O Auxílio Brasil, novo programa social do governo, é mais generoso com os pobres, mas podia ter avançado mais, afirma o professor Ricardo Paes de Barros
No início de novembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro editou o decreto que regulamenta o Auxílio Brasil, programa criado para substituir o Bolsa Família, lançado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003. Pelo decreto, passaram a ser consideradas como famílias em situação de extrema pobreza aquelas com renda per capita de até 100 reais (antes, eram 89 reais), e em situação de pobreza aquelas com renda per capita de até 200 reais (até então, 178 reais).
Nesse sentido, o Auxílio Brasil é um programa mais generoso do que o Bolsa Família, o que é mais do que bem-vindo, mas o governo perdeu a oportunidade de fazer mais, afirma o economista Ricardo Paes de Barros, professor do Insper e um dos maiores especialistas em políticas sociais do país. Um dos arquitetos do Bolsa Família, Paes de Barros defende a ideia de pagar um valor maior de benefício a um número menor de pessoas. Para isso, é preciso identificar quem são realmente os mais pobres, aproveitando a capilaridade dos Centros de Referência em Assistência Social, os CRAS, que têm cerca de 250 mil agentes sociais espalhados pelo país. “É preciso organizar a fila”, diz Paes de Barros, que compara o programa de transferência de renda com o programa de imunização contra a covid-19. “Vacinamos primeiro os idosos, antes de cobrir toda a população. Não adianta querer dar meia dose para todo mundo, porque assim não imunizamos ninguém.”
O Auxílio Brasil, segundo o professor, falha também ao não induzir o esforço dos beneficiários do programa. Por exemplo, jovens com 18 a 21 anos que cursam o Ensino Médio recebem um benefício. Isso é ótimo para incentivá-los a frequentar a escola. O problema é que, se o aluno abandonar o curso, perde o benefício. Se concluir o concurso, também perde. “Se o benefício é só para quem frequenta, você trata igualmente quem se esforçou para concluir e quem abandonou o curso”, diz Paes de Barros. “Não há um incentivo.”
Graduado em engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), Paes de Barros tem mestrado em matemática pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e doutorado em economia pela Universidade de Chicago. Possui pós-doutorado pelo Centro de Pesquisa em Economia da Universidade de Chicago e pelo Centro de Crescimento Econômico da Universidade Yale. Integrou o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) por mais de 30 anos. Em 2015, deixou o serviço público e assumiu a Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper. No fim do ano passado, foi apontado como um dos 100 acadêmicos mais influentes do mundo na área de políticas públicas, segundo uma pesquisa realizada pela Apolitical, plataforma global de insights para governos.
Na entrevista a seguir, PB, como é conhecido, fala sobre alguns dos temas recorrentes em suas pesquisas — desigualdade, pobreza e educação — e aponta caminhos para a superação de velhos problemas que afligem gerações de brasileiros.
No ano passado, o senhor e outros pesquisadores publicaram um estudo mostrando que a desigualdade no Brasil diminuiu no período de 2002 a 2017. Até que ponto a pandemia pode ter mudado esse cenário?
Não sei exatamente o que o IBGE andou publicando nas últimas semanas, mas sabemos que de 2015 ou 2016 em diante a desigualdade voltou a crescer no Brasil. Nada tão gigantesco, mas ela começou a subir depois de quase 15 anos de declínio sistemático. Os dados que temos durante a pandemia mostram que, mesmo sem considerar o Auxílio Emergencial, a desigualdade não subiu tanto. Com o Auxílio Emergencial, a desigualdade caiu. Isso porque o Auxílio foi algo absolutamente gigantesco. A pobreza diminuiu, mas na verdade a crise da pandemia foi muito mais na saúde e na educação do que do ponto de vista econômico. As perdas sociais são maiores do que na economia. As rendas das famílias não caíram tanto assim e foram mais do que compensadas pelo Auxílio Emergencial.
Qual é a sua avaliação do programa Auxílio Brasil, lançado pelo governo como um substituto do Bolsa Família? O novo programa é um “Bolsa Família melhorado” ou piorou em alguns aspectos?
Dá para dizer que perdemos uma grande oportunidade de melhorar o Bolsa Família. O Bolsa Família precisava de três coisas. A primeira é que ele podia ser um programa mais generoso, ou seja, a gente podia aumentar o gasto com o Bolsa Família. Isso, em certo sentido, o Auxílio Brasil faz. Ele aumenta o valor dos benefícios, sobe a linha de pobreza e de extrema pobreza. É um programa decididamente montado para ser mais generoso do que o Bolsa Família, o que é mais do que bem-vindo. A segunda coisa é que o Bolsa Família tinha se tornado crescentemente menos focalizado. O Auxílio Emergencial foi o cúmulo da desfocalização, com 30% dos benefícios indo para os 20% mais pobres. É como espalhar aleatoriamente os benefícios. O Auxílio Brasil não faz nada a respeito disso. Ele não caminha nem 1 milímetro na direção de usar mais intensamente a capilaridade que a assistência social no Brasil já tem. E a terceira coisa muito importante no Bolsa Família seria melhorar o sistema de incentivos. Na hora que você faz todas essas transferências, obviamente está gerando incentivos e desincentivos, e isso é uma coisa que precisávamos melhorar no Bolsa Família.
O que poderia ser melhorado nesse aspecto de incentivos?
O benefício de superação da pobreza é péssimo do ponto de vista de incentivos porque diz o seguinte: para a superação da extrema pobreza, vou complementar sua renda para você chegar a 100 reais por mês por pessoa. Quando você, por esforço próprio, diminui a distância em relação a 100 reais, o que acontece? Vou pegar o seu esforço e dizer: obrigado. Tudo o que você ganhar até 100 reais fica comigo. Isso é igual a um imposto de 100%. Sua renda é de 100 reais independentemente do esforço que fizer. Não há um incentivo. Por exemplo, ele dá um benefício a quem tem entre 18 e 21 anos e está frequentando o Ensino Médio, o que é uma ótima ideia. Quando o aluno concluir o curso, ele perde o benefício. O benefício deveria ser tanto para quem frequenta quanto para quem concluiu, porque assim você incentiva o estudante a frequentar e concluir o curso. Se o benefício é só para quem frequenta, você trata igualmente quem se esforçou para concluir e quem que abandonou o curso. Os dois perdem o benefício. Então, não parece uma coisa muito bem pensada em termos de incentivo.
Quando o senhor diz que o Auxílio Brasil não avançou em relação ao Bolsa Família no que diz respeito à focalização, sua avaliação é que o programa não está chegando às pessoas que realmente precisam de ajuda?
Veja o programa de imunização, que é muito bem-sucedido no Brasil. Queremos vacinar toda a população, mas não temos vacinas ou capacidade para vacinar todo mundo simultaneamente. O que fazemos? Organizamos a fila. Vacinamos primeiro os idosos, antes de cobrir toda a população. Não adianta querer dar meia dose para todo mundo, porque assim não imunizamos ninguém. O que o Bolsa Família fez foi o seguinte: há pessoas que realmente têm insuficiência de renda e estão passando fome. Chegamos nessa pessoa que está passando fome e damos uma quantidade de dinheiro que só mais ou menos a ajuda a não passar fome. E damos um monte de benefícios também para outra pessoa que não está passando fome. É como se estivéssemos dando meia dose de vacina para uma pessoa e meia dose para outra. Não vamos resolver o problema dessa maneira. O programa brasileiro de imunização funcionou na medida em que ele é municipalizado. O governo tem que fazer a mesma coisa nos programas sociais. Qualquer programa de combate à pobreza no Brasil precisa usar a capilaridade da assistência social que já existe. O Brasil tem uma enorme capilaridade na sua política social. Sabemos quem são os pobres se perguntarmos para a comunidade e se usarmos os Centros de Referência em Assistência Social, os CRAS. Para você ter uma ideia, são 250 mil agentes sociais locais em contato com essa população. Esses agentes sabem quem está passando fome. O Auxílio Brasil não usa essa estrutura local da política social brasileira. A única maneira de melhorar a focalização do programa é saber quem é pobre. E ninguém sabe disso melhor do que quem está na comunidade. Se você for lá na comunidade e perguntar quem é pobre, todo mundo sabe. Se perguntar em Brasília quem é pobre naquela comunidade, ninguém vai saber. O Brasil fez um avanço grande com o sistema único de assistência social e não está usando essa capilaridade. Não estamos usando a inteligência que já temos. E não vamos ganhar uma guerra contra a pobreza sem inteligência.
Nessa linha de comparação com o programa de imunização, a quantidade de vacinas que o Brasil tem dá para atender todo mundo? Estamos falando de que ordem de grandeza de recursos para acabar com a pobreza?
O problema nosso não é dinheiro. O Brasil gastou mais de 200 bilhões de reais com o Auxílio Emergencial em alguns meses. O país gasta na área social quase 2 trilhões de reais por ano, incluindo os gastos com previdência e educação. São 5 a 6 bilhões de reais por dia. Vamos supor que, desses 2 trilhões, se defina que vamos gastar 3% com o alívio da pobreza. São 60 bilhões. Esse é o número de vacinas que temos. A questão então é descobrir quem são os mais pobres do Brasil e ver até onde conseguimos atender. O que digo é o seguinte: os pobres brasileiros são tão pobres que, com esse dinheiro, daria para atender os 30% ou 40% mais pobres. Passar fome no Brasil é um absurdo, porque a quantidade de recursos de que precisamos é absolutamente ridícula. Para acabar com a fome no país, precisamos de 10 bilhões de reais. Privações muito graves podem ser resolvidas com 15 bilhões. O Bolsa Família custava 30 bilhões por ano. Mas não precisamos parar por aí. Há uma série de outras inseguranças de renda que não faz muito sentido existir. Se gastarmos 1% do PIB, seriam uns 70 bilhões. Esse 1% do PIB é duas vezes o que os 10% mais pobres brasileiros ganham. Com 1% do PIB, daria para fazer um programa espetacular. Então, não é um problema de dinheiro. É um problema de usar a inteligência, conversando com a comunidade.
Por que o governo não usa essa capilaridade que já existe na estrutura de assistência social para fazer chegar o dinheiro a quem realmente precisa? É porque tem medo de perder o controle do programa?
Essa é uma pergunta difícil de responder. O Brasil não só tem essa capilaridade, como também criou um sistema de verificação dessa capilaridade. Temos conselhos municipais de todo tipo: de assistência social, de defesa do direito da criança e do adolescente, da juventude, do idoso, de controle do Bolsa Família, e assim por diante. O agente na comunidade tem que registrar no cadastro: fulano é pobre. O conselho local vai olhar o cadastro e saber se fulano é realmente pobre. Além disso, o Brasil tem hoje um sistema fantástico de batimento de cadastro. Se a pessoa que o agente apontou como pobre tem, por exemplo, um carro, dá para descobrir isso pelos dados do Renavam. Se a pessoa tem um emprego formal, dá para checar pelos dados da RAIS, a Relação Anual de Informações Sociais. Se a pessoa tem um imóvel, dá para saber pelos dados dos contribuintes do IPTU. Ou seja, se a pessoa for minimamente formal, dá para checar os dados. E a própria comunidade vai dizer: olha, esse cara não é pobre. Agora, por que o governo não usa esse sistema? Em parte, acho que é por não querer dar poderes ao agente local. No caso da vacina, houve uma discussão enorme de quem estava dando a vacina, se era o governo federal ou estadual. Então, é uma questão de informar a população que não é o cara que está colocando seu nome lá que está dando um benefício. O sujeito que aplicou a vacina é simplesmente um agente do governo. Você não tem que estar grato ao agente local, mas à sociedade brasileira. É um direito seu.
A simples transferência de renda é uma medida paliativa, já que não tira as pessoas da situação de pobreza. Como promover a inclusão produtiva dos mais pobres e evitar que eles dependam de ajuda eternamente?
Em certo sentido, não há problema nenhum de as pessoas mais pobres receberem um benefício durante a vida toda. Todos os brasileiros do setor formal recebem, por exemplo, o abono salarial e o décimo-terceiro salário. Isso são benefícios. A sociedade brasileira é dona de uma série de riquezas e pode distribuir essa riqueza entre a população mais pobre. É natural que, mesmo que a pessoa não esteja passado fome, ela receba um benefício que vai melhorar um pouco a sua vida. Um dos direitos sociais previstos pela Constituição brasileira é o trabalho decente. Todas as pessoas querem se sentir produtivas, ter um bom emprego, avançar e melhorar de vida, ter orgulho do que fazem. É o que os americanos chamam de self-reliance, um direito de todos. Aqui voltamos ao mesmo problema. A inclusão produtiva de cada pessoa é diferente, o que torna o papel desse agente local bem mais importante. Esse agente pode bater na porta da casa de uma pessoa pobre e ver que ela produz um monte de coisas legais, mas não tem a quem vender. Essa pessoa vai precisar de um apoio à comercialização, e às vezes são várias pessoas naquela comunidade produzindo a mesma coisa e sem condições de vender. É preciso fazer uma cooperativa, trabalhar com o Sebrae, ou criar uma forma de comercializar aquele produto, melhorar a embalagem, vender para um supermercado. O agente bate na porta de outra pessoa pobre e descobre que ela tem uma boa ideia, mas não tem dinheiro para colocar em prática. Logo, o que ela está precisando é de um microcrédito produtivo orientado. O agente bate na porta de outra casa e descobre que ela tem um ótimo carpinteiro, mas ninguém sabe disso. O que falta nesse caso é certificar a competência dele. Então, só é possível promover a inclusão produtiva se houver uma conversa um a um de cada pobre com o agente. E como temos 250 mil agentes, dá para cobrir com muita facilidade 10 milhões de famílias brasileiras. Esses 250 mil agentes têm que bater na casa dos pobres para conversar com eles, ver quais são seus problemas, trabalhar num plano de saída da pobreza daquela família, num plano de desenvolvimento individual e encaminhar as pessoas para as oportunidades que existem na comunidade. Os agentes vão levar aos pobres o conhecimento de que há um monte de coisas disponível na comunidade que eles não sabiam que existia. Como diz a canção de Gilberto Gil, o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe.
Falando um pouco de educação, qual foi o impacto da pandemia nessa área no Brasil?
O impacto que sabemos com muita segurança é que as escolas ficaram fechadas e que se tentou fazer, e se fez, uma educação remota, mas essa educação remota dependia de as crianças, os adolescentes e os jovens terem condições apropriadas em termos de equipamentos e de espaço na casa para poder assistir com tranquilidade às aulas. E sabemos que o acesso a esse ensino remoto foi extremamente desigual. Os mais pobres não tinham essas condições que os mais ricos certamente tinham. Como as escolas ficaram fechadas e o acesso ao ensino remoto foi extremamente diferenciado, a expectativa é que as perdas educacionais foram imensas e extremamente desiguais. Isso tudo é mais ou menos evidente, mas, curiosamente, não medimos o desempenho educacional das crianças nesse período. Não sabemos quanto as crianças estavam perdendo de aprendizado nem de mês em mês, de semestre em semestre ou de ano em ano. No final de 2020, não sabíamos quanto tínhamos perdido de aprendizado, salvo algumas exceções, como no estado de São Paulo. Em 2021, fizemos muitas avaliações, mas ainda não temos os dados para saber, mas a expectativa é que as perdas foram gigantescas. As estimativas do Banco Mundial mostram que essas perdas, se não forem recuperadas, vão representar algo em torno de 10% do PIB. São perdas que ocorreram e que as escolas ainda podem tentar recuperar. Mas são perdas gigantescas e muito desiguais.
Nesse sentido, o senhor diria que as escolas no Brasil ajudam a perpetuar a desigualdade, já que alunos de famílias mais ricas tendem a estudar nas melhores escolas e ter maiores oportunidades profissionais?
É um pouco radical dizer que a escola aumenta a desigualdade. O ponto é que a escola devia ter um impacto brutal na redução da desigualdade. Em certo sentido, a escola pública brasileira não está gerando desigualdade, mas está permitindo que muito mais desigualdade seja gerada do que se deveria. Agora, o que a gente faz para a escola brasileira oferecer uma igualdade de oportunidade muito maior? Essa é uma questão absolutamente central para o Brasil, para a qual ainda não temos respostas muito claras. Mas algumas coisas são fundamentais. A primeira é que a Prova Brasil tem um questionário aos professores e pergunta: por que alguns de seus alunos não aprendem? Em 98% das respostas, a culpa é do aluno e da família. Enquanto a sociedade brasileira achar que a culpa do não aprendizado é do aluno, e não da escola, não vamos eliminar o problema. A segunda coisa é a seguinte: o professor olha para um aluno da favela e pensa: esse aí não vai dar em nada. Ele tem baixas expectativas, e isso é a pior coisa que pode acontecer na educação. O professor tem que achar que na sala dele todo mundo pode ser um Einstein, o presidente da República, um grande empresário. Se não tivermos altas expectativas em relação às nossas crianças, se continuarmos culpabilizando os alunos e as famílias, não vamos chegar a lugar algum. No Brasil, temos grandes exemplos de escolas e municípios que lidam com crianças pobres e têm excelentes desempenhos. Cocal dos Alves, por exemplo, é um município do Piauí com IDH pior do que 99% dos municípios brasileiros. Mesmo assim, é recordista brasileiro em ganhar olimpíadas de matemática. A escola pública de Cocal dos Alves no Ensino Médio é apontada pelo Impa, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, do Rio de Janeiro, como a escola modelo em ensino de matemática no Brasil. As crianças e os jovens de Cocal dos Alves não só ganham olimpíadas de matemática, como também de robótica, de língua portuguesa, de astronomia. O município de Apiaí, no Vale do Ribeira, a região mais pobre do estado de São Paulo, tem escolas fantásticas, com notas melhores do que escolas da zona leste da capital de São Paulo. O que acontece em Apiaí? Primeiro, os professores não culpam os alunos. Segundo, eles acreditam nos alunos. O que precisamos fazer como sociedade brasileira é descobrir quem está fazendo educação de alta qualidade para pobres. E tem gente muito boa no Brasil ensinando muito bem aos pobres, em nível europeu, como mostram Cocal dos Alves e Apiaí. Temos que simplesmente aprender com nós mesmos. É algo que não estamos fazendo.