A empresa de streaming passou a oferecer aos assinantes a possibilidade de se divertir com games, sem custo extra. Entenda o que há por trás dessa decisão
David Cohen
Para quem acompanha o setor de games, não chegou a ser surpresa. “A Netflix já tinha deixado uma trilha de migalhas de pão”, afirma Derrick Morton, cofundador e executivo-chefe da produtora de games Flow Play, em artigo no site da revista Forbes. As pistas eram as experiências interativas na série Black Mirror e o lançamento de uma série baseada no game Minecraft, em que o espectador determina o que o protagonista irá fazer (escolhendo entre algumas opções).
Em julho deste ano, os rumores foram confirmados: a empresa admitiu que estava de olho no mercado de videogames, ao contratar o executivo Mike Verdu, veterano do setor, como seu vice-presidente para desenvolvimento de games. Logo em seguida, lançou dois jogos inspirados na sua série de sucesso Stranger Things, a princípio disponíveis apenas na Polônia.
No final de setembro, as engrenagens começaram a se mover, com a aquisição da empresa Night School Studio, criadora do Oxenfree, um game de mistério sobrenatural. Essa aquisição permitiu à Netflix contar com uma equipe própria de desenvolvedores de jogos.
No início de novembro, finalmente, veio o anúncio oficial. A Netflix passou a oferecer aos assinantes a possibilidade de jogar games, também por streaming — sem custo extra. Por enquanto são apenas cinco títulos, mas esse número deve crescer. O comunicado da empresa diz: “Estamos nos primeiros dias de criar uma grande experiência em games e estamos entusiasmados em levar você nessa jornada conosco”.
Uma particularidade deste movimento é que tanto o Google quanto a Apple parecem ter amenizado suas restrições para que os clientes da Netflix possam lançar um app (de algum dos jogos) a partir de outro (o de streaming de vídeos). Isso se explica pela oportunidade de lucrar com o sucesso da Netflix: os jogos são gratuitos para os já assinantes, mas, se algum não assinante quiser baixá-los, será imediatamente convidado a assinar o serviço de streaming; nesse caso, o Google ou a Apple, dependendo do sistema operacional em uso, ficaria com a tradicional comissão de 30% do valor (no primeiro ano, 15% depois).
Para a Netflix, esse pedágio é perfeitamente aceitável no contexto de uma aposta bem maior: a continuidade de seu crescimento.
Não é que a empresa tenha estancado. Ao contrário. Seus resultados no terceiro trimestre do ano, anunciados poucos dias antes do lançamento da Netflix Games, foram surpreendentemente bons: quase 7,5 bilhões de dólares de receita, 1,3% a mais que no trimestre anterior e sólidos 16% acima do obtido no mesmo trimestre no ano passado. Os números retratam a soma de dois incrementos: na base de usuários, que cresceu em 4,4 milhões, para um total de 213,6 milhões; e na alta de 7% no valor médio das assinaturas.
A companhia ainda espera adicionar mais 8,5 milhões de assinantes até o final do ano. Em parte, as boas novas do trimestre são reflexo de um sucesso represado. Por causa da pandemia da covid 19, atrasos nas produções impactaram o fluxo normal de lançamentos — e os lançamentos costumam avivar a entrada de novos usuários. É o que está acontecendo neste segundo semestre.
De outro lado, porém, a competição está aumentando nos serviços de streaming e a amenização de medidas restritivas em vários países diminuiu o tempo livre forçado trazido pela pandemia. Somar e subtrair os efeitos dos diferentes vetores é uma conta difícil. No primeiro semestre de 2020, a Netflix tinha produções para estrear e as pessoas foram obrigadas a ficar em casa, uma combinação que levou ao ganho de 26 milhões de assinantes; no segundo semestre, com menos restrições e menos produções (porque as gravações também sofreram paralisações), o ganho foi de apenas 2 milhões de usuários. “Você não pode sair da loucura da covid com plena confiança nos próximos dois anos”, disse Reed Hastings, cofundador e executivo-chefe da Netflix, no anúncio dos resultados.
Manter o ritmo de crescimento, portanto, é um desafio, especialmente diante das conclusões de uma pesquisa de mercado feita pela Ampere Analysis. Conforme seu diretor, Richard Broughton, disse a Catie Keck, do site The Verge, no início de novembro, uma enquete com 50.000 consumidores detectou não apenas estagnação, mas uma leve erosão de assinantes na faixa entre 18 e 24 anos — normalmente a mais cobiçada por empresas de entretenimento.
Neste quadro, a investida no terreno dos games se torna uma opção natural, quase óbvia para a empresa. Para começar, é um terreno para lá de atraente. A indústria dos games é imensa. Embora não chame tanto a atenção da mídia quanto a de filmes ou a de música, ela é maior que as duas combinadas: o mercado de cinema e streaming caiu de quase 100 bilhões de dólares em 2019 para 80 bilhões de dólares em 2020, de acordo com a Motion Picture Association; o mercado de música atingiu 21,6 bilhões de dólares, segundo a Federação Internacional da Indústria Fonográfica, IFPI; já os games faturaram 155 bilhões de dólares no ano passado, de acordo com a plataforma de dados sobre negócios Statista.
E o vigor tende a aumentar. Neste ano, estima-se que o faturamento da indústria de games salte para 178 bilhões de dólares. Em 2025, deve chegar a 260 bilhões de dólares, com mais de 1,2 bilhão de pessoas jogando games online.
Não se trata simplesmente de reconquistar os jovens. Os games estão deixando de ser uma atividade restrita a uma faixa etária. As pessoas começam a jogar mais cedo e continuam a jogar durante a vida adulta. Além disso, eles agora atraem quase tantas mulheres quanto homens.
Um marco nessa expansão foi o jogo Pokémon Go, lançado em 2016 pela Niantic. O game foi uma febre, com milhões de pessoas no mundo inteiro saindo às ruas munidas de celulares para capturar monstrinhos virtuais. Se você acha que a febre passou, está enganado. De acordo com um relatório de previsões da consultoria Mordor Intelligence, os 27 milhões de jogadores do Pokémon Go nos Estados Unidos em 2016 se tornaram 67 milhões em 2020. Na Ásia, a expansão foi de 84 milhões para 311 milhões.
O faturamento acompanha a tendência. Depois de um declínio em 2017 e 2018, o game rendeu uma quantia recorde de 900 milhões de dólares em 2019. E superou esse valor no ano seguinte, batendo os 1,3 bilhão de dólares de receita. A média tem se mantido este ano, com 642 milhões de dólares de receita no primeiro semestre. Apesar de ser um jogo explicitamente voltado para tirar as pessoas de casa e encontrar outros jogadores, conseguiu esses resultados durante a pandemia por meio de pequenas mudanças que seus desenvolvedores implementaram: a possibilidade de capturar itens e combater monstros a uma distância maior.
O Pokémon Go deixou claro que há uma miríade de oportunidades no mundo dos games. A Netflix não foi a primeira a perceber isso. Em 2016, o Facebook começou a desenvolver uma plataforma de games com a Unity Technologies. Em 2019, o Google lançou a Stadia, um outro ponto de inflexão para a indústria, com sua proposta de permitir que os usuários joguem games famosos em qualquer aparelho, via nuvem. No mesmo ano, a Microsoft apareceu com o Project xCloud, um serviço de streaming de games que também permite aos usuários do console Xbox jogar em outros aparelhos.
Essa avenida deve ficar ainda mais bem pavimentada com a adoção das conexões em 5G e os planos de dados ilimitados que virão por aí. Ainda que a Stadia não tenha feito muito sucesso — seja pela falta de títulos matadores, seja pela ainda deficiente usabilidade em relação aos consoles específicos para games, a tendência é que a balança penda para o streaming, uma área em que a Netflix é líder.
Um segundo motivo para que o salto para games fosse natural para a Netflix é que a criação de videogames foi ficando mais complexa com o passar dos anos. Como explica Andrew Beattie, um dos principais editores do site de educação e informações financeiras Investopedia, “o custo de criar um game para ser jogado em algum dos principais consoles subiu muito com essa nova complexidade”. Os games hoje podem consumir dezenas, às vezes centenas de milhões de dólares em sua produção. “Isso empurrou o desenvolvimento de games para o território característico dos filmes de Hollywood, em termos de custos de produção e marketing”, diz Beattie.
Em outras palavras, os games têm enredo, personagens e efeitos especiais que se assemelham bastante aos da indústria do cinema. Para a Netflix, é como reviver um caminho já traçado antes.
Para quem não se lembra, a empresa de Reed Hastings já foi uma mera locadora de vídeos, na época dos DVDs. Surfou na onda da revolução tecnológica do streaming para desbancar a gigantesca Blockbuster e se tornar a maior distribuidora do planeta. Então percebeu que aquilo não bastava. Na famosa frase de Ted Sarandos, seu diretor de conteúdo, a Netflix precisava “se tornar uma HBO antes que a HBO virasse uma Netflix”. Ou seja, era preciso criar conteúdo de primeira linha antes que as produtoras resolvessem distribuir seus próprios programas.
Esse movimento foi relativamente bem sucedido, inclusive com cinco títulos indicados ao Oscar desde 2019 e 160 indicações ao Emmy (o prêmio mais cobiçado da TV americana) em 2020, recorde para qualquer produtora em um só ano. Isso ocorreu praticamente ao mesmo tempo em que a profecia se cumpriu: não só a HBO lançou seu serviço de streaming, também a Disney o fez; e a Amazon; e a Apple; e várias e várias outras.
Da mesma forma que fez com as produções de filmes e séries, a Netflix diz que vai começar devagar — a estratégia contrária à da grande aposta feita pelo Google com a Stadia. “Ainda estamos nos primeiros dias dessa iniciativa e, como em outras categorias de conteúdo para as quais nos expandimos, nós pretendemos tentar diferentes tipos de games, aprender com os nossos membros e melhorar nossa biblioteca de games”, afirmou a companhia em comunicado.
Ela sai, porém, com uma enorme vantagem: sua base de assinantes. Pelo fato de não cobrar uma taxa extra, não ter anúncios e não promover compras dentro dos games, deve atrair uma parcela ampla do público — má notícia para os desenvolvedores que dependem de compras dentro do app para ter lucro.
Outra vantagem é a possibilidade de aproveitar os investimentos já feitos no marketing de seus programas. Um exemplo é a série Stranger Things, que se tornou um dos seus primeiros títulos de game. Há economia tanto na produção quanto no marketing, com um custo de aquisição de consumidores consideravelmente mais baixo. Assim como o Pokémon Go, embora por motivos diferentes, a Netflix tem condições de atrair consumidores que de outra forma não prestariam atenção aos games.
Apesar de toda essa lógica, a entrada no território dos games ainda é “uma parte muito pequena do bolo” da Netflix, como lembrou o analista Joseph Bonner, da consultoria Argus Research, ao site de notícias The Verge. “Ainda vai levar um tempo até que consigamos entender como os games vão impactar o serviço”, disse. O que torna esse movimento especialmente interessante, portanto, não é exatamente o potencial lucro que a Netflix vá ter no médio prazo. É o caminho que ele aponta.
Já há um bom tempo a empresa afirma que não se considera líder de mercado. “Nós somos bastante pequenos, com uma série de oportunidades para crescer no nosso enorme e bastante lotado mercado”, ela afirmou em comunicado. De fato, de acordo com a empresa de análise de mercado Nielsen, a Netflix ainda usufrui de menos de 10% do tempo de tela dos americanos.
Isso é ainda uma forma restrita de pensar no seu mercado. A Netflix não acha que compete apenas pelo tempo de tela. “Nós concorremos com uma exorbitante quantidade de atividades pelo tempo e atenção das pessoas, como ver TV, ler um livro, navegar pelo Tik Tok ou jogar Fortnite”, diz a companhia. Um experimento natural comprovou essa noção. No dia 4 de outubro, quando o Facebook saiu do ar no mundo inteiro por quase seis horas, a Netflix afirma que teve um engajamento 14% maior.
Em linha com essa visão, a companhia anunciou que vai mudar a métrica para relatar sua audiência. Não vai mais contar o número de assinantes que assistiu a um programa, e sim o número de horas que aquele programa capturou.
Esse tipo de métrica permite comparar o desempenho da Netflix em relação a praticamente qualquer atividade humana, incluindo sono, refeições, relações amorosas, escola ou trabalho. Mais no foco, entretanto, está a indústria do entretenimento. Toda a indústria do entretenimento.
Mais ou menos como a Amazon, que de livraria online virou uma “loja de tudo”, depois uma plataforma que transcende a concorrência, além de ter expandido seus negócios — inclusive para a seara da Netflix, com a produção e distribuição de vídeos —, a expansão da atividade indica uma disposição real de enfrentar os concorrentes, onde quer que estejam.
Os games são apenas uma nova fase de um jogo que a Netflix considera (e espera) que será muito, muito longo.