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Vivemos, como país, mais tempo sob um regime de escravidão do que como um país onde o trabalho escravo é ilegal. Foi em 1888 — há apenas 136 anos, portanto — que o Brasil deu fim à escravidão. Em contraste, acumulamos um período de 388 anos como um país escravocrata. E, ao longo desses quase quatro séculos, o Brasil foi o país que mais importou escravizados africanos no continente americano: cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças desembarcaram aqui entre os séculos 16 e 19, o que representa mais de um terço de todo o comércio negreiro.

 

E, como diz Alysson Portella, pós-doutorando e pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI), simplesmente tornar a escravidão ilegal não apaga essa história. Ao longo de séculos, diz o pesquisador, instituições, costumes e ideias trabalharam para manter um sistema excludente e violento para as pessoas negras. Superar essa herança requer abertura para falar sobre nosso passado, o que ainda é um desafio. “No Brasil, temos um costume muito grande de esconder certas coisas, de não discutir certas coisas”, diz Portella. É por isso que datas como o Dia Internacional da Abolição da Escravatura, celebrado em 2 de dezembro, conforme instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ainda importam. Veja mais na entrevista a seguir.

 

Qual a relevância, ainda hoje, de datas como o Dia da Abolição da Escravatura para o Brasil? 

 

A escravidão faz uma organização da produção muito exploratória, literalmente obrigando uma pessoa a trabalhar de graça. Para isso, precisa de níveis de repressão e violência extremamente altos. Em Ouro Preto, por exemplo, você vê no museu os grilhões usados para prender uma pessoa com ferro nos pescoços, pés e mãos para não fugir. Nós não paramos para pensar, mas realmente usavam aquilo. Então imagina o nível de violência à qual você submete uma pessoa e o nível de desumanização necessário para que a sociedade possa fazer isso. Na economia, nós falamos de path dependence — o quanto o que aconteceu no passado ajuda a explicar as trajetórias que países e Estados vão percorrer por meio das instituições. Para manter esse estilo de produção escravagista, foi preciso desenvolver instituições extremamente repressivas e violentas, e que vão se mantendo ao longo do tempo. É muito difícil mudar essa estrutura. Então a abolição da escravidão foi, lógico, um passo muito importante, mas as coisas não mudam tão rapidamente assim.

 

Quais são exemplos da forma como essas instituições acabaram perdurando mesmo com a abolição da escravatura? 

 

Havia uma ideia da pessoa escravizada como bárbara, sem cultura. O escravizado que não queria trabalhar era porque estava fazendo corpo mole, era preguiçoso, ou era ignorante, não sabia ler. As pessoas falavam: “Esse cara tem sorte que nós tiramos ele da África, daqueles países bárbaros, e trouxemos para o cristianismo”. Mesmo com a abolição da escravidão, essas crenças vão se perpetuando. O Estado e instituições formais que serviam para oprimir essa população, como a polícia, vão se mantendo. No Brasil, a polícia mata muito mais jovens negros que brancos. É um aparato repressor, que em sua origem teve essa relação com a escravidão. Nós temos uma parcela da população que é tida como descartável — escutamos frases como “bandido bom é bandido morto”. E de onde vem essa ideia de que faria bem à sociedade matar uma pessoa ou excluir uma pessoa, ou dizer que ela não merece ter educação, ou que nós não temos que gastar dinheiro com essa pessoa? São discursos e instituições que se perpetuam e têm origem lá atrás.

 

E o quanto isso ainda impacta nas desigualdades sociais que temos hoje no Brasil? 

 

Nós temos essa sociedade extremamente desigual e isso não é produto do acaso. Inclusive, há estudos mostrando que países e regiões que mais fizeram uso do trabalho escravizado são mais desiguais atualmente. Como já comentei, as estruturas estatais e sociais repressivas vão se perpetuando e continuam excluindo pessoas sistematicamente, especialmente pessoas negras. Isso também tem relação com os grupos que detinham o poder político e econômico e a maneira como esse poder se mantém. Sobre a elite brasileira no passado, nós falamos muito dos cafeicultores, mas as pessoas mais ricas do Brasil eram na verdade traficantes de escravizados. Esses grupos detinham o poder econômico político e se beneficiavam de ter uma mão de obra escravizada. Após a abolição, manter uma boa parte da população em estado de exclusão também beneficia, porque você tem uma mão de obra mais barata.

 

Nas últimas semanas, vem ocorrendo um debate intenso sobre o fim da jornada de trabalho 6x1, que muitos apontaram ser um resquício de uma cultura escravocrata. O que acha disso? 

 

Talvez aí seja um pouco longe demais. Todas as sociedades, na verdade, passam por isso. Se pensar na Inglaterra, na Revolução Industrial, as pessoas trabalhavam 14, 16 horas por dia. Essa grande exploração do trabalho é um processo histórico que aconteceu em diversos países. Lógico, isso tem mudado nos últimos 100, 150 anos, teve uma luta sindical e trabalhista muito forte para impor reduções na jornada de trabalho. Mas há, sim, uma relação indireta com a escravidão — nós realmente temos uma população que é muito marginalizada e que não teve acesso à educação, por exemplo, que acaba relegada a trabalhos mais elementares e fica muito sujeita a situações de maior exploração e de cargas excessivas de trabalho.

 

E isso é resultado também de uma política de Estado excludente em relação às pessoas negras? 

 

No Brasil, a maioria da população, branca ou negra, na verdade, nunca teve nenhum suporte do Estado. E sempre foi muito difícil democratizar o Brasil — nossa democracia é extremamente recente e, para ser sincero, ela é plena só desde 1988 porque ainda antes do golpe militar de 1964, analfabeto não votava, por exemplo. Então muitas pessoas eram excluídas do processo político. O Brasil teve poucas experiências de inclusão social. Nós sempre tivemos um Estado muito ausente em prover bens públicos para a grande massa da população. Com certeza nunca teve um interesse em garantir bens públicos básicos para a população, como educação, saneamento, saúde. Na verdade, é um Estado que sempre atuou muito para garantir o status de certos grupos políticos e econômicos. Pense em Getúlio Vargas comprando café durante a crise de 1930. O Estado achou mais interessante financiar a compra de café do que financiar a educação pública. Durante o Estado desenvolvimentista no pós-guerra, também achou mais interessante financiar universidades e cursos técnicos do que cursos de alfabetização e ensino primário.

 

Que medidas seriam necessárias para conseguirmos mudar essas instituições que perpetuam essa desigualdade? 

 

Mudar instituições é muito difícil, infelizmente. A questão da democratização já foi um processo muito importante nessa direção. Excluir as pessoas do processo político é uma forma também de depois excluí-las economicamente, já que elas não estão ali para fazer seus interesses serem ouvidos. Então é um processo lento que nós começamos a construir a partir dos anos 1990. Não tem bala de prata, nós temos que ter muita consciência disso. É preciso um diálogo constante sobre o nosso passado, nosso presente e nosso futuro. No Brasil nós temos um costume muito grande de esconder certas coisas, de não discutir certas coisas e acho que isso é péssimo. Nós não podemos esconder nosso passado, precisamos discutir essas coisas, precisamos discutir a questão da violência policial, que teve um direcionamento contra pessoas negras — inclusive, a maior coleção de objetos afro-brasileiros estava sob tutela da polícia civil do Rio de Janeiro até ser transferida, em 2020. Isso fala muito sobre nós. Nós precisamos discutir esse tipo de coisa, entender que nossa política tem um passado e um presente. Nós precisamos ter esse debate sincero para tentar mudar.

 



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