Ficou famoso, em 2018, um artigo de opinião no jornal The New York Times em que um servidor público de alto escalão dos Estados Unidos afirmava fazer parte de um movimento de resistência aos projetos do então presidente americano Donald Trump (agora de volta ao poder). Segundo ele escreveu, vários funcionários do governo federal trabalhavam diligentemente “para frustrar parte da agenda política e das piores inclinações” do presidente.
Embora esse fosse o retrato de uma situação extrema, o fenômeno, em variados graus, é recorrente em qualquer organização — e ainda mais na administração pública, em que os servidores não raro sentem ter uma missão mais elevada, que suplanta a hierarquia.
Esse tipo de interação ficou demonstrado num estudo com trabalhadores do Ministério do Meio Ambiente, feito por Joana Story e Gabriela Lotta, pesquisadoras da Fundação Getulio Vargas, e Gustavo Tavares, professor assistente e pesquisador de gestão de pessoas e liderança do Insper. Aquele momento era especialmente propício para testar hipóteses de lealdade à chefia: “O governo Bolsonaro estava nomeando para cargos comissionados diversas pessoas de fora da área ambiental, a maioria militares da reserva sem experiência comprovada em proteção ambiental”, diz Gustavo.
Numa primeira fase da pesquisa, foram realizadas entrevistas com 25 servidores de carreira do ministério — uma quantidade suficiente para um estudo qualitativo. Nesta fase, comandada por Gabriela e alguns assistentes, percebeu-se uma sensação de politização do órgão. As queixas eram de que os cargos de chefia estavam sendo ocupados por gente alinhada à ideologia do presidente, não necessariamente competentes para cumprir o que os funcionários consideravam ser as exigências do posto.
Eram, em suma, lideranças externas. Mais do que isso, emergiram das entrevistas reclamações de que a supervisão era abusiva, com perseguição a funcionários. Ali também se constataram indícios de alienação e desengajamento. Entre as falas dos funcionários estava a de que “trabalhar se tornou um sacrifício”.
A partir daí, os pesquisadores aplicaram um questionário mais abrangente, para 255 funcionários, que lhes permitisse colher dados quantitativos. As perguntas eram do tipo Lickert, cujas respostas vão de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”.
No conjunto da pesquisa ficou detectado o fenômeno de desengajamento (autoestranhamento, no termo mais técnico) com o trabalho. “Primeiro, os funcionários adotam o silêncio por medo”, diz Gustavo. “Na sequência, ele vira um silêncio por apatia.”
Este caso permite marcar bem o processo que, em variados graus, pode ocorrer em qualquer organização. “No primeiro momento em que aparece uma liderança não reconhecida como competente e fiel aos propósitos da organização, surge uma resistência”, aponta Gustavo. “Depois, com a sequência de broncas, desligamentos, remoções, vêm a apatia e o silêncio.”
Que a politização pode prejudicar o desempenho de uma organização já é bastante demonstrado em diversos estudos. Mas os autores acrescentam, na pesquisa (Mis)Lead by an Outsider: Abusive Supervision, Disengagement, and Silence in Politicized Bureaucracies — (Mal) liderado por alguém de fora, em tradução livre —, publicada no Journal of Public Administration Research and Theory, que “a politização pode afetar negativamente a eficiência de uma agência pública não apenas porque líderes de fora possam ter menos competência e legitimidade, mas também porque podem criar um ambiente de trabalho negativo que enfraquece o capital humano da organização”.
Cruzando os dados dos questionários, Joana, Gabriela e Gustavo conseguiram apontar que líderes percebidos como outsiders são mais propensos a ser percebidos como abusivos pelos funcionários, e estes são mais propensos a experimentar um senso de desconexão com seu trabalho. “Tanto a supervisão abusiva quanto o desengajamento estão associados ao silêncio defensivo (ocasionado por medo) e ao silêncio aquiescente (quando o funcionário se resigna) ”, escrevem os pesquisadores.
"Bebendo muito da literatura de liderança como um todo”, destaca Gustavo, ”nós defendemos a importância de ter lideranças com dois grandes perfis: competência técnica daquela área, que garanta legitimidade e reconhecimento dos liderados; e compartilhamento de valores e da missão da organização”.
Esse resultado vale para o bom funcionamento de qualquer organização. Não à toa, organizações tendem a favorecer a ascensão de líderes “prata da casa” na maioria das vezes — e preferem chamar gente de fora em situações de crise, quando é preciso desafiar a cultura vigente ou mesmo promover mudanças radicais.
Se o achado do estudo não chega a ser surpreendente, ele gera recomendações úteis para o estabelecimento de um corpo dirigente mais adequado. “Não é uma grande novidade que uma liderança ruim leva a resultados ruins”, lembra o professor do Insper. “Mas o estudo acende uma luz amarela porque a escolha dos cargos comissionados é puramente política.”
Na administração indireta, em empresas como a Petrobras, as nomeações políticas são em geral temperadas por um processo mais técnico. Na administração direta, contudo, não. “Uma discussão possível é como criar filtros de competência e mecanismos mais cuidadosos para a escolha da liderança”, afirma Gustavo.
“Não é ideal tirar da autoridade política o direito de escolha nos órgãos públicos”, diz ele. Até porque, lembra, às vezes pode fazer sentido enfraquecer o corporativismo de algum órgão. “Mas há métodos para garantir que alguns padrões sejam atingidos.” Nos Estados Unidos, por exemplo, vigora um sistema de credenciais, o Senior Executive Service (SES), criado em 1979, após a votação de uma lei de reforma do serviço público. Por ele, os servidores são ranqueados de acordo com suas qualificações de liderança.
No Reino Unido, o Senior Civil Service tem três níveis de qualificação, o que garante um alto padrão para os líderes que funcionam como interface entre os políticos e o corpo da administração pública. No Chile, o Sistema de Alta Dirección Pública tem como objetivo “dotar as instituições de governo — por meio de concursos públicos e transparentes — de diretores com provada capacidade de gestão e liderança”, segundo o site do governo chileno.