissionais poderiam ser recrutados no mercado, para cada novo projeto. É o que faz uma produtora de filmes, por exemplo. Junta-se uma equipe para um projeto e, no próximo, a equipe pode ser totalmente diferente.
“O trabalhador autônomo, que se junta a uma organização temporariamente para realizar um projeto, não é um fenômeno inteiramente novo”, reconhece Buoro. “Mas o que estamos falando agora é que todas as empresas vão ser assim, pelo menos em certa medida.”
As organizações enfrentarão um desafio extra para manter seus talentos. E as pessoas terão que se dispor a um aprendizado contínuo, construindo uma carreira que é mais ou menos uma marca pessoal.
Você pode encarar isso como uma deterioração das relações trabalhistas estáveis, ou como um futuro de grandes oportunidades para buscar satisfação e desenvolvimento pessoal no trabalho. Provavelmente, será as duas coisas.