A ex-aluna do Insper afirma que sua principal missão é transformar a política socioeducativa para jovens — que hoje, segundo ela, reforça um ciclo de exclusão que começa desde cedo
Bárbara Nór
Os próximos anos serão de muito desafio para Mayara Silva de Souza, ex-aluna do Programa Avançado em Gestão Pública (PAGP) do Insper. Ela acaba de ser nomeada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania coordenadora geral da Diretoria de Proteção da Criança e do Adolescente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. O novo cargo é resultado de uma longa trajetória na área do sistema socioeducativo, como é chamado o conjunto de políticas voltadas para adolescentes a quem foram atribuídos atos infracionais no Brasil — um cenário que Mayara quer ajudar a transformar.
Sua conexão com o tema vem desde cedo. Nascida e criada na periferia de São Paulo, onde as políticas públicas costumam ser completamente ausentes, contou com a batalha de sua mãe, trabalhadora doméstica, para ter acesso aos direitos mais básicos. Durante a adolescência, presenciou vários colegas e amigos sendo marginalizados pelo Estado. Ela lembra que, quando tinha 16 anos, um de seus amigos parou de repente de frequentar as aulas e só voltou no ano seguinte, tendo que repetir o ano. “Ele trazia esse rótulo de ter sido preso, algo que marcou muito”, diz. “Para mim, aquilo não fazia o menor sentido: como isso podia acontecer com alguém da minha idade?”
Mayara via também pessoas próximas, jovens negros e periféricos, serem alvos de contínuas abordagens policiais — com o medo constante de que poderiam ser detidas. Ela mesma era um retrato de muitas das jovens que vão parar no sistema socioeducativo: negra, filha de mãe solo e exposta às violências da periferia. Foi por medo de “se envolver com coisa errada” que ela estudou e entrou na faculdade assim que se formou no ensino médio — não queria arriscar nem um só ano “parada”. “Eu era uma jovem negra e não podia errar — ou eu estudava ou eu estudava”.
Hoje, o que começou como uma tentativa de fugir do que parecia ser o seu destino virou a sua vida profissional. Já na faculdade de Direito, Mayara conta que começou a estudar o tema do sistema socioeducativo de forma independente — não havia nenhuma matéria na grade de seu curso que abordasse o tema do direito da criança e do adolescente. Desde então, todas as suas experiências, tanto acadêmicas quanto profissionais, foram nessa área — e a sua avaliação é que ainda há muito trabalho a ser feito.
“Essa política pública já tem regulamentação legislativa há onze anos, mas ainda não conseguimos fazer com que ela seja efetiva”, diz Mayara. Embora dispositivos como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Sinase, além da própria Constituição Federal, prevejam garantias aos direitos da criança e do adolescente, como o acesso à educação e à saúde, na prática, grande parte desses adolescentes e jovens não tem acesso a esses direitos. “Essa falha da política interrompe ciclos e processos na vida de muitas famílias”, afirma.
Outra evidência da falha desse sistema, para Mayara, é o fato de que muitos dos adolescentes cumprindo medida socioeducativa — que pode ser tanto em meio aberto quanto em meio fechado, caso de instituições como a antiga Febem em São Paulo, atualmente Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, são reincidentes. Ou seja, já cumpriram uma ou mais medidas socioeducativas anteriormente. “Se um adolescente passa repetidas vezes pelo atendimento socioeducativo, isso deixa claro que a política está deixando muitas pontas soltas nesse atendimento”, afirma Mayara. Além disso, muitos adolescentes cumprindo medida estão fora da escola. “A medida, no seu grau máximo de gravidade, priva o adolescente da liberdade, mas não pode privar o acesso à educação, à saúde, ao lazer e à convivência.”
E, para piorar, o debate da política socioeducativa ainda tende a se concentrar em questões polêmicas e pouco efetivas, segundo Mayara. Um exemplo é o enfoque em pautas como a redução da maioridade penal. “As pessoas querem discutir isso sem entender o funcionamento, falhas e limitações e espaços de melhorias do sistema”, diz. “Seria preciso avançar muito, investindo nessas ausências e nos adolescentes para depois poder chegar a uma discussão desse nível”. Para ela, a ausência do reconhecimento da política socioeducativa enquanto algo importante e urgente é um reflexo da forma como a sociedade como um todo trata crianças e adolescentes.
“Há muitas pessoas muito comprometidas trabalhando na rede, mas, mesmo assim, ainda temos adolescentes morrendo dentro do sistema socioeducativo, morrendo inclusive durante a privação de liberdade”, diz. “Meu objetivo não é apontar culpados, mas identificar a causa e pensar em propostas e soluções que superem o que está acontecendo — é nossa responsabilidade olhar para isso com o devido cuidado e atenção máxima, pensando que essa morte é uma responsabilidade coletiva de toda a sociedade.”
Agora, a expectativa de Mayara é conseguir fortalecer e aproximar as redes do sistema socioeducativo para colocar em prática a garantia de direitos em todos os programas de atendimento socioeducativos no Brasil. Uma dificuldade nisso, aliás, é a ausência de dados. Muitas unidades de privação de liberdade, por exemplo, foram desativadas durante a pandemia, mas ainda não se sabe ao certo as condições reais de cada uma das unidades atuais.
O último levantamento oficial sobre a política em nível nacional foi feito em 2017 e lançado em 2019, embora tenha havido uma tentativa de avaliação da política socioeducativa em 2020, não concluída com sucesso. “Ainda falta muita informação. Não sabemos nem quantas unidades têm ensino regular, por exemplo”, diz. “É muito difícil executar uma política pública com sucesso sem dados, sem poder se basear em evidências e estatísticas.”
A extensão do Brasil também é outro desafio. “A política no Acre funciona totalmente diferente da do Amazonas, que também é diferente da de Alagoas, de São Paulo e Rio Grande do Sul”, diz. “Cada estado tem sua característica tanto da máquina estatal quanto climática e territorial. Reconhecer essas especificidades será muito interessante e desafiador, mas também muito potente.” Isso porque, para Mayara, é reconhecendo a diversidade e respeitando essas particularidades que é possível encontrar espaço para melhorias e troca de aprendizados.
Além de contar com uma equipe de pessoas preparadas — algo fundamental, para ela —, Mayara quer que os jovens tenham um papel mais protagonista nessa transformação. “Eles têm muito a contribuir com a qualificação do atendimento porque são eles que estão vivendo esse atendimento — e isso é algo muito potente”, afirma. “Temos pouco ainda a cultura de ouvir nosso público, então isso é algo que precisamos aprender a fazer: ouvir os adolescentes e famílias envolvidas.”
Para dar conta desses e outros objetivos, Mayara diz que uma de suas experiências mais importantes foi o Programa Avançado em Gestão Pública do Insper, que ela fez em 2018. Ela conta que procurou a formação ao perceber que faltava um olhar de gestão pública para o seu conhecimento que, até então, era restrito à fase processual e a um olhar jurídico sobre o tema.
“Busquei o curso do Insper para ter um olhar qualificado sobre gestão pública, com as especificidades e limitações que a realidade impõe às políticas públicas”, diz. “A pós me possibilitou identificar o funcionamento de qualquer política pública no Brasil de maneira interdisciplinar e ampla, algo essencial para mim.” Afinal, ela diz, a política socioeducativa depende, na verdade, de uma série de outras políticas, como a de educação, saúde, esporte, assistência social e judicial.
Outro destaque no curso do Insper para Mayara foi o fato de a gestão de política pública ser abordada sob vários aspectos. “Você não olha só a execução, mas desde a parte orçamentária, legislativa, construção de agenda até a boa administração de recursos e o entendimento das limitações da própria realidade”, afirma. “É uma pós muito comprometida com a responsabilidade administrativa do Estado, mas também olhando para o caráter humanitário.”
Um de seus insights depois do curso, por exemplo, foi perceber que se existe, de um lado, a garantia ao direito, é o acesso à política pública que permite que esse direito seja acessado — sobretudo no caso de populações mais vulnerabilizadas. Esse é o caso, sobretudo, de jovens negros. “Não podemos nos esquecer de que a política socioeducativa acaba atendendo de maneira desproporcional muito mais adolescentes negros que não negros”, diz. Para ela, o sistema acaba servindo como a “face oculta do genocídio da população negra”. “Existem várias formas de matar um corpo, e uma delas é permitindo que violências sejam perpetuadas, ignorando situações de ausência de direitos e limitando a capacidade criativa e de potência e expansão do ser humano.”
Para Mayara, parte do esforço em enfrentar questões como essa envolve aumentar a diversidade em todos os espaços — como o do próprio Insper. “Quando fui aluna, eu era a única mulher negra, e só havia dois ou três colegas negros de uma turma com mais de 20 pessoas”, diz. Foi assim que ela se envolveu no Comitê Alumni de Diversidade, onde entrou primeiro como integrante e depois assumiu a Coordenação Geral, da qual teve que se desligar recentemente por problemas de agenda. “O Comitê Alumni de Diversidade e Inclusão, sobretudo o pilar Raça tem feito um trabalho de sensibilização, com um olhar de responsabilidade não só institucional e social que é muito importante”, diz. “A gente teve oportunidade de dialogar com outros Comitês e acredito que é um espaço que tem uma potência muito grande e significativa, sobretudo quando o Insper se apropria desse espaço, fortalece esse espaço e possibilita sua expansão.”
Mayara nunca deixou, aliás, de estudar. Hoje, ela tem um mestrado em andamento na Universidade de Brasília a respeito do sistema judiciário juvenil, que inclui uma pesquisa de campo acompanhando audiências da justiça juvenil com adolescentes e jovens a quem são atribuídas práticas de atos infracionais, comumente chamados de “infratores”, termo que ela diz ser equivocado. “Eu não vejo adolescentes como infratores de forma alguma, muito menos como adolescentes em conflito com a lei”, afirma. “Eu os vejo como adolescentes com potenciais interrompidos pela ausência de direitos, por várias formas de violência e que estão gritando de forma silenciosa por oportunidades de brilharem, existirem e realizarem seus sonhos.”