A ética é mutável, adaptável e não universal, de forma que, muitas vezes, sequer é considerada nas escolhas humanas
Sávio da Silva de Souza
O dicionário Oxford Languages define ética como o “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, grupo social ou sociedade”. O filósofo brasileiro Clóvis de Barros Filho explica, no entanto, que esse “conjunto de regras” citado no verbete não é “uma tabela pronta” com todas as condutas humanas elencadas e enquadradas em “pode” ou “não pode”, visto que a humanidade lida com situações inéditas cotidianamente. Para o pensador, na verdade, a ética está relacionada à liberdade humana de decidir, isto é, à chance de cada um, a partir do contexto e de seus valores pessoais, definir o que fazer ou não. Inacabada e relativa, a ética é, em certa medida, frágil, volátil e nem sempre considerada nas milhares de escolhas realizadas todos os dias.
De acordo com Dan Ariely, em seu livro “Previsivelmente Irracional”, os seres humanos possuem um monitor interno de desonestidade, o superego, formado a partir da assimilação das virtudes sociais ao longo da vida do ser humano, que, em geral, capta somente grandes desvios de conduta, permanecendo inativo nas pequenas transgressões. Por exemplo: assinar a lista de presença por um colega que faltou não chega a prejudicar ninguém, apesar de antiético. Falcatruas minúsculas como essa estão permeadas no cotidiano: quase insignificantes, porém muito volumosas, podendo causar estragos enormes.
Ariely exemplifica: “Estima-se que, quando os consumidores informam perdas em suas casas e carros, criativamente aumentam seus pedidos de indenização em 10%. […] Não é que existam muitos pedidos de indenização completamente fraudulentos; a realidade é que muitas pessoas que perderam, digamos, uma televisão de 27 polegadas, informam uma perda de um aparelho de 32 […]. Essas mesmas pessoas dificilmente furtariam dinheiro direto das seguradoras (por mais tentador que às vezes possa ser), mas informar o que já não possuem mais – e aumentar seu tamanho e valor só um pouquinho – torna o ônus moral mais fácil de aturar”.
Em complemento, o autor observou, experimentalmente, que, ao trocar o dinheiro por instrumentos semelhantes, como fichas que valem um determinado valor, o filtro de honestidade também é enfraquecido, e as pessoas tornam-se mais dispostas a burlar as regras: “Nada disso tem lógica, mas quando o meio de troca não é monetário, nossa capacidade de racionalizar aumenta muitíssimo. […] Quando lidamos com ele [o dinheiro], somos sensibilizados a pensar em nossos atos como se tivéssemos acabado de assinar um código de honra. Ao examinar uma nota de $1, de fato, percebemos que ela parece desenhada para nos lembrar um contrato”.
Os danos causados pelos pequenos delitos na sociedade encontram um exemplo nítido no filme Bad Education, dirigido por Cory Finley. Nele, o diretor escolar Frank Tassone mostra-se um homem honesto e genuinamente preocupado com o bem-estar de seus alunos, mas, às escondidas, opera um esquema milionário de desvio de verba pública direcionada à escola que administra. O mais interessante é, no entanto, como o esquema começou: Tassone pagou, acidentalmente, com o cartão público um jantar. Percebendo que não haveria nenhuma consequência, passou a gradativamente aumentar os gastos. Ou seja, um pequeno delito, 20 dólares, quitado não em dinheiro, mas com um cartão, deu origem ao maior escândalo do sistema educacional dos Estados Unidos da América.
A obra demonstra ainda a importância de meios de vigilância para garantia do cumprimento das leis: a corrupção poderia ser evitada se os responsáveis de fato fiscalizassem os gastos. Além disso, quando em posse, metaforicamente, do que Platão representou como o Anel de Giges, as pessoas tendem a agir em benefício próprio, isto é, quando não observadas, sentem-se mais confortáveis a ignorar a ética.
Ariely aponta para o papel de códigos morais nas escolhas individuais: em um experimento no qual dois grupos de estudantes tiveram a oportunidade de adulterar o número de acertos em uma prova, observou-se que os alunos aos quais foi pedido que escrevessem os Dez Mandamentos antes de responder às questões acertaram uma quantidade similar de perguntas em relação a um terceiro grupo, que não pode trapacear. Já o grupo que não precisou citar os preceitos bíblicos “acertou” mais respostas.
Para o autor, o mais impressionante, no entanto, é que “os alunos que só conseguiam se lembrar de um ou dois mandamentos foram tão afetados quanto aqueles que se lembraram de quase todos”. Isso indica que não foram os mandamentos em si que encorajaram a honestidade, mas a mera contemplação de algum tipo de parâmetro moral.
Em síntese, a ética é mutável, adaptável e não universal, de forma que, muitas vezes, sequer é considerada nas escolhas humanas. Portanto, a predisposição do homem à desonestidade exige que medidas sejam tomadas a fim de garantir o cumprimento das leis, seja através do monitoramento, seja por meio da rememoração dos códigos morais que sustentam a sociedade.
Fontes:
ARIELY, Dan. Previsivelmente Irracional: as forças invisíveis que nos levam a tomar decisões erradas. 1° Edição. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.
BAD EDUCATION. Direção: Cory Finley. Estados Unidos: HBO Films, 2019.
CAFÉ FILOSÓFICO CPFL. Ética do Cotidiano. Youtube, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9_YnlPXKlLU&t=2705s. Acesso em: 21 abr 23.
OXFORD LANGUAGES. Ética. Disponível nest link. Acesso em: 21 abr 23.