Elas tinham especialidades diferentes, vinham de regiões diferentes, tiveram trajetórias profissionais diferentes. No entanto, um estudo de quatro pesquisadores brasileiros constatou que as três mulheres que integraram o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos tinham mais ou menos a mesma probabilidade de ser interrompidas durante seus votos no juizado — e essa chance era entre 75% e 100% maior do que a de um homem ser interrompido.
Desde a época dos discursos (o período de análise compreendeu os debates e decisões entre 1999 e 2018), a situação certamente já mudou. Mas para pior. Pode-se afirmar com alto grau de confiança que as mulheres têm sido menos interrompidas; mas isso acontece apenas porque, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, em setembro de 2023, o STF passou a contar com apenas uma mulher entre seus 11 juízes, Cármen Lúcia. Essa situação deve perdurar por um bom tempo, pois para o lugar de Rosa Weber foi escolhido um homem, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino. A próxima substituição no STF não deve ocorrer antes de 2028, quando o ministro Luiz Fux completará 75 anos e será compelido a se aposentar.
Embora a pesquisa tenha abrangido as participações de três mulheres — Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber —, o STF nunca teve mais de duas ao mesmo tempo em sua composição; Rosa Weber substituiu Ellen Gracie, a primeira mulher a integrar o tribunal. Essa representação feminina já era pequena e tornou-se irrisória. E isso, como o estudo permite concluir, é ruim não apenas para a luta das mulheres por igualdade, mas também para o próprio funcionamento da Corte.
“Parte do que a gente queria apontar com a pesquisa é que não se trata só de uma questão de representatividade simbólica”, afirma Diego Werneck Arguelhes, doutor em direito pela Universidade Yale e professor associado do Insper, um dos autores do estudo “They don’t let us speak”: Gender, collegiality, and interruptions in deliberations in the Brazilian Supreme Court (“Eles não nos deixam falar”: Gênero, coleguismo e interrupções em deliberações na Suprema Corte brasileira), em colaboração com Juliana Cesario Alvim Gomes, da UFMG e da Central European University, em Viena, Rafaela Nogueira, do banco Nubank, e Henrique Wang, também do Insper. “Isso afeta a dinâmica decisória do tribunal.”
Em outras palavras: se um ministro é mais interrompido que outro, pode-se inferir que seus argumentos adquiram mais peso. “O estudo sugere que há pessoas que consigam se fazer ouvir mais que outras”, diz Werneck. “Isso reforça o quão lamentável é que a gente tenha um tribunal com uma mulher só.”
Embora se concentre num único órgão decisório, suas conclusões podem ser estendidas com alguma segurança para diversos outros colegiados: conselhos de empresa, equipes gestoras etc. Afinal, se essa dinâmica ocorre na Corte mais poderosa do país, e em debates públicos, por que não ocorreria em instâncias mais limitadas e em reuniões privadas?
O estudo é tão revelador que algumas de suas conclusões já foram divulgadas pela imprensa, bem antes de sua publicação no Journal of Empirical Legal Studies (JELS), uma revista acadêmica mantida pela Wiley-Blackwell, divisão da editora John Wiley & Sons, e pela Escola de Negócios da Universidade Cornell. “Os dados estão mais robustos agora”, afirma Werneck.
Uma diferença é que, nas versões preliminares, a ministra Ellen Gracie não aparecia como tendo mais chance de ser interrompida. “Isso provavelmente acontecia porque a primeira base tinha poucas participações dela”, esclarece o professor do Insper. Com a inclusão de mais transcrições dos debates na Corte e refinamento da modelagem, a exceção foi absorvida pela regra: percebeu-se que Ellen era tão interrompida quanto as outras duas mulheres.
Os resultados finais mostram que as juízas interrompem menos e são mais interrompidas que seus colegas homens. “A maior parte dos juízes homens têm efeito negativo, ou seja, menos probabilidade de ser interrompidos”, diz Henrique Wang, doutorado em economia pelo Insper e pesquisador do Centro de Regulação e Democracia do Insper, um dos responsáveis pela tabulação e análise dos dados.
“Isso mostra que as interrupções”, dizem os autores no estudo, “servem um propósito duplo: elas atuam como um meio de aplicar normas de gênero e como um mecanismo para restaurar o poder de fala dos homens”. Como parâmetros de controle foram avaliados, em cada instância, a data, o foro de decisão, o papel do juiz (se era relator ou não), o número de páginas do voto, o número de linhas faladas e se o voto estava na posição da maioria dos juízes ou não.
A pesquisa foi inspirada pelo trabalho da professora de direito Tonja Jacobi e do advogado Dylan Schweers, que em 2017 publicaram o artigo Justice, Interrupted, focando nas interrupções durante argumentos orais na Suprema Corte dos Estados Unidos. Algo na mesma linha, pensaram os pesquisadores brasileiros, poderia ser feito aqui, até com mais acurácia, porque a Corte aqui “opera com deliberações abertas, e seus juízes interagem entre si em tempo real e em público — um arranjo que torna o sistema brasileiro singular sob uma perspectiva comparativa”, como dizem em seu artigo.
Havia também o incentivo de qualificar e quantificar o fenômeno do machismo na Corte, que se vislumbrava com frequência em interações pontuais. “Casos anedóticos brasileiros tornavam claro que havia uma dinâmica de gênero nos tribunais”, lembra Werneck.
Assim, até em momentos em que supostamente se celebrava a participação feminina no STF, escapavam comentários preconceituosos, como: “talvez por sua timidez, elas permaneceram fazendo tarefas domésticas por tempo demais e não se engajaram ativamente”, em documento da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em 2000. Ou como: “meu voto leva em conta também a beleza e o charme”, de um senador durante o rito de confirmação de Ellen Gracie para o STF.
Para avaliar as interrupções na Corte, os pesquisadores recorreram a transcrições dos debates. Desde 2002, as deliberações no plenário são transmitidas ao vivo pela TV Justiça. As transcrições em si, porém, representavam um desafio. Primeiro, porque eram muitas.
A escolha foi por privilegiar os processos que tiveram pedidos de vista de algum juiz, tomando essa característica como indicativa de que eles fugiam mais da rotina e estariam, portanto, mais suscetíveis a divergências. A partir de 1,8 milhão de processos, o estudo se concentrou em 392, cobrindo todos os procedimentos dos tribunais (habeas corpus, sessões plenárias etc.), com 2.107 interações.
Uma segunda dificuldade dizia respeito às transcrições em si. Na página escrita, fala simultâneas se tornam, obrigatoriamente, sequenciais. Nessas horas, é complicado determinar quem interrompeu quem. “Nós estabelecemos alguns marcadores da interrupção”, esclarece Werneck. “Por exemplo, quando havia reticências ou travessão nas frases, ou quando alguém não termina o raciocínio, ou só o completa depois que outra pessoa falou.”
Também poderia haver algumas situações que comprometessem a análise. Uma objeção, talvez em si sexista, poderia ser: talvez as mulheres sejam mais interrompidas porque falam mais. Apesar da dificuldade de estabelecer o tamanho dos discursos — muitas vezes um juiz entrega um relatório escrito de várias páginas e fala poucos minutos, outras vezes lê tudo o que escreveu —, isso foi levado em consideração. “Mas não encontramos correlação entre ser mulher e falar mais ou menos”, aponta Werneck.
Um próximo passo para a continuidade de estudos desse tipo seria, de acordo com o professor, treinar programas de inteligência artificial para identificar casos de interrupção. Neste caso, seria possível avaliar as falas efetivas dos juízes, em vez das transcrições (que podem incluir o material escrito). Além disso, eliminaria a intervenção humana na interpretação do que é interrupção. Também permitiria ampliar a base de análise.
A pesquisa demonstra, segundo os autores, que “a mera presença de juízes do sexo feminino não é suficiente para desmantelar dinâmicas de gênero, as quais podem persistir mesmo sob regras processuais aparentemente imparciais”. Uma possibilidade que o estudo não avaliou foi se a chegada de cada mulher adicional ao STF alterou o comportamento dos juízes (tanto homens quanto mulheres). Isso, infelizmente, dada a diminuição do número de mulheres na Corte, ficou mais difícil de estudar.
Leia o estudo no Repositório Insper: