Depois de um longo declínio, a General Electric está se dividindo em três. É o maior símbolo do final da era dos grandes grupos diversificados — mas as empresas de tecnologia vão em outra direção
David Cohen
O fim de uma era costuma ser um longo processo, mas em geral aponta-se um único evento para simbolizar a mudança — algo como a queda de um meteoro para resumir a extinção dos dinossauros ou a tomada da Bastilha para se referir à Revolução Francesa. O desmembramento da General Electric, deflagrado no começo deste ano com a separação da GE Healthcare e programado para terminar no início do ano que vem com uma nova cisão, das divisões de energia e de aviação, é um destes eventos simbólicos. Como afirmou o diário The Wall Street Journal, o fim da GE como nós a conhecíamos “vira uma página na moderna história dos negócios”, encerrando a época de domínio dos conglomerados industriais.
Na virada do milênio, a GE vivia seu auge. Era o maior exemplo do poderio das grandes corporações: seu valor de mercado, de cerca de meio trilhão de dólares, fazia dela a maior empresa aberta do planeta; entregava, trimestre após trimestre, resultados sempre um tiquinho acima do previsto; seu executivo-chefe era tido como o melhor do mundo, sua escola de liderança inspirava inúmeras outras. Neste novo século, no entanto, sofreu baque após baque. O gigante se desmilinguia. E não conseguiu resistir à nova corrente, que favorecia empresas ágeis, focadas, simples — menores.
“O desmantelamento dos conglomerados começou fortemente em 2016”, lembra Carlos Caldeira, professor de estratégia e coordenador do Centro de Estudos em Negócios (Ceneg) do Insper. Foi uma onda que atingiu a Siemens, a ABB, a Johnson & Johnson, a Honeywell, a Hewlett Packard, a DowDupont, a Toshiba, a Westinghouse…
Neste período já estava claro que os investidores punem as empresas diversificadas demais. Acadêmicos e analistas identificaram um desconto de quase 10% no valor de mercado dos conglomerados em relação a empresas semelhantes que se mantêm focadas em uma única indústria. “A maioria absoluta da literatura recomenda o desmantelamento dos conglomerados”, diz Caldeira.
O motivo clássico é que companhias de setores diferentes exigem estratégias diferentes e, embora possam existir algumas sinergias operacionais e de outros tipos, sua união dispersa a atenção dos gestores e as diferentes divisões sofrem por má alocação de recursos e demora nas decisões.
Um relatório da consultoria McKinsey, de 2017, aponta que a diversidade financeira pode ser tão relevante quanto a diversidade estratégica. Quer dizer: negócios com estruturas de receita, margens de lucro, necessidade de capital ou nível de crescimento muito diferentes também impõem perdas de eficiência na gestão, porque a complexidade do portfólio exige métricas diferentes, horizontes de tempo diferentes, ambições diferentes.
“Há mais de 40 anos já se fala na academia que o conglomerado vai acabar”, diz Caldeira. Porém, nem sempre a lógica das análises é aplicada no mundo real. “Talvez haja um problema de agência”, arrisca o professor. “Porque, para o executivo-chefe, expandir o negócio é interessante. A empresa cresce, ele tem mais status, recebe uma compensação maior.”
Nos anos 1960, os Estados Unidos testemunharam uma primeira leva de conglomerados. Naquela época, a Europa e o Japão ainda não haviam se recuperado completamente da devastação da Segunda Guerra Mundial e as empresas americanas reinavam praticamente absolutas no mercado. As oportunidades estavam por todo lado e a fusões de negócios não relacionados entre si eram avaliadas com menos rigor pelos reguladores.
As ineficiências desses impérios acabaram por forçar seu desmonte quando a concorrência europeia e japonesa cresceu. Nas décadas de 1980 e 1990, contudo, os conglomerados voltaram a aparecer nos Estados Unidos. Desta vez, seu surgimento foi facilitado por mudanças nas regras antitruste. Os novos conglomerados agrupavam negócios com características semelhantes: estruturas organizacionais, padrões de desenvolvimento de produtos, práticas de venda e marketing etc.
Ainda assim, as sinergias — pelo menos em tese — não compensam a dispersão de atenção e as dificuldades de gerir negócios díspares.
“Talvez o único grande grupo industrial diversificado que desafiasse essa lógica econômica tenha sido a GE”, afirma um artigo publicado em 2021 pela consultoria Harbor Research. “Sob a liderança de Jack Welch, ela continuou crescendo em valor durante os anos 1980 e 1990 (em larga medida alimentada pelo negócio de serviços financeiros). Mas, depois de Welch, o valor de mercado da GE estagnou, depois declinou gradualmente e, nos últimos anos, sofreu o mesmo inevitável destino, tornando-se uma sombra de sua antiga glória.”
O problema dessa análise é que ela leva a crer que houvesse um herói no comando e, quando ele se aposentou, a situação da companhia degringolou. A realidade é um tanto mais complicada que isso. Ao que tudo indica, a gestão de Jack Welch criou as próprias armadilhas que mais para a frente, em um contexto mais desafiador, fizeram com que a empresa declinasse.
Curiosamente, nos primeiros quatro anos depois que assumiu a liderança da GE (em 1981), Welch não pensou em expansão. Ao contrário, tratou de enxugá-la. Livrou-se de mais de uma centena de unidades de negócios e cortou mais de um quarto dos postos de trabalho. Ganhou até o apelido de Neutron Jack, uma alusão à bomba de nêutrons, uma arma desenvolvida para matar as pessoas, mas deixar os prédios intactos.
Os cortes faziam sentido, a GE passava então por uma crise, com resultados medíocres e falta de foco. Uma vez ajeitada a situação, Welch manteve a prática de demitir pessoas regularmente. Cada chefe de equipe avaliava seus funcionários e a cada ano os 10% com piores notas eram mandados embora. O sistema foi copiado por inúmeras empresas, incluindo a Microsoft (que o abandonou há mais de uma década) e a Amazon (que ainda o utiliza).
Com a casa limpa, Welch perseguiu uma agressiva estratégia de crescimento. Comprou a empresa de eletrônicos RCA e a rede de comunicação NBC e criou uma divisão de serviços financeiros. Pilotou como ninguém as expectativas dos investidores, manipulando a contabilidade das diversas empresas para consistentemente bater as previsões de receita dos analistas, quase sempre entregando um resultado 1 centavo por ação acima do objetivo.
Para fazer isso, valia-se da vantagem de comandar um conglomerado. Ele equilibrava as contas e os investimentos das diversas unidades de negócios de forma a bater sempre os altos e baixos de cada mercado.
Nos 20 anos sob seu comando, o valor de mercado da GE foi multiplicado por 33, passando de 14 bilhões de dólares para mais de 410 bilhões de dólares.
Essa valorização toda, compreendeu-se mais tarde, estava baseada em um otimismo exagerado dos investidores sobre a sustentabilidade dos resultados da GE e mesmo sobre a firmeza de seus ativos. Enquanto o cenário lhe era favorável, a companhia cresceu, prosperou e encantou. Mas cenário nenhum fica estático. E um bicho grande como a GE tinha muitas interfaces para ser abalroada.
O primeiro grande baque se deu apenas alguns dias depois da passagem de bastão de Jack Welch para o sucessor que ele próprio escolheu, Jeff Immelt. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 provocaram uma crise de mais de um ano no setor de aviação. As encomendas de turbinas e outras peças para jatos foram praticamente a zero de uma hora para outra.
Sete anos depois, a crise de 2008 quase abateu a companhia. Ficou claro então que o braço financeiro da GE agia com uma alavancagem temerária. E este setor era a principal herança de Welch, que o havia transformado em maior motor do grupo. Cerca de um terço do capital da GE Capital provinha de empréstimos de curto prazo no mercado financeiro (que usava como forma mais barata de financiamento). Na crise, a fonte de recursos secou. A divisão teve de ser socorrida pelo governo, o valor de mercado da GE tombou mais de 40% e ela precisou retornar às suas raízes de manufatura.
A gestão de Immelt foi marcada pelo gradual encolhimento da companhia. Sob maior escrutínio, em 2009 a GE foi multada em 50 milhões de dólares pelas prática (herdada de Welch) de contabilidade imprópria, que se esquivava de reportar resultados financeiros negativos. As divisões de plásticos, de aparelhos domésticos e de água foram vendidas. O grupo também se livrou da NBCUniversal.
O enxugamento continuou sob o comando do sucessor de Immelt, John Flannery. Em 2017, o valor da companhia caiu mais 45%, em meio a um corte de 12 mil funcionários em todas as divisões. Em meados de 2018, o valor das ações da GE havia caído tanto que ela foi retirada do índice Dow Jones de 30 grandes empresas americanas. Era a última empresa do índice original, criado em 1896, e estava ininterruptamente no clube havia 101 anos.
Alguns meses depois, Flannery foi substituído por Larry Culp. Em mais um sinal de desvanecimento da aura que a GE um dia teve, Culp era o primeiro executivo-chefe contratado de fora da empresa. Até então, a GE se orgulhava de formar seus próprios líderes, de acordo com sua própria cartilha. Em novembro passado, esta tradição sofreu mais um golpe: a empresa fechou o centro de treinamento de Crotonville, que em seu auge chegou a ter orçamento de 1 bilhão de dólares para formação de líderes internos.
Culp vendeu mais unidades de negócios, promoveu mudanças em quase toda a cúpula da companhia, reduziu o tamanho dos escritórios e da burocracia, pagou 75 bilhões da dívida da empresa. Seu plano era manter as atividades diversificadas características de um conglomerado — embora mais enxuto.
Estava amparado por boa parte de seus principais acionistas. O Trian Fund, que em 2015 comprou participação na GE, defendia na época o modelo de conglomerado. “Não é algo que você queira quebrar”, disse o cofundador do Trian, Nelson Peltz. “É algo que você quer manter.”
Um novo baque em 2019 — a pandemia de covid-19 — interrompeu a trajetória de recuperação das ações. O negócio da aviação, a unidade mais lucrativa do grupo, foi mais uma vez duramente atingido. E Culp acabou se rendendo à ideia de desmantelar o conglomerado.
Em novembro de 2021, a GE anunciou o plano de desmembrar suas atividades em três companhias separadas: a principal, o negócio de aviação, vai se chamar GE Aerospace e terá Culp como executivo-chefe. A divisão de saúde, GE Healthcare, tornou-se uma empresa separada em 4 de janeiro deste ano, sob o comando de Peter Arduini. A separação final será da divisão de energia, prevista para 2024, que deverá se chamar GE Vernova (combinação das palavras “verde” e “nova”, indicando a dedicação a fontes de baixo carbono).
E assim se desfaz o maior símbolo dos conglomerados do final dos últimos 50 anos. Pode-se considerar, como fez o Wall Street Journal, que é o fim de uma era. No entanto, os conglomerados ainda estão por aí. Seriam remanescentes perdidos de um tempo que já passou?
Mais ou menos. “Fora dos Estados Unidos, o mercado parece punir menos os conglomerados”, diz Caldeira. E há, talvez, algumas condições que equilibrem as pressões contra eles.
No Brasil, por exemplo, “há quatro hipóteses para a manutenção dos grandes grupos de negócios”, afirma o professor. A primeira é falta de pessoal qualificado. Nesse caso, um conglomerado tem a vantagem de poder transferir seus talentos de uma divisão para outra, ganhando eficiência.
A segunda hipótese é baseada na complicada composição acionária dos grupos empresariais brasileiros. Numa empresa, um grupo tem 51% de participação; noutra, 33%; numa terceira, 49% e por aí vai. “No final, estou surfando no capital dos outros.” Em vez de se sujeitar às pressões do mercado aberto, esses grupos conseguem capital por meio dessas sociedades, um fenômeno comum na América Latina, na China, na Índia.
Um terceira hipótese, ligada à segunda, é que há por aqui poucas famílias com uma enorme rede de relacionamento. “Isso facilita as misturas dentro de grandes grupos, como as keiretsu japonesas”, diz Caldeira.
Finalmente, há a hipótese de indução do governo. “Imagina que eu quero desenvolver um setor novo, como o Proálcool. É mais fácil dialogar com 50 startups ou com um único grande grupo?”, observa.
Também não se pode ignorar que, mesmo nos Estados Unidos e na Europa, enquanto na maior parte das indústrias o conglomerado está em extinção, na mais dinâmica delas — o setor de tecnologia — ele parece andar em alta. Meta, Alphabet, Amazon, Microsoft, Apple dão mostras constantes de ocupação de áreas contíguas a seus negócios de origem (e às vezes nem tão contíguas assim). Meta e Alphabet, aliás, são nomes criados justamente para deixar claro que as organizações almejam controlar setores bem mais amplos do que os que estavam sob a alçada das empresas originárias (Facebook e Google).
Talvez haja uma explicação razoável para o ímpeto de formar conglomerados. Como defendia o professor de Harvard Clayton Christensen, um dos maiores gurus da inovação, uma estratégia de defesa contra concorrentes menores que ameacem a companhia é… comprá-los. E formar divisões que atuem de forma independente. Mais do que sinergias, os grandes grupos talvez forneçam uma espécie de apólice de seguro — a companhia talvez morra, mas sua riqueza será herdada por um parente.
Também há o fato de que, num setor em crescimento tão rápido, que favorece a concentração de mercado, é difícil perceber o prêmio que os investidores pagariam pela dissolução dos conglomerados.
É possível que o fim dos conglomerados seja então, não um sinal de vitalidade, mas ao contrário, um sinal de que a indústria entrou na fase de declínio. Nessas horas, os gestores se preocupam e em geral aceitam as pressões de investidores para buscar agilidade, inovação, enxugamento.
A grande questão, diz Caldeira, do Insper, é: “Será que separar é a resposta?”.