A violência em comunidades ribeirinhas da Amazônia aumentou desde a implementação da política de interdição aérea do tráfico de drogas, em 2004. Essa é uma das conclusões do estudo “Landing on water: air interdiction, drug-trafficking displacement, and violence in the Brazilian Amazon” (Aterrizando na água: interdição aérea, tráfico de drogas e violência na Amazônia brasileira), assinado pelos pesquisadores Rodrigo Soares (professor titular da Cátedra Fundação Lemann) e Leila Pereira, do Insper, e Rafael Pucci, da Universidade de São Paulo. O trabalho foi divulgado como texto para discussão pelo Institute of Labor Economics (IZA), da Alemanha, e explica como o controle aéreo mais rigoroso deslocou as rotas de tráfico de cocaína para os rios da região, expondo as populações locais ao contato direto com os traficantes.
De 2000 a 2019, a taxa de homicídios na região quase dobrou, no caminho inverso da tendência registrada no resto do Brasil. O período coincide com o maior controle do espaço aéreo na Amazônia, a partir de 2002, quando o governo brasileiro criou o Sistema de Vigilância da Amazônia e o Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo. A interceptação de voos ilegais foi endurecida em 2004, com a política de interdição aérea, que permite o abate de aeronaves suspeitas de transporte de drogas oriundas dos países andinos (Bolívia, Colômbia e Peru) para o Brasil.
Os pesquisadores mostram que 27% dos homicídios nos municípios podem ser atribuídos ao deslocamento de parte do tráfico de cocaína para as comunidades ribeirinhas, que passaram a fazer parte da rota da droga. Foram 1.430 mortes a mais entre 2005 e 2020. Eles compararam a taxa de homicídios das cidades incluídas na rota fluvial do tráfico — que substituiu o transporte aéreo — à dos municípios que não estão expostos. As evidências reforçam a hipótese do aumento da violência associada ao tráfico de cocaína e ao uso mais frequente das rotas fluviais pelos criminosos.
Além de verificar a mudança de rotas do tráfico, o estudo ressalta a importância de avaliar o impacto socioeconômico e criminal causado por políticas públicas. “Na política de segurança pública e de combate ao crime, especialmente ao crime organizado, no qual a renda gerada e a capacidade de reorganização são elevadas, deve-se ter consciência de que intervenções pontuais podem gerar efeitos colaterais não intencionais”, diz Soares. “Já existe evidência dessa relação no policiamento local, por exemplo, no qual a ação de reduzir o crime num local específico tende a fazer o crime migrar para outros locais. No futuro, essa tendência deveria ser considerada na formulação de outras políticas de combate ao tráfico ou a mercados ilegais no geral.”
Como consequência dessa análise mais ampla, impõe-se a necessidade de o Estado se fazer mais presente no chão nessas áreas da Amazônia, segundo Soares. O desafio é enorme. Trata de uma área gigantesca, com densidade populacional muito baixa, onde não é viável a presença de forças de segurança para policiamento ostensivo em toda a rota de rios que cortam a floresta. “Mas, de alguma forma, nos municípios e nos pequenos centros urbanos, tem que haver uma presença maior do Estado. E também deve-se pensar numa forma inteligente e criativa de usar tecnologia para acionar respostas rápidas e tentar diminuir o uso tão ostensivo dessas rotas”, diz Soares.
Outra limitação precisa ser considerada em busca de soluções. “A ideia de que o tráfico de drogas vai deixar de existir na Amazônia é irreal”, diz Soares. “O ponto não é esse. A preocupação principal deveria ser como minimizar o efeito colateral da violência, que a presença do tráfico acaba levando para aquelas comunidades. Sem dúvida nenhuma, a cooperação internacional, seja em inteligência, seja em combate ao tráfico, é parte muito importante da minimização desse efeito colateral”.
A pesquisa “Landing on water” tem origem nos estudos que Soares faz, desde meados de 2010, sobre as conexões da extração ilegal de madeira na Amazônia e a violência. Em 2020, o trabalho gerou um relatório para o projeto Amazônia 2030 — iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano sustentável para a região —, já em parceria com Leila Pereira e Rafael Pucci, que estavam terminando o doutorado em Economia dos Negócios no Insper. Alguns pontos sobre aumento da violência e presença maior do tráfico ficaram inexplicados nessa primeira pesquisa e foram retomados quando Leila e Pucci voltaram para o pós-doutorado da Cátedra Fundação Lemann, no Insper.
Entre os achados da pesquisa, constatou-se que os homicídios cresceram principalmente entre homens adultos, dos 20 aos 49 anos, com uso de armas de fogo e fora do lar. As mortes por overdose também aumentaram, indicando maior disponibilidade de cocaína nos municípios afetados rota fluvial. A violência passou ainda a ser sensível ao aumento da produção de cocaína nos países da fronteira. Em contrapartida, as taxas não cresceram nas cidades fora das novas rotas dos traficantes. Outro dado importante é que não houve aumento significativo dos homicídios vinculados a conflitos fundiários nessas mesmas áreas, o que reforça a hipótese da expansão do tráfico de drogas na Amazônia.