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Desenvolvimento da primeira infância deve envolver adultos que convivem com as crianças

Aisha Yousafzai, professora da Universidade Harvard, defende o combate à desigualdade de gênero nessas políticas públicas e maior envolvimento do cuidador masculino

Aisha Yousafzai, professora da Universidade Harvard, defende o combate à desigualdade de gênero nessas políticas públicas e maior envolvimento do cuidador masculino

Naercio Menezes Filho e Aisha Yousafzai
Naercio Menezes Filho e Aisha Yousafzai durante o seminário

 

Bruno Toranzo

 

A pandemia da covid-19 aumentou os desafios, que já eram enormes, para o desenvolvimento da primeira infância. “Antes da pandemia, havia 250 milhões de crianças nos países pobres e emergentes que não atingiam, nos primeiros cinco anos de vida, todo seu potencial de desenvolvimento. Quase 11 milhões de crianças, nos primeiros 11 meses de pandemia, foram adicionadas a esse número”, disse Aisha Yousafzai, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, no 1º Seminário Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, promovido pelo Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI) no dia 13 de setembro. Violência e depressão foram potencializadas pelos efeitos da crise de saúde causada pelo novo coronavírus, o que piorou o ambiente doméstico de muitas famílias.

Mas, para Yousafzai, há razões para otimismo. Isso porque, na última década, houve aumento de políticas públicas voltadas para as crianças. Em 2007, conforme abordou a especialista, apenas sete países tinham políticas multissetoriais para o desenvolvimento da primeira infância. Sete anos depois, já eram 68. “O desenvolvimento da primeira infância não é responsabilidade de um único setor. É necessário esforço conjunto do governo e da sociedade civil para que haja avanço social, saúde e educação, aspectos essenciais para a primeira infância”, esclareceu.

Sendo assim, segundo ela, é preciso uma abordagem holística para o pleno desenvolvimento da criança, contemplando inclusive os adultos, como os pais, que fazem parte da vida da criança. “Nesse processo, é importante combater a desigualdade de gênero, promovendo o maior envolvimento do cuidador masculino para lidar com todos os desafios da primeira infância. Percebemos ainda hoje que os programas de política pública são muito voltados para as mulheres, mas, na realidade, esse assunto é e deve ser sempre para ambos os gêneros”, afirmou Yousafzai.

Para Naercio Menezes Filho, professor do Insper, essas observações feitas pela especialista de Harvard demonstram a relevância de o Brasil, que já se convenceu sobre a necessidade do investimento na primeira infância para promover justiça social e estimular o crescimento econômico, olhar para a forma como as políticas são implementadas. “Aqui no país, pensamos sempre em grandes políticas como se elas fossem resolver por si só os problemas. Na realidade, precisamos tomar cuidado no momento da implementação dessas políticas, considerando os insumos trazidos pelos estudos e pelas avaliações dos programas”, disse Menezes Filho.

 

Variáveis de aprendizagem

Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), destacou que as variáveis de aprendizagem mudam de uma sociedade para a outra. “Na realidade, percebemos essas mudanças até mesmo de um estado para o outro ou de uma cidade para a outra, o que torna complexo o trabalho de educar”, afirmou Mello.

Para Marina Fragata Chicaro, diretora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, há muito a ser descoberto no campo da primeira infância. “As intervenções, soluções e tecnologias precisam ser desenvolvidas a partir do contexto de cada família. Isso significa que o ambiente onde está a criança, sua casa e comunidade, questões estruturais e adversidades são fatores que precisam ser considerados”, disse Chicaro. Já Douglas Calixto, grant manager da organização internacional Porticus, adicionou que as questões étnico-raciais e de equidade são igualmente importantes e devem ser contempladas, com o combate à discriminação, para que as infâncias floresçam com dignidade.

 

Caderneta da Criança

Um dos painéis do dia debateu a Caderneta da Criança como política pública para a primeira infância. O objetivo desse instrumento é promover o crescimento e desenvolvimento saudáveis da criança, com a redução da morbimortalidade infantil no Brasil. Esse conceito reúne duas palavras: morbidade e mortalidade. A primeira, que é menos conhecida do público em geral, consiste na taxa de indivíduos portadores de determinada doença em um grupo específico a partir de certo período de análise. Ou seja, a Caderneta da Criança é uma forma de diminuir o índice não apenas de doenças como de morte entre as crianças.

“Entre crianças menores de 36 meses, a chance de estar se desenvolvendo de acordo com o esperado foi 42% maior quando o cuidador leu a Caderneta da Criança, de acordo com estudo do projeto Pipas (Primeira Infância para Adultos Saudáveis), que conta com o apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal”, disse Sonia Venâncio, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. A Caderneta pode ser usada tanto pelas famílias, com orientações importantes para os cuidadores, como pelos profissionais de saúde, para acompanhamento da criança, e por profissionais de outros setores, como educação e assistência social, com o objetivo de integrar as ações, o que se mostra efetivo no contexto da primeira infância. “Há necessidade de fortalecer o uso da Caderneta da Criança no Brasil, pois os índices no momento estão deixando a desejar”, completou a pesquisadora.

Janini Selva Ginani, analista de Políticas Sociais do Ministério da Saúde, destacou que a Caderneta traz o registro de todas as informações sobre o atendimento à criança nos serviços de saúde, de educação e de assistência social desde o momento do nascimento até os 9 anos de idade, ultrapassando, portanto, o período da primeira infância. Para Katia Narciso, diretora de Atenção Primária à Saúde do município paulista de Louveira, é importante que as famílias sejam orientadas sobre a importância da Caderneta da Criança, por meio de um programa de visitação, com a contratação de agentes comunitários para auxiliar nesse trabalho.

Roberta Ricardes Pires, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, complementou afirmando que a Caderneta da Criança é um meio de efetivação dos direitos reunidos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), no Marco Legal da Primeira Infância e na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança.

A moderação desse painel sobre a Caderneta da Criança foi de Elizabeth Fujimori, professora da Escola de Enfermagem da USP, que chamou a atenção para a relevância de estimular o brincar com as crianças como forma de promover a interação entre pais e filhos, além de trabalhar aspectos como criatividade.

 

Políticas intersetoriais

Outro painel do dia discutiu a parentalidade e políticas intersetoriais para a primeira infância.       “A intersetorialidade aparece no Plano Municipal da Primeira Infância da cidade de São Paulo, que tem horizonte de 12 anos, com validade até 2030”, disse Alexis Vargas, secretário executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura de São Paulo. “Observamos que, em geral, os capítulos desses planos eram separados para saúde, educação e assistência social. Fizemos diferente ao integrá-los, entendendo a importância de trabalhar em conjunto esses assuntos. Para isso, definimos eixos transversais para a primeira infância. O mais importante deles é justamente a garantia da intersetorialidade, com a existência de um comitê gestor intersetorial”, explicou.

Para Claudia Vidigal, representante no Brasil da Fundação Bernard van Leer, a intersetorialidade pode em alguns momentos parecer um conceito distante, mas, na realidade, “tem potência em termos de política pública por promover a plena integração dos fatores de risco e de proteção que as secretarias de governo podem ofertar”. Como exemplo de sucesso, citou o programa Criança Feliz, do governo federal, cujos coordenadores estaduais passaram recentemente por um curso de capacitação no Insper.

É de responsabilidade do Estado, segundo a Constituição Federal, promover esses esforços na primeira infância, garantindo o direito da criança ao convívio familiar e comunitário, bem como protegendo esse público de toda forma de negligência. “Posteriormente à Constituição, tivemos outra grande evolução no ordenamento jurídico com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que tornou a criança um sujeito de direitos”, disse Vargas. Entre esses direitos está o de saber quem é seu pai. “O Supremo Tribunal Federal considerou que o homem tem que se submeter mesmo contra sua vontade a fazer o teste de paternidade. Afinal de contas, o pai tem obrigações patrimoniais e afetivas para com seu filho”, disse o secretário.

Sobre a parentalidade, conceito que diz respeito ao pai, à mãe e a outros adultos responsáveis pelas crianças, Maria Beatriz Linhares, professora do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, destacou que programas voltados para o fortalecimento da parentalidade positiva previnem a violência contra crianças. “O comportamento dos pais deve estar baseado no melhor interesse da criança, assegurando a satisfação de suas principais necessidades e capacitação, o que envolve cuidar, proteger e guiar a criança pela trajetória até a maturidade com investimento e compromisso”, afirmou.

Para que esse cuidar seja eficaz, é preciso se atentar para fatores fisiológicos que afetam o desenvolvimento infantil, de acordo com Fernando Louzada, professor do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Paraná. “Alimentação, atividade física e sono, quando fornecidos adequadamente para a criança, são protetores e garantem o desenvolvimento adequado”, disse. “O sono é importante para consolidar nossas experiências, especialmente emocionais, e beneficia nossa criatividade.”

Por fim, Rogerio Lerner, professor do Instituto de Psicologia da USP, apresentou um estudo que demonstra a relevância do agente comunitário de saúde para a execução das políticas públicas de primeira infância. “Esse profissional tem papel importante no acolhimento às famílias por ser uma pessoa da comunidade que também faz parte da equipe de saúde, favorecendo a criação de vínculos com os pacientes”, disse Lerner. “O agente comunitário visualiza de perto as dinâmicas familiares, podendo detectar fatores de risco para o desenvolvimento no ambiente em que a criança se insere, bem como promover a saúde emocional das mães.”


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1º Seminário Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância

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