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Marcos Lisboa, Rita de la Feria e Vanessa CanadoMarcos Lisboa, Rita de la Feria e Vanessa Canado

 

 

Fazia dois anos que a portuguesa Rita de la Feria, professora de direito tributário da Universidade de Leeds, não vinha ao Brasil. Por isso, disse, ficou muito satisfeita com a aprovação da reforma tributária que criou o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), sancionada no início deste ano. “Obviamente poderia ter sido melhor, mas é muito, muito melhor do que o sistema que vocês têm agora”, afirmou, no segundo painel do seminário Instituições, Políticas e Crescimento Econômico realizado no dia 19 de maio no Insper.

 

Porém… há ainda muito a avançar. É preciso pensar nas próximas reformas, porque o sistema tributário tem um papel decisivo no desenvolvimento do país.

 

Tradicionalmente, a política fiscal é pensada como uma solução de compromisso (ou trade-off) entre a eficiência, de um lado, e a equidade de outro. Eficiência seria maximizar o bem-estar, obter melhores resultados com os menos custos, ou seja, aumentar a receita com o mínimo de distorção no comportamento e nas decisões dos agentes econômicos. Equidade, por sua vez, seria o esforço de diminuir desigualdades, conceder tratamento igual para aqueles que estão em mesma situação e diferente para os que estão em situação diversa. “A função do sistema seria chegar a um nível ótimo entre esses dois polos”, disse a professora.

 

Embora bastante real, este não é o único trade-off. Num projeto multidisciplinar, com base em questionários aplicados em 33 países com o apoio de 64 acadêmicos, Rita identificou outros quatro dilemas, que serão esmiuçados no livro Taxation and Inequalities (tributos e desigualdades), a ser publicado em junho.

 

Partindo do pressuposto de que o objetivo da tributação é diminuir a desigualdade, eis as soluções de compromisso que se deve buscar:

 

 

1.     Benchmarking

 

O primeiro dilema é o de como aplicar os impostos. Cada imposto deve ser progressivo (isto é, incidir com mais firmeza sobre os mais ricos)? Ou o conjunto deles deve ser progressivo? Ou, uma terceira via, devemos nos preocupar em arrecadar o máximo e atuar distributivamente apenas nos gastos, por meio de políticas públicas?

 

Todas as políticas adotadas pelos países são híbridas, mas tendem mais para uma das vertentes. O Brasil é um dos raros casos em que se adota a postura de que todos os impostos devam ser progressivos. “Quase ninguém faz isso”, comparou ela. “O IVA, por exemplo, é um péssimo veículo para a progressividade.”

 

Outros países adotam como régua as finanças públicas. Interessa menos se o sistema é progressivo, o que importa é coletar o suficiente e, a partir, redistribuir. “Curiosamente, os países que estão mais preocupados com os gastos são os que têm menos desigualdade: Noruega, Dinamarca, Áustria…”, apontou Rita. “A Dinamarca tem uma alíquota de imposto única de 25%.”

 

Como notou o economista Marcos Lisboa na sessão de debates, a Europa tributa proporcionalmente mais o consumo, enquanto os Estados Unidos tributam mais a renda. Ou seja, seu sistema é bem menos progressivo. “Mas quem reduz mais a desigualdade? A Europa.” A diferença, esclareceu, é a qualidade do gasto. “Na Europa há uma política nacional de educação, mais uniforme, mais homogênea”, que concede mais oportunidades para todos e… torna os países mais ricos.

 

“Este é o primeiro trade-off: queremos que o sistema tributário que colete para gastar bem ou fazemos um sistema progressivo que ataque a desigualdade logo de princípio e estamos menos preocupados com a receita?

 

 

2. Outras políticas

 

Vários países da Europa estão promovendo renúncias fiscais — com tributação menor ou mesmo isenção de impostos — em prol de outras políticas, que consideram mais importantes no momento. O maior exemplo é a atração de indivíduos de alta renda ou altas capacidades, que trazem para o país gastos qualificados (embora tenham incentivos fiscais, ainda contribuem com os impostos sobre consumo e a movimentação geral da economia).

 

Isso ocorre porque, especialmente na Europa, há uma crise demográfica. Ao mesmo tempo em que os europeus em geral fecham suas fronteiras para imigrantes da África e do Oriente Médio, buscam atrair pessoas “mais parecidas com elas próprias”. Por vezes, a preocupação é incentivar setores produtivos, como a tecnologia da informação.

 

“Esses benefícios agudizam a desigualdade”, atesta a professora. “Mas os países estão preocupados com problemas ainda maiores. Sem gente, o país morre.”

 

Uma outra preocupação é ambiental. Criam-se incentivos para energia sustentável, por exemplo, e o lema costuma ser “fair and sustainable”, ou justo e sustentável. “O problema é que o ‘fair' não é sustentável e o sustentável não é justo”, diz. “Há impostos para gasolina ou diesel dos carros, mas os ricos continuam a pegar avião.”

 

A Dinamarca aprovou a taxa da carne. Vários países têm taxas de açúcar. Normalmente, o impacto desses tributos recai mais sobre os mais pobres.

 

São duas preocupações legítimas: combater a desigualdade e proteger o ambiente. “O que não se pode é fechar os olhos para a existência de  um trade-off.”

 

 

3. Outras desigualdades

 

 

Um terceiro dilema é o compromisso que se há de buscar entre desigualdades diferentes. Há várias, além da de renda: de gênero, de orientação sexual, de raça, de cidadania, de idade…

 

“Várias legislações tributárias promovem a proteção de mulheres ou dos idosos, grupos mais vulneráveis”, disse Rita. Quase todos têm, por exemplo, benefícios para cuidar de bebês (como auxílio creche ou subsídios a empresas que tenham creches, ou deduções fiscais para quem contrate uma babá).

 

Essas políticas, afirmou a especialista, têm “efeitos muito positivos na desigualdade de gênero; estudos indicam que as mulheres beneficiadas trabalham mais fora, trabalham mais horas, são mais produtivas”. A questão é que as mulheres beneficiadas são essencialmente as que têm rendas mais altas. "Diminuímos a desigualdade de gênero em detrimento da desigualdade de renda.”

 

Igualmente, todos os países têm regime preferencial para aposentados. “Mas a parcela da população que está se aposentando agora é das gerações mais ricas que temos, com propriedades.” Estamos portanto, disse ela, a não tributar os mais ricos.

 

O recado, portanto, é: temos que decidir, hierarquizar as desigualdades.

 

 

4. políticas econômicas

 

Finalmente, uma coisa é o que as pessoas dizem, outra é o que efetivamente querem. Pesquisas em todos os países revelam que as pessoas se preocupam com a desigualdade da riqueza. Mas, duas ou três perguntas depois, colocamos em nosso questionário o que achavam de impostos sobre herança: “mais de dois terços são contrários”.

 

Impostos sobre a riqueza e impostos sobre a herança, duas das principais políticas de redistribuição de riqueza, tem adoção em declínio em todos os países. Na base do estudo, dez nações já tiveram imposto sobre a riqueza, hoje são três e mais alguns cantões da Suíça.

 

Quanto aos impostos sobre herança, a maioria já teve, mas ou eles foram abolidos ou seus escopo foi muito reduzido — com um teto muito alto a partir do qual ele é cobrado ou mesmo estabelecendo que filhos são isentos (“ou seja, só paga imposto se você deixar a riqueza para um primo”). Ou abrindo brechas, como não cobrar o imposto para quem doar seus bens ainda em vida.

 

“As pessoas dizem que querem diminuir a desigualdade da riqueza, mas é a riqueza dos outros”, resumiu Rita de la Feria. “Existe um apelo em dizer que queremos um sistema tributário justo. Mas essa é uma frase que não acarreta consequências práticas, porque os temas são amplos e pouco definidos.”

 

O que acaba acontecendo, opinou, é que “prometemos coisas que não cumprimos”. Por isso “as pessoas se sentem traídas, e isso alimenta a polarização e o crescimento de propostas políticas extremistas”.

 

 

As distorções brasileiras

 

Além de todos esses dilemas, o Brasil em especial tem uma narrativa que não condiz com a realidade, afirmou Vanessa Canado, professora e coordenadora do Núcleo de Tributação do Insper. “Tirando a reforma do IVA, que conseguimos aprovar depois de 40 anos, a gente tem tratado do sistema tributário de forma fiscal”, disse.

 

O que significa isso? “A despeito de falarem que as mudanças são para melhorar o sistema, ou adequá-lo a padrões internacionais, nosso impostos têm tido uma finalidade de curto prazo: aumentar a receita”, porque o Estado gasta mal e precisa de solvência.

 

“As distorções vêm se acumulando desde a década de 1990, quando criamos a isenção dos dividendos, o lucro presumido, o Simples”, afirmou. A arrecadação foi importante, sem dúvida, permitiu estabilizar o Brasil com o Plano Real, contendo a hiperinflação. “Mas a narrativa é diferente do objetivo real.”

 

Um segundo problema é que as reformas são feitas de forma segmentada. “E aí você pode melhorar um caso mas piorar o sistema como um todo”, diz Vanessa.

 

Há, de acordo com a professora, uma coleção de equívocos na legislação tributária brasileira: desde a tributação de empresas sobre a renda gerada no mundo inteiro em vez de apenas em seus países (o que inibe a internacionalização) até a duplicidade de tributos sobre o lucro (que além de chegarem a 34% de alíquota, têm regras diferentes, com apurações diferentes, e aumentam o custo de conformidade e os litígios).

 

Fora isso, “nós temos regimes de tributação simplificados, como o Simples e o Lucro Presumido, que incentivam as empresas a permanecer pequenas”, considera. Não está sozinha. “Por que país pobre é pobre? Uma das principais razões é porque cria regimes especiais para beneficiar pequenas e médias empresas”, disparou Marcos Lisboa, no debate. “A gente quer ter Simples e Lucro Presumido? Tudo bem, mas vamos ficar um país mais pobre.”

 

Conforme já tinha mostrado Rita de la Feria, a progressividade que o Brasil adota também pode ser um problema. “Até a contribuição sobre folha de pagamentos é progressiva”, notou Vanessa. “Essa tributação é alta no mundo inteiro, até na China. Mas a alíquota de 20% paga pelo empregador criou pressões ao longo do tempo para estabelecer exceções”, disse.

 

Assim, deixamos de tributar voucher cultural, salário maternidade, 13º, adicional de férias, bolsa atleta, plano de saúde, plano dental, contribuição previdenciária privada… “São mais de 30 exceções na lei.”

 

Quando a carga tributária é alta, “cada um faz seu puxadinho para tirar uma parte da base de cálculo do imposto”, explicou a economista. Além de diminuir a arrecadação, geram-se litígios. Um em especial é a Participação nos Lucros e Resultados (PLR). “As empresas preferem pagar o PLR em vez de bônus porque não ele tem incidência de contribuição previdenciária.”

 

Só que isso gera litígios. O Fisco quer cobrar, a empresa não quer pagar. Aí o conflito vai para a Justiça — que diz ora uma coisa, ora outra. “Possibilidade de pagar PLR para um não empregado: houve decisão favorável, e desfavorável; possibilidade de pagar sem autorização do sindicato: favorável, não favorável”, afirmou.

 

 

O momento da mudança

 

Todos esses problemas penalizam o crescimento do país. “Temos muitas questões básicas para considerar, com objetivos menos de curto prazo do que a questão fiscal”, concluiu Vanessa Canado. Dá para começar por elas.

 

“Por exemplo, desonerar a folha não é uma discussão que dê para ter. Custa 500 bilhões de reais, não é factível o governo abrir mão disso”, ponderou. “Mas dá para acabar com as 30 exceções se baixar a alíquota para 15%; ou acabar com pelo menos 20 exceções e criar um teto… não incentivando o planejamento tributário.”

 

Ou seja, “dá para fazer o famoso movimento broad base, low rate (base ampla, tarifa baixa): quanto mais gente paga, menos as pessoas pagam”.

 

Ao final do debate, Marcos Lisboa, que mediava o painel, lembrou que entre 1994 e 2019 (após o Plano Real e antes da pandemia), os países emergentes — Tailândia, Malásia, Índia, China, Polônia, Hungria etc. — aumentaram em quase 130% a renda dos trabalhadores. Nos Estados Unidos, o aumento foi de 48%. Na OCDE como um todo, 35%. E no Brasil… apenas 18%.

 

"Essas distorções da microeconomia estão empobrecendo o Brasil”, finalizou. “Ou a gente começa a fazer uma agenda de fato para enfrentar os problemas, desenhar um sistema tributário consistente, olhar o todo em vez de focar nas partes, levar em conta a pesquisa acadêmica de qualidade, o protocolo de como fazer intervenção… ou o Brasil vai continuar ficando mais pobre.”

 

Há, porém, alguns motivos para otimismo. O primeiro, como salientou o economista Persio Arida, na abertura do seminário, é que a pesquisa econômica já estabeleceu um caminho, uma agenda de bastante consenso sobre o que é preciso para levar o país a um crescimento mais robusto. O segundo ponto ficou a cargo do economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade Columbia: “não é só a agenda, o Brasil construiu um conhecimento acumulado, estamos cheios de gente que sabe o que é preciso fazer”.

 

As mudanças às vezes parecem repentinas, lembrou Edward Glaeser, de Harvard, apontando como exemplo o período de reformas nos Estados Unidos liderado pelo presidente Teddy Roosevelt, no início do século passado — com abertura comercial, preservação ambiental, combate à corrupção, combate aos trustes, direitos trabalhistas. “Essa enorme agenda de reformas aconteceu quase por acaso, quando o presidente William McKinley foi assassinado e Teddy, então vice, assumiu”, disse Glaeser. “Mas ela já vinha sendo preparada havia muito tempo, com gente se convencendo e se instruindo sobre o que fazer… E o Brasil parece estar nessa fase.”

 

Leia também: E se a lei mandasse a gente crescer mais?

 



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