“Não há uma definição universal de mulher. São múltiplas mulheres com diferentes características”, diz a professora Ana Diniz, coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão no Trabalho no Insper
Bárbara Nór
Interseccionalidade. O termo pode até assustar, mas vem ganhando cada vez mais popularidade nas discussões sobre diversidade e inclusão nos últimos anos. Apesar disso, essa ideia não é nova. O conceito de interseccionalidade foi criado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, ativista americana de direitos civis e estudiosa da teoria crítica racial, vertente que examina o racismo como algo naturalizado na sociedade por meio das instituições e leis, e não apenas por indivíduos.
O objetivo de Crenshaw era chamar a atenção para o fato de que, para as mulheres negras, as opressões se articulam: elas enfrentam não só questões ligadas ao gênero, mas também à raça. Isso vale também para outros casos, como mulheres com deficiência ou então de diferentes classes sociais, ou até mulheres mais velhas.
Se todas enfrentam discriminações por algo comum, ou seja, por serem identificadas como mulheres, essas outras características também poderiam trazer outros preconceitos e desafios particulares. “Conjuntos diferentes podem ter pontos em comum, isto é, de intersecção”, diz Ana Diniz, professora e coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão no Trabalho no Insper, além de pesquisadora sobre desigualdade no mercado de trabalho.
Segundo ela, o conceito de interseccionalidade no feminismo tenta dar conta das diferenças existentes entre as mulheres, de forma a tornar as pautas mais inclusivas. “É um convite para pensar as relações de gênero a partir de um olhar que reconheça as diferenças inerentes a essa categoria que chamamos de mulher”, afirma. “E, mais do que um olhar, é algo que nos convoca a agir de forma diferente.”
Na entrevista a seguir, Ana Diniz explica a origem e a importância desse conceito:
Como surgiu a ideia de interseccionalidade?
Olhando para a história dos feminismos, o gênero surge como uma categoria de análise na década de 1950 para tentar explicar como diferenças percebidas entre homens e mulheres eram usadas para justificar sistemas de desigualdades, que limitavam as mulheres a determinados espaços. Era uma preocupação grande discutir, por exemplo, por que as mulheres ficavam em casa, presas a atividades domésticas e sem garantias básicas, como o direito a voto, enquanto os homens ocupavam espaços públicos, no trabalho e no poder, e as implicações disso. A partir das décadas de 1960 e 1970, mulheres negras e lésbicas, em especial, vão olhar para essa discussão e dizer: “Isso é uma pauta relevante, mas ela não necessariamente me representa”. As mulheres brancas defendiam e buscavam essa inserção no mercado de trabalho, por exemplo, enquanto as mulheres negras, até pelas intersecções com condições de classe, já estavam no mercado de trabalho desde sempre, ainda que em posições precarizadas. Aí começou o debate para entender como os movimentos das mulheres poderiam ser mais inclusivos e ter mais diversidade. O conceito de interseccionalidade surge para tentar explicar isso: não há uma definição universal de mulher; são múltiplas mulheres com diferentes características.
Por que isso é importante? Você poderia dar um exemplo de interseccionalidade na prática?
Na minha área de estudo, que é o mercado de trabalho, por exemplo, uma das pautas mais enfatizadas é a questão do teto de vidro. As mulheres entram no mercado de trabalho, ascendem a cargos gerenciais de nível tático, mas não sobem para cargos executivos, de diretoria. Mas, quando olhamos para as mulheres que enfrentam o teto de vidro, elas são em sua maioria mulheres brancas. As mulheres negras ainda estão muitas vezes na base da organização ou têm muitas barreiras para a própria entrada no mercado de trabalho formal. Muitas estão na informalidade e não têm acesso a posições com carteira assinada. Isso mostra como o olhar da intersecção é importante. Precisamos reconhecer essa pluralidade e dar condições para que essas diferenças sejam consideradas em relação a fatores como raça, sexualidade e classe. É impossível avançar a agenda feminista sem reconhecer a interseccionalidade, porque senão teremos tantos pontos não trabalhados que não vamos estar nos movimentando pelas mulheres, mas por um grupo muito específico de mulheres.
Quais os desafios ao tentar pensar a interseccionalidade?
A interseccionalidade não é só um conceito, mas uma prática. Ela foi criada para influenciar a nossa ação e o desenho de políticas, de forma que a gente consiga lidar com diferentes pautas. E na hora de sair dessa discussão para colocar na prática, os desafios são inúmeros. Um deles é por onde começar entre as inúmeras diferenças e as múltiplas formas de desigualdade. Tem o desafio de entender a diferença sem acabar multiplicando tanto que fica impossível lidar com os problemas coletivos. É preciso, ainda, de um esforço para conhecer a realidade de quem enfrenta a desigualdade e que grupos privilegiados problematizem a própria condição de privilégio, para termos mais empatia e condições de reconhecer e se aproximar dessas múltiplas experiências e conseguirmos, coletivamente, avançar as agendas de forma mais consistente.