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“A saúde mental das pessoas negras está intrinsecamente ligada ao racismo”

Para o psiquiatra Frederico Félix, desigualdade e discriminação racial estão por trás da maior incidência entre negros de transtornos como a depressão

Para o psiquiatra Frederico Félix, desigualdade e discriminação racial estão por trás da maior incidência entre negros de transtornos como a depressão

 

Bárbara Nór

 

O Brasil é um dos países com maiores índices de transtornos mentais no mundo. Em um estudo de 2021 com a participação da Universidade de São Paulo, por exemplo, o Brasil liderava em casos de ansiedade e depressão em uma lista com 11 países, incluindo os Estados Unidos e a China. Mas, se todos podem sofrer de um transtorno, certas populações são ainda mais vulneráveis.

Segundo dados do Ministério da Saúde, o índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior que entre os brancos. E, nos últimos anos, o risco de suicídio ficou estável entre os brancos, mas aumentou 12% para a população negra. Além disso, jovens negros chegam a ter 45% mais chances de desenvolver depressão que os brancos.

Essa diferença, para Frederico Félix, psiquiatra em São Paulo, vem de uma série de desigualdade e violência contra as pessoas negras. Do menor acesso a tratamentos e a diagnósticos à convivência diária com a discriminação, a população negra acaba pagando essa conta também com a própria saúde.

“A questão da saúde mental das pessoas negras está intrinsecamente ligada ao racismo”, afirma Félix. “É uma mácula que implanta no negro um sentimento de inferioridade, de incapacidade e de que ele não vai conseguir se realizar.” Leia mais na entrevista a seguir.

Psiquiatra Frederico Félix
O psiquiatra Frederico Félix

 

Quais são as especificidades da população negra no que diz respeito à saúde mental? Em comparação com outros pacientes, o senhor nota diferenças em relação aos transtornos que ela acaba desenvolvendo?

Com certeza, existem muitas diferenças. Alguns transtornos são bastante mais incidentes no meio da população negra do que na população não negra. E isso é refletido também em outros parâmetros, como poder aquisitivo, escolaridade e IDH. São fatores que fazem a gente pensar em geografia, mas, na realidade, têm tudo a ver com saúde e com o nível de desenvolvimento. Infelizmente, isso é um demonstrativo da desigualdade que essa população sofre.

 

Que tipo de transtorno costuma ser mais comum entre as pessoas negras? E por que isso acontece?

Eu diria que, entre os transtornos mais comuns, está a depressão. Existe um ditado de que dinheiro não traz felicidade. De fato, ele não traz felicidade, mas a falta de dinheiro traz, sim, muita infelicidade. Como temos uma população negra com uma renda per capta menor, temos uma incidência maior de transtornos relacionados com algum grau de infelicidade. Além disso, o acesso ao atendimento de qualidade também não é igual para a população negra, então ela também pode sofrer por mais tempo com esse tipo de transtorno.

 

Além da desigualdade econômica e de acesso, o fato de sofrer racismo também traz impactos para a saúde mental?

Sim. Recentemente, recebi um questionamento de uma seguidora no Instagram [@dr.fredericofelix ] e ela perguntava justamente sobre como uma questão tão pungente como o racismo nunca é abordada em consultório psiquiátrico. Quando uma pessoa negra vai a um psiquiatra ou a um psicólogo, essas questões não são abordadas. E, muitas vezes, isso ocorre porque quem está conduzindo um tratamento é uma pessoa não negra e, para ela, essa questão não é tão pungente. Ela acaba não considerando como um fator que abala ou demarca a existência da forma como acontece para as pessoas negras. E nós, como população negra, sabemos muito bem o quanto isso pode afetar nossa qualidade de vida.

 

Como o racismo afeta a qualidade de vida?

Ele vai desde um tipo específico de bullying, por assim dizer, já na infância, até outros tipos de discriminação que a pessoa vai sofrendo ao longo da vida. Isso tudo acaba fazendo com que a nossa população seja preterida em determinados assuntos e vai se refletir na maneira como essas pessoas se enxergam diante da vida: como menos capazes. Elas se perguntam: “Será que eles estão certos e mereço menos determinadas conquistas e vitórias? Ganho menos, por que não fui promovido, por que fui mandado embora? Por que a polícia vive me parando mesmo eu nunca tendo feito nada que pareça algum tipo de contravenção, mas pelo simples fato de ser negro?”. Isso vai trazer reflexos em como essa pessoa vai se enxergar e se organizar mentalmente.

 

Qual é o desafio em tratar do racismo no consultório?

Essa é uma questão que transcende o consultório. O que torna tão difícil estabelecermos metas para tratamento talvez seja justamente o fato de muitos acreditarem que não somos um país racista, que não existe essa diferenciação. Você acaba colocando o peso disso sobre a vítima. “Você não consegue algo por alguma falha sua, nosso país é multirracial, é um país de grande tolerância, de população miscigenada, país do futebol, do samba do carnaval…”. Então, talvez, o passo mais importante para que a gente consiga fazer um tratamento de qualidade é admitir que esse problema existe — e que pessoas negras têm especificidades para tratamento diferentes das de pessoas brancas.

 

Falta mais preparo para os profissionais de saúde mental?

Infelizmente, sim, falta preparo. Por mais que teoria que se saiba, muitos não estão preparados para abordar esse tema. E por ser uma coisa tão feia, é difícil de ser encarado, é mais fácil velar. E, quando se deparam com racismo, não sabem o que fazer. Leva para a polícia? Para o psicólogo? O perpetrador vai ser punido de que forma? Por mais simpatia que eu tenha, por exemplo, com o sexo feminino, jamais poderei dizer a uma paciente que sei como é estar grávida. Da mesma forma, uma pessoa que não seja negra e que não tenha experimentado isso na pele também nunca vai saber como é. Isso não incapacita para tratar, mas existe um limite de até onde eu consigo compreender tal situação.

 

No Brasil, a população negra jovem também é uma das mais afetadas pela violência e pobreza. Que impactos isso pode ter para a inserção desses jovens, no futuro, na vida profissional?

O que os estudos mostram é que você vai ter pessoas que são mais fragilizadas, inseguras e com uma tendência menor a se arriscar, no sentido de ousar, ter metas, aspirações mais elevadas. Desde a infância alguma coisa já é embutida nelas no sentido de que o lugar delas não é a presidência da empresa. Uma das partes mais nefastas do racismo vem naquela frase: “Mas o que mais você quer? Você já está empregado”. Por isso as ações afirmativas têm um papel fundamental. Quem acha controverso está baseado em argumentos que não levam em consideração toda a história e o peso do que a população negra sofreu ao longo de mais de 400 anos no Brasil. Falam “estão roubando minha vaga, não vou pagar por algo que meu avô fez, a culpa não é minha”. Aí vem a palavra meritocracia, mas como falar disso se alguém desde a infância vê seus pais e avós lutando muito mais e obtendo um resultado menor do que pessoas não negras? Portanto, o impacto é muito nítido para as populações de jovens negros. Outro fator para as cotas é que representatividade é fundamental e isso também traz impacto na saúde mental. Quantas vezes no consultório já não fui parabenizado por pessoas negras que nem sabiam que existia um psiquiatra negro? Alguns até se emocionam porque não acreditavam que fosse possível. Será que os negros não gostam de médicos? Será que preferimos não ser psiquiatras, presidentes de empresas?

 

 

 

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