Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec, avalia os impactos do novo regulamento da União Europeia que faz exigências sobre desmatamento além do que prevê a legislação brasileira
Em dezembro de 2022, a União Europeia chegou a um acordo sobre o texto de seu Regulamento sobre Produtos Livres de Desmatamento (EU Deforestation-free Regulation). O objetivo é limitar o desmatamento causado por atividades florestais e agrícolas em todo o mundo. Pela primeira vez, empresas que vendem determinados produtos no bloco europeu poderão ser punidas caso se constate que tenham contribuído para o desmatamento.
A legislação estabelece regras obrigatórias de diligência devida (due diligence) para empresas na União Europeia que importam uma série de produtos. A lista inicial inclui carne bovina, soja, café, cacau, madeira, borracha e óleo de palma, bem como seus derivados (como couro, móveis e chocolate). Operadores e comerciantes terão de provar que os produtos são livres de desmatamento (produzidos em terras que não foram sujeitas a desmatamento após 31 de dezembro de 2020) e legais (conforme as leis aplicáveis no país de produção).
Em 2022, a União Europeia importou 25,6 bilhões de dólares em produtos do agronegócio brasileiro, ou 16% do total, atrás apenas da China. Entre os principais itens comprados pelos europeus estão soja, café, produtos florestais, cereais e carnes. Como os europeus são grandes consumidores desses e outros produtos agropecuários, acredita-se que a nova legislação poderá eliminar uma parte significativa do desmatamento global e da degradação florestal, reduzindo assim as emissões de gases de efeito estufa e a perda de biodiversidade. O Conselho e o Parlamento Europeu terão agora de adotar formalmente o novo regulamento antes da sua entrada em vigor. Assim que o novo regulamento for adotado, os operadores e comerciantes terão 18 meses para implementar as novas regras.
Na entrevista a seguir, o engenheiro agrônomo Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), comenta os possíveis impactos do novo regulamento europeu sobre o agronegócio brasileiro, particularmente sobre o setor de carne bovina. A União Europeia é a terceira maior compradora de carne bovina brasileira (cerca de 800 milhões de dólares em 2022), atrás da China e dos Estados Unidos.
“Não temos hoje outro mercado que pague o mesmo preço que os europeus por cortes de carne mais nobres, como filé mignon, contrafilé e alcatra. Por isso é importante mantermos a Europa como um mercado prioritário”, afirma Sampaio. Ele chama a atenção, contudo, para o fato de a nova regulamentação europeia fazer exigências que vão além do que é requerido pela legislação brasileira em relação ao desmatamento. “Esperamos trabalhar com a Europa em cooperação, discutindo como as novas regras vão ser implementadas, para evitar mecanismos que excluam regiões e produtores, o que seria muito contraproducente.”
Confira a entrevista:
O Conselho e o Parlamento Europeu entraram em acordo sobre o texto da legislação que estabelece regras obrigatórias de diligência devida para importadores de commodities associadas ao desmatamento e à degradação florestal. Qual é a sua opinião sobre esse texto?
Essa regulamentação é parte de um pacote que os europeus chamam de Green Deal, uma tentativa de esverdeamento da economia europeia. A Europa é um grande mercado consumidor e compra vários produtos que se originam em regiões que hoje sofrem com o desmatamento. As regiões que estão mais no foco da preocupação europeia são o Sudeste Asiático, por causa do óleo de palma, e a América do Sul, particularmente o Brasil, por causa da soja e da pecuária. Os europeus querem garantir que aquilo que estão comprando não contribuiu para o desmatamento. Qual é a nossa visão a respeito disso? No passado, sofremos com algumas restrições impostas pela Europa, principalmente na questão sanitária. Em 2008, os europeus passaram a exigir que as nossas fazendas fossem habilitadas para exportação, estabelecendo critérios sanitários além do necessário para garantir a sanidade dos produtos. Isso restringiu o volume exportado pelo Brasil para a Europa, o que teve uma consequência negativa para os próprios europeus, porque a carne acabou ficando mais cara para os consumidores da região. Entendemos que a questão do desmatamento é importante e deve ser endereçada, mas não acreditamos em medidas excludentes. Os europeus costumam colocar a régua lá em cima e, caso você não atenda às exigências, fica excluído do fornecimento. Mas é preciso levar em conta que o fato de o Brasil estar inserido no mercado global contribuiu para que a pecuária melhorasse sua eficiência e, por consequência, melhorasse também o seu desempenho ambiental. A produtividade da nossa pecuária cresceu muito nos últimos anos, justamente porque estávamos no mercado produzindo e exportando. O mercado puxa a eficiência e melhora a pegada ambiental. Por isso, esperamos trabalhar com a Europa em cooperação, discutindo como as novas regras vão ser implementadas, para evitar mecanismos que excluam regiões e produtores, o que seria muito contraproducente.
Existe espaço de diálogo com a União Europeia para negociar pormenores mais favoráveis ao Brasil?
Acredito que sim. Em janeiro deste ano, tivemos a visita do vice-presidente executivo da Comissão Europeia para o Green Deal, Frans Timmermans. Ele esteve no Brasil e em outros países da América do Sul para discutir a próxima conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, a COP28. Estamos hoje num clima muito melhor para estabelecer esse diálogo por meio da diplomacia. Acredito que podemos discutir os detalhes técnicos da regulamentação e ver a melhor maneira de ela ser implementada.
Como os frigoríficos brasileiros estão se preparando para atender às exigências mais rigorosas previstas no texto acordado?
Os frigoríficos já estão preparados há um bom tempo. Em função de compromissos assumidos com o Ministério Público e com a sociedade, o setor começou a fazer o monitoramento socioambiental da origem da matéria-prima em 2009. Desde então, houve uma evolução muito grande. No início, só conseguíamos consultar a lista do Ibama para ver se havia ou não embargos ambientais em determinada área. Com o tempo, começamos a geolocalizar todas as propriedades na Amazônia de onde vinha o gado para o frigorífico. Depois passamos a usar também o Cadastro Ambiental Rural (CAR) como uma ferramenta para entender de onde a produção estava vindo e qual era o risco socioambiental associado. Qual era a grande dificuldade? O frigorífico conseguia controlar a situação da fazenda da qual comprava o gado, mas não sabia por onde os bois haviam passado antes de chegar a essa fazenda. Esse era o grande problema, mas hoje já existem ferramentas para a indústria fazer o controle também do fornecedor indireto. Hoje o frigorífico consegue identificar de quem seu fornecedor direto comprou e fazer a mesma análise para ver se ele tem área de desmatamento, se está dentro da lei. As ferramentas existem e já estão funcionando. A produção exportada atualmente para a Europa, de certa forma, já é segregada, pois é fornecida por fazendas que têm a rastreabilidade do Sisbov [sistema oficial de identificação individual de bovinos e búfalos, que permite rastrear o animal desde o nascimento até o abate]. Portanto, não é difícil tecnicamente atender ao que está sendo solicitado pelos europeus. Agora, existem ainda dúvidas que precisam ser esclarecidas, porque a regulamentação diz que o responsável pela due dilligence é o importador. Mas como vai ser esse processo de diligência devida? Quais serão os critérios? Como o desmatamento vai ser medido? São perguntas que estão no ar e esperamos que sejam respondidas ao longo do período de negociação.
Se não há dificuldade técnica, qual seria o principal empecilho para atender às exigências europeias?
A legislação europeia fala em desmatamento zero, seja legal ou ilegal. Já a legislação brasileira, pelo Código Florestal, permite que o desmatamento aconteça dentro de certas condições. Portanto, um produtor pode ser impedido de exportar para a Europa mesmo tendo feito o desmatamento de acordo com o que foi autorizado pela legislação brasileira. Que tipo de incentivo ou compensação pode ser oferecido a esse produtor para evitar o desmatamento legal? Esse é um ponto ainda passível de discussão.
A Europa não é a principal importadora da carne brasileira, mas sua nova legislação pode influenciar o comportamento da China, hoje a maior compradora da carne do Brasil?
Primeiro, é preciso entender que, apesar de ter diminuído bastante o volume de carne comprado do Brasil, a Europa é um mercado extremamente relevante, sobretudo em termos de valor — enviamos para lá os cortes mais nobres, pelos quais conseguimos um preço melhor. Então, mesmo tendo diminuído sua participação nas compras da carne brasileira em relação à China, ao Oriente Médio e a outros países, a Europa ainda é um mercado muito importante para o Brasil. Não temos hoje outro mercado que pague o mesmo preço que os europeus pagam por cortes de carne mais caros, como filé mignon, contrafilé e alcatra. Por isso, é importante mantermos a Europa como um mercado prioritário.
O segundo ponto é que existem outros países que estão preparando regulamentações com o objetivo de evitar o desmatamento importado, como o Reino Unido e os Estados Unidos, e a discussão também está chegando à China. Portanto, existe, sim, a possiblidade de a legislação europeia influenciar o que está sendo feito em outros mercados. É por isso que precisamos negociar para chegarmos a algo que seja factível, que possa ser implementado e que, sobretudo, não seja excludente.
Do ponto de vista da sustentabilidade, como se posiciona a carne brasileira no mercado global?
Temos dois grandes trunfos a nosso favor. O primeiro é o Código Florestal — não há nenhum outro país com uma legislação sobre o tema tão avançada quanto a do Brasil, ainda que se possa criticar a lentidão na implementação de alguns de seus mecanismos. Outro trunfo são as tecnologias agropecuárias de baixo carbono desenvolvidas pela Embrapa e por outros centro de pesquisa no país. Nossa produção pecuária é predominantemente no pasto, e o pasto bem manejado pode ser um grande sumidouro de carbono. Diferentemente de outros países, temos condições de aumentar a produção e reduzir a pegada de carbono da pecuária não só com a restauração de pastagens, mas também com a integração lavoura- pecuária-floresta e com uma série de tecnologias que estão sob o guarda-chuva da agricultura de baixo carbono. Mas qual é o nosso calcanhar de Aquiles? É o desmatamento ilegal. Nos últimos 15 anos, a área da pecuária diminuiu no país, mas a produção aumentou, porque houve um avanço na produtividade. A pecuária se tornou mais eficiente, mas, ao mesmo tempo, temos uma outra realidade na fronteira agrícola. Quando alguém desmata um pedaço de terra na Amazônia, a primeira coisa que surge é o pasto, uma vez que o boi é usado para fazer a ocupação. Não é que o Brasil precise disso para produzir mais. Hoje, mais de 90% do desmatamento na Amazônia é ilegal. Esse é o grande problema. Precisamos reforçar as estratégias de comando e controle para, de fato, coibir o desmatamento ilegal e a grilagem de terras públicas. É esse boi irregular desse desmatamento ilegal que pode contaminar o resto da cadeia produtiva.
Você vê perspectivas de melhora nesse quadro?
Temos esperança de uma mudança de rumo dentro dos órgãos responsáveis pelo comando e controle. Estamos vendo uma retomada nos planos de controle do desmatamento na Amazônia e um reforço de órgãos como o Ibama e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Dentro da estrutura do Ministério do Meio Ambiente foi criada uma secretaria especial de combate ao desmatamento. É o que tem que ser feito, mas, ao mesmo tempo, precisamos pensar em políticas de desenvolvimento para a Amazônia.